domingo, 26 de setembro de 2021

Brasil: pibinho faz fumaça e acelera ingovernabilidade



José Martins

Por que o tão temido golpe de Jair Boçalnaro anunciado para a Semana da
Pátria acabou não acontecendo? Por vários motivos. Um deles, talvez o
menos importante, porque Boçalnaro não tem capacidade política nem para
ser ditador.

É claro que qualquer boçal pode ser um ditador. Até generais como
Mourão, Pazuello, etc., reúnem todas as credenciais para o distinto
cargo. Como era o caso dos Médici, Figueiredo e outros intelectualmente
desclassificados da pátria amada Brasil.

O problema é que Boçalnaro não é um boçal qualquer. Ele é um boçal
especial. Vejam, por exemplo, o seguinte fato: ele passou quase trinta
anos como deputado na Câmara Federal e nunca comandou nenhuma Comissão
de qualquer assunto relevante da Casa. Inércia total.

Ficava amoitado em seu infecto gabinete, onde quase ninguém especial
entrava nem dava qualquer importância para aquela obscura criatura.

Passava o tempo todo fazendo requerimentos para beneficiar policiais,
famílias de militares, paramilitares, milicianos, antigos torturadores
na ditadura e outras sinistras figuras do submundo policial. Esta sempre
foi sua base social e eleitoral. Garantia de reeleições e mandatos
sucessivos.

Nas grandes questões da Câmara seguia bovinamente as decisões das
lideranças do “baixo clero”, rebatizado atualmente como “centrão”, ao
qual sempre pertenceu. Sempre passivo, medíocre, silencioso, traiçoeiro.
Corpo e alma de torturador. Útil apenas para cumprir as tarefas mais
inglórias e sujas dos seus patrões burgueses.

Agora, quando é empurrado não pela burguesia, mas pela sua base de
delinquentes sociais para tomar uma atitude e comandar um golpe militar
tradicional ele fracassa. E a ingovernabilidade burguesa se aprofunda um
pouco mais no território do inusitado e do imprevisível.

Mas poderia alguém melhor preparado politicamente que Boçalnaro ser um
ditador como todos estão acostumados a imaginar? Uma ditadura militar
/old faschioned/ seria adequada para as necessidades atuais
administração burguesa da luta de classes no Brasil? Tudo indica que não.

Portanto, a seu favor pode-se argumentar que o golpe da semana da pátria
não vingou simplesmente porque uma ditadura meia boca, fora de moda,
inadequada, deste desclassificado ou de qualquer outro aventureiro,
seria absolutamente insuficiente para enfrentar os inauditos desafios
que a classe dos empresários e demais parasitas enfrentam neste momento.

Faz sentido. Afinal, as condições de funcionamento do sistema
capitalista mudaram notavelmente nos últimos sete ou oito anos. Como
cristalização de um processo mais largo conhecido como “globalização”,
“neoliberalismo”, e outros imprecisos adjetivos do pensamento vulgar.

Como resultado destas mudanças reais o descontrole político burguês
evoluiu para níveis que não se assistia há muito tempo na maior economia
do mundo ao sul do equador.

Esse corrosivo descontrole das instituições do Estado brasileiro é
impulsionado em primeiro lugar por determinantes materiais. Sem
novidade. Não é assim que as coisas funcionam? Observemos então,
inicialmente, esses determinantes em suas manifestações mais imediatas.

No início do mês, por exemplo, o IBGE informou que o Produto Interno
Bruto (PIB) caiu no 2º trimestre abaixo de zero (- 0,1%) frente ao
trimestre anterior.

Forte abalo na narrativa triunfalista dos capitalistas e seus
economistas de mercado de que a economia havia retomado o crescimento.
Nada mais ilusório.

A primeira vítima foi Paulo “Ipiranga” Guedes. Em um movimento
incrivelmente sincronizado e orquestrado “investidores” e Globo News
iniciam no mesmo dia a fritura do seu até na véspera amado ministro da
economia.

O “pibinho” dos empresários brasileiros voltou com pompa e
circunstância. Aliás, nunca deixou de ser “pibinho” nos últimos anos. O
que aparecia como “retomada” era mistificação barata.

Passadas as turbulências estatísticas ocorridas com a pandemia, nos
últimos quatro ou cinco trimestres, a situação fica menos embaçada: ao
invés de uma imaginária “recuperação em V”, a produção e o produto
nacional se apresentam com a mesma cara lavada e abaixo daquele já
trágico nível de antes da pandemia.

Segundo relatório publicado pela OCDE, a economia brasileira é a única
das grandes “emergentes” que apresentou queda no 2º trimestre deste ano.
A economia que antes da epidemia (2019) já estava no fundo do poço
depois da pandemia continua afundando. E deve continuar.

Marque esta conclusão. Para a análise das perspectivas políticas
brasileiras deve-se tirar as todas as consequências do seguinte
diagnóstico: o renitente “pibinho” que assombra há quase dez anos o país
com mais de 210 milhões de habitantes para serem reproduzidos
fisicamente não dá sinal de recuperação e de volta do crescimento
econômico. Ao contrário, continuará afundando.

Esta anemia produtiva é histórica. Tem razões mais profundas que uma
mera variação do PIB. Porém, o mais importante é saber como ela se
apresenta agora. Há que se isolar e analisar o estado atual desta anemia.

É por isso que é importante observar no mesmo relatório IBGE set.1º que
outras cruciais variáveis econômicas caíram muito mais catastroficamente
que o PIB – que foi sustentado por um monte de penduricalhos
improdutivos contabilizados em atividades no setor de Serviços, etc.

Nos setores produtivos da economia, a Agropecuária (o famigerado
“agronegócio”) caiu 2,8%; enquanto a estratégica Indústria de
Transformação – núcleo regulador da totalidade da economia – também
amargou queda de 2,2%.

E, mais importante que tudo, a chamada Formação Bruta do Capital Fixo,
que, embora grosseiramente, mede os investimentos produtivos na
economia, caiu 3,8%!

Os empresários brasileiros formam uma classe de proprietários dos meios
de produção social marcada geneticamente pela preguiça e passividade.
Têm a mesma cara cultural e cognitiva dos diversos capitães do mato que
instalam alternativamente na presidência da República.

Os empresários brasileiros constituem uma classe de “boçalnaros” da
indústria. De “capitães da indústria” portadores de uma má formação
mental geneticamente constituída que os torna irreversivelmente
despreparados para agir, modernizar e aumentar as forças produtivas no país.

Assim, sem novos investimentos para a reprodução ampliada do capital, a
produtividade da indústria brasileira de transformação caiu por três
trimestres consecutivos.

No segundo trimestre de 2021, de acordo com o boletim Produtividade na
Indústria, da Confederação Nacional da Indústria (CNI), a produtividade
do trabalho caiu 1,6% em relação aos três meses anteriores. Voltou ao
nível próximo ao do segundo trimestre de 2020, quando começaram as
turbulências da pandemia.

Economia real afundando e gravíssimos problemas sociais aumentando. Mais
de 32 milhões de trabalhadores desempregados, classificados como
“população subutilizada”.

Todo mundo sabe que no regime capitalista de produção se o cidadão
desprovido de qualquer meio de produção ou reserva não conseguir vender
por longo período sua força de trabalho no mercado para ser consumida
nas linhas de produção de capital ele e sua família morrerão de fome.

Atualmente, a miséria e a fome explodem a olho nu nas ruas, avenidas e
semáforos das grandes cidades do país. E vão continuar aumentando. Isso
enquadra rigidamente as perspectivas políticas atuais da burguesia
brasileira.

Porém, a população em geral só toma conhecimento dos atuais impasses e
responsabilidades dos empresários e demais parasitas do sistema pela
atual situação social quando a explosão dos preços ameaça diretamente o
poder de seu rendimento (salário) para pagar pela comida, aluguel, luz,
gás, transporte, remédios e outros meios básicos de reprodução e
sobrevivência física.

A carestia está de volta. Misturada com o desemprego nas nuvens tudo
muda na paz de cemitério dos empresários brasileiros. Resta saber se ela
veio para ficar. Ou de que modo esta brusca elevação dos preços é apenas
uma das manifestações de uma correspondente e não menos catastrófica
desaceleração da produção de capital no país.

O fato é que a inflação oficial do país, medida pelo IPCA (Índice
Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), alcançou a maior taxa para um
mês de agosto (0,87%) em 21 anos e, com o resultado, encostou em 10% no
acumulado de 12 meses (9,68%).

É o que apontam os dados divulgados na quinta-feira (9) por outro
relatório do IBGE. Vejam o tamanho do estrago no gráfico abaixo.

Em agosto de 2020 a inflação nos últimos doze meses era de civilizados
2,44%. Agora, um ano depois, ago.21, ela subiu para indecentes 9,68%.
Esta fulminante elevação de preços é praticamente inédita. E letal para
uma economia dominada da periferia que não tem moeda nacional
reconhecida no mercado cambial internacional.

Quem não tem “moeda forte” só pode fazer política econômica fraca,
inócua. Este é o destino dos governos de economias dominadas e seus
impotentes economistas.

Ao chegar a praticamente 10% no acumulado de 12 meses, o IPCA ampliou a
distância frente ao teto da meta de inflação (5,25%) estabelecida pelo
Banco Central (BC). No acumulado até julho, a variação estava em 8,99%.

A Crítica da Economia estima que o IPCA se elevará para a faixa de 10,5
a 11,5% no mês de dez.21. Isto forçará necessariamente (e inutilmente) a
elevação da taxa básica de juros (Selic) para pelo menos 10%.

Este já é um cenário conservador, pois supõe uma contenção e
estabilização da tendência atual dos preços, considerando cenário
altamente improvável de recuperação da economia global, etc.

Na data de ontem o Boletim Focus, do BC, com previsões do mercado,
indicava IPCA de 8,5% e taxa Selic de 8,00% em dez.2021. Não é tão
diferente do nosso cenário. De todo modo, ambos significarão forte
desorganização de todas as variáveis fiscais e do orçamento do governo.
E forte pressão também para maior desvalorização do real frente ao
dólar. O Brasil é um ser cada vez mais inválido na ordem capitalista
mundial.

O resultado de agosto do IPCA também mostrou um aumento mais
generalizado nos preços. Quer dizer, a inflação se espalha como
agressiva metástase para a maioria dos setores econômicos. Esta alta de
preços mais disseminada pode ser medida pelo “índice de difusão” do IPCA.

Conforme o IBGE, o indicador, que analisa o percentual de itens
contaminados com aumentos nos seus preços de mercado, passou de 64% em
julho para 72% em agosto.

Quanto maior essa contaminação, mais difícil a reversão do processo.
Indica fatores básicos muito fortes se manifestando na superfície e
impulsionando o processo.

Por isso, da mesma forma que para explicar a volta do “pibinho”, os
economistas estão perdidos na explicação da volta da carestia e da sua
irmã gêmea, a desvalorização cambial da moeda nacional.

Não sabem dizer qual o remédio monetário e fiscal capaz de reverter o
processo de inflação e de desvalorização cambial. Isso acontece porque
eles não levam em conta em seu raciocínio limitado de comerciantes
práticos o que determina o valor de uma moeda nacional, e,
consequentemente, da taxa de câmbio.

Diferentemente do que se passa as economias dominantes do centro do
sistema, tanto o travamento do PIB quanto a elevação de preços internos
no Brasil derivam fundamentalmente de uma baixíssima produtividade do
trabalho e de uma estrutural fragilidade tributária e fiscal do governo.
As duas coisas estão ligadas. E se retroalimentam.

Mas não se trata aqui das lições econômicas que cercam este problema da
determinação do valor de uma moeda nacional, que já tratamos em inúmeros
boletins passados.

Aqui se trata apenas de afirmar que os dados atuais da produção e da
produtividade industrial no Brasil, que vimos de passagem acima,
permitem antever um agravamento das condições econômicas e sociais no país.

E, se não podem receitar o remédio para os problemas atuais da economia,
a única coisa que os capitalistas e seus economistas podem dizer com
certa exatidão é que tudo que já está ruim pode ficar pior ainda.

Foi exatamente isso que eles andaram dizendo nesta terça (15). Se há
algumas semanas estimavam uma alta acima de 2% do PIB (Produto Interno
Bruto) para 2022 agora eles já avaliam que o crescimento pode ficar
abaixo de 1%.

O Banco JP Morgan, por exemplo, que antes projetava 1,5% de crescimento
para o ano que vem, revisou a expectativa para 0,9%.

A MB Associados, outro respeitado núcleo de consultores de mercado,
trouxe cenários mais precisos para o ano que vem. Antes, trabalhava com
crescimento de 1,4% para o PIB de 2022, nesta semana revisou as
estimativas para 0,4%,

Para o ano que vem, a consultoria prevê coisas mais importantes que uma
mera retração do PIB. Prevê corretamente, diga-se de passagem, uma queda
de 1,4% da produção industrial, com destaque para a indústria de
transformação (-1,9%) e para a construção civil (-2,1%).

O Itaú Unibanco, é outro que projetava um crescimento de 1,5%, revisou o
avanço para 0,5% em 2022. E outra coisa muitíssimo importante: do mesmo
modo que a maioria dos demais economistas da Faria Lima e Avenida
Paulista os analistas do Itaú Unibanco também alertam para uma
desaceleração da economia global no ano que vem.

Este cenário de crise global impactaria ainda mais fortemente a economia
brasileira. Os economistas já detectam que os preços de commodities
agrícolas e minerais pararam de subir, e alguns deles estão caindo, como
o minério de ferro, milho, etc.

As características e grau de profundidade da crise global, que devem
começar a se materializar nos próximos trimestres no mercado mundial –
economias dos EUA e China como detonadores do processo – é o que dará
régua e compasso da crise política e social brasileira.

Resta observar que um agravamento destas condições nacionais de
reprodução do capital, com a profundidade que se anuncia nas breves
observações acima, não acontece impunimente. E que estes ventos
contrários de magnitude inédita dos determinantes materiais mudam também
a qualidade do processo político.

São cruciais as consequências desta mudança de qualidade de uma crise
política de governo, mais comumente observada, para uma rara crise de
Estado. De uma crise institucional para uma crise revolucionária.

Assim, é no meio do caminho para esta incrível e tão esperada
metamorfose de ingovernabilidade burguesa no Brasil que se pode entender
melhor os motivos daquela impotência de Boçalnaro de aplicar um golpe
militar convencional na Semana da Pátria.

O golpe seria bem sucedido, apesar da notória e particular boçalidade do
seu executor, se fosse uma garantia de que os lucros continuassem a
jorrar e a catástrofe social pudesse ser controlada pelas armas. Não
convenceu as classes dominantes.

Mas não é só o fracassado golpe de Boçalnaro que não pode dar esta
garantia. Tamanha façanha de salvar o capital e assassinar impunemente
dezenas de milhões de trabalhadores da “população subutilizada” também
não poderá mais ser obra de novo presidente legitimamente escolhido
pelas confiáveis e auditáveis urnas eletrônicas do Supremo Tribunal
Eleitoral.

Nenhum ditador mais articulado com o combate às desigualdades ou
qualquer amigo do povo e suas inefáveis políticas públicas de combate à
pobreza serão mais eficientes que Boçalnaro no enfrentamento da crise de
ingovernabilidade do Estado capitalista brasileiro que se aprofundou um
pouquinho mais nas últimas semanas.

In
CRÍTICA DA ECONOMIA
https://criticadaeconomia.com/2021/09/brasil-pibinho-faz-fumaca-e-acelera-ingovernabilidade/
16/9/2021

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