quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Xadrez de como o bolsonarismo foi embalado pelas elites nacionais

 
 


  Luis Nassif

O importante é analisar as raízes desse fenômeno, para que o combate não
fique restrito às medidas institucionais - impeachment, julgamento,
condenação e prisão da organização familiar criminosa.


    Peça 1 – os comícios

Certamente não foram apenas 120 mil manifestantes na Paulista, conforme
os levantamentos enviesados da Polícia Militar de São Paulo. Desde as
primeiras campanhas de rua, a brava PM sempre se esmerou em minimizar a
quantidade de pessoas nas manifestações anti-impeachment e maximizar as
manifestações pró-impeachment.

Portanto, não se minimize a relevância da manifestação. Mesmo que boa
parte do público tenha vindo de fora, a multidão comprova, no mínimo, a
capacidade de arregimentação dos bolsonaristas.

Definitivamente, o bolsonarismo veio para ficar, com ou sem impeachment
de seu chefe.

O importante é analisar as raízes desse fenômeno, para que o combate não
fique restrito às medidas institucionais – impeachment, julgamento,
condenação e prisão da organização familiar criminosa.


    Peça 2 – o lúmpen

Nos últimos tempos consolidou-se o conceito do lumpen aplicada não
apenas ao proletariado. Vale para pequenos empresários, classe média e
outros setores sem ideias próprias, sem organização, conduzidos por
slogans e palavras de ordem que exploram seus preconceitos.

Quem é esse personagem? É um sujeito sem vinculações partidárias, pouco
associativo, fechado em seu núcleo familiar e de amigos, que enxerga
como ameaça qualquer input externo.

Esse personagem é frequente na história brasileira e sempre foi massa de
manobra das chamadas elites em suas disputas políticas. Nos anos 50, foi
o trabalho da mídia – notadamente da rádio Globo, no Rio de Janeiro, e
do Estadão, em São Paulo – que mobilizou a classe média lumpen,
valendo-se de dois temores quase ancestrais: a corrupção e o comunismo.

Desde sempre, manobrava algoritmos mentais, criando um bombardeio de
frases soltas, slogans ameaçadores como forma de mobilização.

Para tanto, consultem  o histórico artigo de Wanderley Guilherme dos
Santos sobre o pré-64. Intelectuais de esquerda ironizavam os discursos
de Carlos Lacerda, por serem rasos, desprovidos de conteúdo, meras
manipulações da história. Mais arguto analista do seu tempo, Wanderley
entendia o seu alcance: era o discurso que mobiliza o lumpen
<https://periodicos.ufpb.br/index.php/politicaetrabalho/article/download/12195/7060/>,
fornecendo argumentos para as discussões familiares. Ou seja, no
universo lumpen, o campo de batalha das ideias é a família, não o
sindicato, o partido político.

Mesmo assim, a coordenação das massas era externa, dos grupos econômicos
que, através da mídia e dos políticos da época, articulavam os
algoritmos analógicos.

Por trás desses pré-algoritmos, portanto, havia uma elite organizada. Em
São Paulo, o golpe foi articulado nos clubes sociais de elite e nas
associações empresariais, conforme livro de René Armand Dreifuss, “1964,
a Conquista do Estado

No Rio de Janeiro e em Brasília, em torno dos grupos da Sorbonne, de
Castelo Branco e Golbery do Couto e Silva. Atrás deles, toda a
plutocracia nacional e, obviamente, o interesse geopolítico norte-americano.

Com o golpe saindo vencedor, o lumpen voltava para a jaula e limitava-se
a ser alimentado com a carne fresca dos Atos Institucionais e prisões
arbitrárias, com a mídia mantendo acesa o mito do “inimigo” a ser
destruído.


    Peça 3 – o lumpen na redemocratização

Na redemocratização, o lumpen foi isolado.

Primeiro, pelos ventos da Constituição, uma lufada de modernização
social em defesa dos vulneráveis, em uma momento em que a plutocracia
ainda amargava a ressaca do fim do regime militar. Depois, pelo controle
absoluto da política econômica – e do noticiário de mídia – pelo tal do
mercado.

Desde então, o Brasil refletido na mídia passou a ser  o do Ministério
da Fazenda e Banco Central. Comandaram a Fazenda alguns dos Ministros
mais medíocres da história – de Pedro Malan a Henrique Meirelles,
passando por Antônio Palocci. E eram enaltecidos diariamente. Não
administravam problemas da economia, não faziam política econômica, não
buscavam o desenvolvimento: sua função era atender às demandas de
mercado, subordinar todas as decisões de políticas macro aos interesses
do mercado, ainda que à custa do prejuízo geral do país.

Os principais veículos de comunicação – os jornais nacionais da noite –
refletiam unicamente os temas de mercado. O noticiário de jornais
diários e revistas semanais era um espelho da Vila Olímpia e do Leblon.
E o lumpen era isolado em seus guetos sociais.

Com o tempo, o monumento humanista da Constituinte passou a enfrentar
dois adversários.

No alto, o mercado tratando cada migalha de direitos, cada esboço de
regulação, mesmo aquelas consagradas em países civilizados, como
impeditivos da busca de eficiência pelas empresas. E com amplo respaldo
da mídia.

Na base, o lumpen vendo o avanço das classes de menor renda sofrendo com
a perda de status e atribuindo todas suas frustrações aos direitos das
minorias.

Globalmente, depois da crise de 2008 e das políticas pós-crise,
consuma-se o fracasso do modelo liberal como agente de promoção do bem
estar geral.. Desmoralizou-se a ideia de que, liberando as empresas de
qualquer compromisso ou de qualquer responsabilidade, haveria uma
explosão de crescimento que beneficiaria a todos.

Mesmo assim, o enorme poder econômico acumulado pelos grupos
financeiros, e a desmoralização da social-democracia, após a queda do
Muro de Berlim, permitiram uma sobrevida cruel do modelo, com políticas
monetárias e fiscais visando unicamente preservar os interesses da banca.

No Brasil, esse movimento inicial foi superado pela maneira com que Lula
enfrentou a crise. Depois, os erros de política econômica da era Dilma
Rousseff – que teve seu ápice no pacote econômico de Joaquim Levy –
abriram campo para um novo movimento de manipulação do lumpen pela
plutocracia nacional.

Desenhou-se, ali, a metodologia que, anos depois, seria repetida por
Bolsonaro e que consistiu das seguintes etapas:

 1. *Desmoralização do processo eleitoral.*

As declarações de Aécio Neves questionando os resultados no mesmo dia
das eleições; as tentativas do Ministro Gilmar Mendes, no Tribunal
Superior Eleitoral, de tentar impugnar a chapa de Dilma, com amplo
respaldo da mídia. Na última hora, Luiz Fux voltou atrás e, por um voto,
não conseguiu a maioria que impugnaria a chapa Dilma-Temer.

 2. *Criação de movimentos de massa pró-impeachment.*

As grandes manifestações pró-impeachment foram diretamente coordenadas
pela Rede Globo e pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
(FIESP).

 3. *A volta da ameaça comunista.*

Coordenados pela revista Veja, os grupos de mídia dão início ao chamado
jornalismo de esgoto, a mais deletéria deformação do jornalismo desde as
campanhas dos anos 60. Nesse jogo, recorrem a todas as formas de
manipulação, notícias falsas, criação de inimigos imaginários, teorias
da conspiração. Veja, a propósito, “OCaso Veja – o naufrágio do
jornalismo brasileiro”.
<https://www.amazon.com.br/Caso-Veja-Luis-Nassif-ebook/dp/B09C2C9KPK/ref=nodl_>

 4. *O envolvimento dos poderes pela rua.*

Com a Lava Jato, as manifestações populares serviram para emparedar
autoridades, algumas de caráter fraco, como o ex-Procurador Geral
Rodrigo Janot.

… outros, oportunistas pretendendo cavalgar as novas ondas, valendo-se
do vácuo político criado pela Lava Jato para se apresentar como
condutores de povos. Como Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal
Federal, anunciando “as cortes constitucionais de todo o mundo” não como
defensoras da Constituição, mas como “vanguarda iluminista”.

O passo seguinte foi o questionamento da Constituição, tarefa de
desmonte conduzida pelo neoconstitucionalista Barroso, sempre em nome do
iluminismo do Barroso.

 5. *O desmonte da Constituição*

Com a corte cooptada – caso Barroso e Luiz Fux – ou intimidada – caso
Edson Fachin, Cármen Lúcia e Rosa Weber -, a Constituição passa a ser
desmontada e as interpretações manipuladas para benefício de grupos de
interesse. Foi assim no impeachment e, posteriormente, na escandalosa
interpretação de permitir a venda de subsidiárias estratégicas de
estatais, sem passar pelo Congresso.

O estupro da Constituição criou condições para a desmoralização da
Justiça. A partir daí multiplicaram-se os abusos da primeira instância e
dos tribunais inferiores, assim como de procuradores imbuídos do
espírito da guerra santa, todos contra os “inimigos” que ousassem pensar
de forma diferente.

Veja bem: estou falando do período pré-Bolsonaro, com o macartismo sendo
diretamente conduzido pelos atuais defensores da democracia.

 6. *A Ponte para o Futuro*

Desde o início estava na mesa a Ponte para o Futuro, um projeto de
destruição ampla das diversas formas de regulação e de defesa dos
vulneráveis consagradas pela Constituinte.

É essa mesma frente que vai se somar a Bolsonaro em 2018 e lhe dar
amparo político, o direito de destruir a cultura, a Educação, os
direitos sociais, em troca dos grandes negócios da privatização.


    Peça 4 – os componentes da era pré-Bolsonaro

Tendo como objetivo central os grandes negócios da privatização, durante
anos, mídia, Supremo e Lava Jato ajudaram a reforçar todos os vícios do
lumpen, a explorar os baixos instintos e a dividir o país entre homens
de bem e malvados bolivarianos.

Construíram, assim, paulatinamente, todos os elementos que, logo depois,
serviriam de alimento para o bolsonarismo.

  * O uso de fake news e teorias conspiratórias pela mídia;
  * O tratamento de “inimigo” para todo pensamento divergente, pela
    mídia, pelo Supremo e pelo Ministério Público, com o direito penal
    do inimigo se esparramando por todo o sistema jurídico.
  * Manipulação das leis e da constituição pelo Supremo, com propósitos
    políticos, não apenas no impeachment, mas no desmonte de direitos e
    na queima das estatais;
  * Grandes passeatas alimentadas a ódio. Na Copa do Mundo qualquer
    pessoa que saísse com uma blusa vermelha estava exposta a agressões
    da malta.
  * O desmonte de todas as políticas públicas a partir da era Temer,
    assim como a submissão total da política econômica ao mercado
    através da Lei do Teto, uma excrescência contábil preparada por
    imbecis e enaltecida por imbecis, julgando ter encontrado a pedra de
    Roseta para expulsar os gastos sociais do orçamento por 20 anos.
  * Todos os atos públicos, nos três poderes, subordinados ao grande
    negócio da privatização.

Como consequência, manteve-se a estagnação da economia, a volta do país
ao mapa da fome, a ampliação da miséria e da falta de perspectivas para
a classe média e a redução do mercado de consumo para o capital produtivo.

O que não se esperava é que o monstro das ruas, o lumpen, não mais
obedecesse à voz de comando da mídia tradicional. As novas tecnologias
traziam novos elementos de coordenação.


    Peça 5 – as redes sociais, a ultradireita e a contravenção

Quando as redes sociais se espalham, descobre-se a nova lógica da
informação e o poder dos algoritmos, dentre os pioneiros na utilização
dos novos instrumentos estavam os grupos econômicos que transitam nas
fronteiras da legalidade.

São atividades tolhidas pelo avanço das regras sanitárias, ambientais e
sociais, como a indústria de armas, dos cassinos, do lixo, das
atividades poluidoras, como mineração e indústria do petróleo, de olho
nas reservas indígenas.

Os primeiros financiadores da ultra direita saem desses grupos, dos
irmãos Koch a Sheldon Adelson, o chefe da máfia dos cassinos de Las Vegas.


A partir do controle sobre as novas tecnologias, esses grupos se
aproximam da ultradireita mundial. Dos supremacistas brancos, trazem o
discurso. Dos neopentecostais, a visão bíblica necessária para se
contrapor à racionalidade dos fatos. De todos esses grupos, a ideia da
desregulação total das economias, o fim dos controles sociais e
ambientais, em nome de uma suposta liberdade individual.

O discurso supremacista sai das bolhas analógicas dos confins dos
Estados Unidos e entra nas bolhas digitais por todo o mundo, passando a
se aproximar de partidos políticos e a financiar ditaduras.

Na foto abaixo, jantar na embaixada brasileira, logo após a posse de
Bolsonaro, com Steve Bannon à sua esquerda, Olavo de Carvalho, Sérgio
Moro e demais autoridades.

O uso de ferramentas digitais em eleições foi inaugurado por José Serra
em 2010. O assessor americano contratado trouxe não apenas a metodologia
de atuação nas redes, mas também os motes capazes de influenciar o
público, a maneira de atirar carne fresca ao lumpen. Temas como aborto,
Bíblia, orações são incorporados por Serra com a naturalidade de um
vira-latas intelectual, na demonstração definitiva da ausência total de
princípios que caracteriza a elite nativa.

Por não ser puro-sangue, Serra não assumiu a liderança do lumpen.  Logo
depois, com a Lava Jato, monta-se uma nova rede, mais ampla e com o
discurso moral e anticomunista consolidado.

A esta altura, firmemente associado à ultradireita internacional, o
bolsonarismo passa a beber nas tecnologias de Bannon.

Em vez dos grupos de mídia, o agente coordenador do lumpen passa a ser o
bolsonarismo, através do WhatsApp. E consegue manter, por algum tempo, o
pacto com o mercado, com o Supremo e tudo, graças às promessas de mais
desmonte do Estado e mais negócios da privatização.


    Peça 6 – relendo a história

Agora, chega-se na hora da verdade.

O país atravessa o mais grave período da sua história, com mais de 600
mil mortos pela epidemia, a fome grassando, a miséria aumentando,a
inflação, uma enorme crise elétrica à vista e a democracia sob ameaça
dos hunos.

Mas a enorme tragédia permitiu um avanço inestimável na maratona
intelectual para decifrar o enigma Brasil.

Primeiro, a constatação do fato fundador: a escravidão, uma mancha que
se incorporou definitivamente na mentalidade das elites brasileiras –
dos quatrocentões aos imigrantes que enriqueceram por aqui, dos pequenos
empresários à classe média bolsonarista. Não se trata apenas de uma
enorme indigência cultural, um provincianismo atroz, uma falta de
cultura assustadora, de um bando de pavões cultivando a modernidade
superficial dos salões, ou as lantejoulas da periferias, ambos
compartilhando o sonho de um imóvel em Miami. Mas também de uma ausência
total do sentimento de Nação, da solidariedade, da generosidade para com
os vulneráveis.

Segundo, a enorme mediocridade intelectual e moral das chamadas elites
nacionais, quase todos pensando na próxima “tacada” – a expressão criada
pelo cunhado de Rui Barbosa para descrever as jogadas do tio, Ministro
da Fazenda.

Com ou sem Bolsonaro, todos os pilares do regime democrático estão
apodrecidos. E começaram a apodrecer no dia em que mídia, Ministério
Público e Supremo permitiram as lambanças da Lava Jato.

Agora, à luz da enorme tragédia nacional, com a democracia em risco, só
resta a dissecação do cadáver daquela que foi, um dia, uma esperança de
democracia social.

  * Os grupos de mídia utilizando o jornalismo para negócios pessoais.
  * O mercado investindo contra qualquer tentativa mínima de taxação.
  * O Supremo demonstrando uma ignorância atroz sobre qualquer tema
    econômico ou social. A maneira como convalidou a privatização de
    subsidiárias das estatais, sem uma discussão mínima sobre a lógica
    dos negócios, o desmonte dos direitos sociais, sem atentar para as
    consequências sobre o mercado de consumo e a paz social, o endosso à
    Lava Jato, sem um gesto de defesa de empresas e empregos,
    comprovaram a extraordinária mediocridade da Suprema Corte – que só
    agora se permite algum gesto de grandeza, na resistência a Bolsonaro.
  * O Ministério Público Federal sendo capaz de cair de cabeça na
    cooperação internacional sem dispor de um centavo de informação
    sobre os jogos da geopolítica e os interesses nacionais.
  * As Forças Armadas não conseguindo sequer definir pontos óbvios sobre
    segurança nacional. O nível intelectual das FFAAs está refletido no
    semblante do general Augusto Heleno, cuja cabeça lateja quando pensa.
  * Os partidos políticos sendo incapazes de desenvolver um projeto
    nacional no sentido amplo. O PSDB preferiu manobrar as manadas da
    ultradireita – apropriadas depois pelo bolsonarismo. O PT se
    contentou com o trabalho meritório de reduzir a desigualdade, mas
    sem arranhar os pontos centrais das distorções brasileiras, os
    privilégios absurdos do mercado e de corporações de Estado. E foi
    incapaz de montar um conselho de estrategistas capaz de demover
    Dilma Rousseff da caminhada implacável para o desastre.

A reconstrução será dura. O preço do subdesenvolvimento, somado à
herança escravagista, torna o desafio maior ainda. Exigirá uma enorme
auto-crítica geral, que permita o primeiro passo para a reconstrução
nacional: colocar o povo como centro de todas as políticas públicas,
completando a obra inacabada da Abolição.

In
JORNAL GGN
https://jornalggn.com.br/editoria/luisnassif/xadrez-de-como-o-bolsonarismo-foi-embalado-pelas-elites-nacionais-por-luis-nassif/
9/1/2021

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