quarta-feira, 20 de julho de 2022

O fim da civilização ocidental (1)

 



    Michael Hudson [*]

'Destiny of Civilization', o livro mais recente de Michael Hudson.

O maior desafio que confronta as sociedades sempre foi efetuar comércio
e crédito sem deixar que mercadores e credores ganhassem dinheiro
explorando seus clientes e devedores. Toda a antiguidade reconhecia que
o impulso para ganhar dinheiro é viciante e na verdade tende a ser
explorador e portanto socialmente nefasto. Os valores morais da maior
parte das sociedades opõem-se ao egoísmo, acima de tudo na forma de
avareza e dependência da riqueza, o que os gregos chamavam de
/philarguria/ – amor à moeda, mania da prata. Indivíduos e famílias que
se entregavam ao consumo conspícuo tendiam a ser ostracizadas, porque
era reconhecido que a riqueza muitas vezes era obtida a expensas de
outros, especialmente os fracos.

O conceito grego de /hubris/ envolvia comportamento egoísta que
provocasse danos a outros. Avareza e cobiça deviam ser punidas pela
deusa da justiça Nemesis, que tinha muitos antecedentes no Oriente
Próximo, tais como Nanshe de Lagash na Suméria, protegendo o fraco
contra o poderoso, o devedor contra o credor.

Essa proteção é o que se esperava que os governantes providenciassem ao
servirem os deuses. Eis porque os governantes foram imbuídos com poder
suficiente para proteger a população de ser reduzida à dependência da
dívida e ao clientelismo. Chefes, reis e templos eram encarregados de
distribuir crédito e terra agriculturável para permitir que pequenos
proprietários servissem no exército e fornecessem trabalho de corvéia.
Governantes que se comportassem de modo egoísta era passíveis de serem
destituídos, ou os seus súbditos poderiam fugir, ou apoiar líderes
rebeldes ou atacantes estrangeiros que lhes prometessem cancelar dívidas
e redistribuir a terra mais equitativamente.

A função mais básica de reinos do Oriente Próximo era proclamar a “ordem
económica”, /misharum/ e /urarum,/ deixar um passado em branco mediante
cancelamentos de dívida, refletindo o Ano Jubileu do judaísmo. Não havia
“democracia” no sentido de cidadãos a elegerem os seus líderes e
administradores, mas a “realeza divina” era obrigada a alcançar o
objetivo económico implícito da democracia: “proteger o fraco do poderoso”.

O poder real era apoiado por templos e sistemas éticos ou religiosos. As
principais religiões que emergiram no primeiro milénio AC, as de Buda,
Lao-Tzu e Zoroastro, sustentavam que impulsos pessoais deveriam ser
subordinados à promoção do bem-estar geral e à ajuda mútua.

O que não parecia provável 2500 anos atrás era que uma aristocracia de
senhores da guerra conquistasse o mundo ocidental. Ao criar o que se
tornou o Império Romano, uma oligarquia tomou o controle da terra e, ao
seu tempo, o sistema político. Ela aboliu a autoridade real ou cívica,
mudou o fardo fiscal para classes mais baixas, e levou a população e a
indústria a endividarem-se.

Isto foi feito de modo puramente oportunista. Não houve tentativa de
defender isto ideologicamente. Não há sinal de um arcaico Milton
Friedman a emergir para popularizar uma nova ordem moral radical
celebrando a avareza, sob a alegação de que a cobiça é o que impulsiona
as economias para a frente, não para trás, convencendo a sociedade a
deixar a distribuição de terra e moeda ao “mercado” controlado por
corporações privadas e usurários ao invés da regulação comunalista pelos
governantes do palácio e dos templos – ou, por extensão, o socialismo de
hoje. Palácios, templos e governos cívicos eram credores. Eles não eram
forçados a contrair empréstimos para funcionar e, assim, não eram
sujeitos às exigências políticas de uma classe de credores privados.

Mas dirigir a população, indústria e mesmo governos à dívida a uma elite
oligárquica foi precisamente o que se verificou no ocidente, o qual está
agora a tentar estender a variante moderna deste regime económico
baseado em dívida – o capitalismo financeiro neoliberal centrado nos EUA
– a todo o mundo. É disso que trata a Nova Guerra Fria de hoje.

De acordo com a moralidade tradicional de sociedades primitivas, o
ocidente – a começar na Grécia clássica e Itália em torno do século VIII
– era bárbaro. O ocidente na verdade estava na periferia do mundo antigo
quando comerciantes sírios e fenícios introduziram a ideia da dívida
portadora de juros do Oriente Próximo a sociedades que não tinham a
tradição real de cancelamentos periódicos de dívida. A ausência de um
forte poder do palácio e da administração do templo permitiu emergirem
oligarquias credoras por todo o mundo mediterrânico.

A Grécia acabou por ser conquistada, primeiro pela Esparta oligárquica,
a seguir pela Macedónia e finalmente por Roma. Foi a avareza do sistema
legal deste último, a favor dos credores, que modelou a civilização
ocidental subsequente. Hoje, um sistema financiarizado de controle
oligárquico cujas raízes remontam a Roma está a ser apoiado e na verdade
imposto pelos EUA através da diplomacia da Nova Guerra Fria, pela força
militar e pelas sanções económicas sobre países que procuram resistir-lhe.

*Tomada de controle oligárquica da antiguidade clássica*

A fim de entender como a Civilização Ocidental se desenvolveu de um modo
que continha as sementes fatais da sua própria polarização económica,
declínio e queda, é necessário reconhecer que quando a Grécia clássica e
Roma aparecem no registo histórico uma Idade das Trevas havia
interrompido a vida económica desde o Oriente Próximo até o Mediterrâneo
oriental, de 1200 a cerca de 750 AC. Alterações climáticas aparentemente
provocaram grave despovoamento, acabando as economias de palácio, com a
vida a reverter ao nível local durante este período.

Algumas famílias criaram autocracias estilo máfia, pela monopolização da
terra e amarrando o trabalho através de várias de formas de clientelismo
coercivo e dívida. Acima de tudo estava o problema da dívida portadora
de juros que os comerciante do Oriente Próximo haviam introduzido em
terras do Egeu e do Mediterrâneo – sem os correspondentes cancelamentos
reais de dívida.

A partir desta situação “tiranos”-reformadores gregos surgiram nos
séculos VII e VI AC, desde Esparta até Corinto, Atenas e ilhas gregas.
Relata-se que a dinastia Cipselíada em Corinto e novos líderes
semelhantes em outras cidades cancelaram as dívidas que mantinham
clientes em servidão sobre a terra, redistribuíram esta terra à
cidadania e empreenderam gastos em infraestrutura pública para
intensificar o comércio, abrindo o caminho para o desenvolvimento cívico
e rudimentos de democracia. Esparta promulgou as austeras reformas
“licurganas” contra o consumo de ostentação e de luxo. A poesia de
Arquiloquos na ilha de Paros e Solon de Atenas denunciaram o impulso
para a riqueza pessoal como vicioso, levando à arrogância e prejudicando
outros – a ser punido pela deusa da justiça Nemesis. O espírito era
semelhante ao babilónio, judaico e de outras religiões morais.

Roma teve lendários sete reis (753-509 AC), que dizem ter atraído
imigrantes e impedido a oligarquia de explorá-los. Mas famílias ricas
derrubaram o último rei. Não havia líder religioso para contrapor-se ao
seu poder, pois as principais famílias aristocráticas controlavam o
sacerdócio. Não houve líderes que combinassem reforma económica interna
com uma escola religiosa e não havia no ocidente a tradição de
cancelamentos de dívida tais como Jesus advogou ao tentar restaurar o
Ano Jubileu para a prática judaica. Havia muitos filósofos estóicos e
sítios religiosos anfictiónicos
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Anfictionia> [NT] <#nt> tais como Delfi e
Delos que exprimiam uma religião de moralidade pessoal que afastava a
arrogância.

Os aristocratas de Roma criaram uma constituição anti-democrática e um
Senado, assim como leis que tornavam a servidão da dívida – e a
consequente perda de terra – irreversível. Embora a ética “politicamente
correta” fosse evitar envolver-se em comércio e usura, esta ética não
impedia um oligarca de emergir para tomar a terra e reduzia grande parte
da população à servidão. Por volta do século II AC Roma conquistou todo
a região mediterrânica e a Ásia Menor. As maiores corporações era os
coletores de impostos publicanos, os quais relata-se terem saqueado
províncias de Roma.

Sempre houve caminhos para os ricos agirem hipocritamente em harmonia
éticas com altruístas abstendo-se da cobiça comercial enquanto se
enriqueciam. Os ricos da antiguidade era capazes de compatibilizar-se
com tais éticas evitando eles próprios o empréstimo direto e o comércio,
atribuindo este “trabalho sujo” aos seus escravos ou libertos e gastando
os rendimentos de tais atividades em filantropia ostentatórias (as quais
tornaram-se um espetáculo aguardado nas campanhas eleitorais de Roma). E
depois de a cristandade se ter tornado a religião romana no século IV
DC, o dinheiro era capaz de comprar absolvição com doações generosamente
adequadas à igreja.

*O legado de Roma e o imperialismo financeiro do ocidente*

O que distingue as economias ocidentais das primitivas do Oriente
Próximo e da maior parte das sociedades asiáticas é a ausência de alívio
da dívida para restaurar um equilíbrio económico amplo. Todas as nações
ocidentais herdaram de Roma a santidade de princípios de dívida
favoráveis ao credor que priorizam os direitos dos credores e legitimam
a permanente transferência a credores da propriedade de devedores em
incumprimento. Desde a Roma antiga até aos Habsburgos da Espanha, da
Grã-Bretanha imperial até aos Estados Unidos, oligarquias ocidentais
apropriaram-se do rendimento e da terra de devedores, enquanto se
livravam de impostos transferindo-os para o trabalho e a indústria. Isto
provocou austeridade interna e levou oligarquias a buscarem prosperidade
através da conquista estrangeira, para ganhar de estrangeiros o que não
estava a ser produzido por economias internas conduzidas ao
endividamento e sujeitas a princípios legais pró-credores, transferindo
terra e outras propriedade para uma classe rentista.

A Espanha no século XVI saqueou vastos carregamentos de prata e ouro do
Novo Mundo, mas esta riqueza fugiu das suas mãos, dissipou-se na guerra
ao invés de ser investida na indústria interna. Deixada com uma economia
desigual, polarizada e profundamente endividada, os Habsburgos perderam
as suas antigas possessões, a República Holandesa, a qual prosperou como
sociedade menos oligárquica do que a outra que auferia mais poder como
credor do que como devedor.

A Grã-Bretanha seguiu uma ascensão e queda semelhante. A I Guerra
Mundial deixou-a com pesadas dívidas de armas para com a sua antiga
colónia, os Estados Unidos. Ao impor a austeridade anti-trabalho
internamente, buscando pagar estas dívidas, a área da libra esterlina
britânica tornou-se posteriormente um satélite do US dólar nos termos do
/American Lend-Lease/ na II Guerra Mundial e do /British Loan/ de 1946.
As políticas neoliberais de Margaret Thatcher e Tony Blair aumentaram
drasticamente o custo de vida pela privatização e monopolização da
habitação pública e infraestrutura, eliminando a antiga competitividade
industrial britânica pela elevação do custo de vida e portanto dos
níveis salariais.

Os Estados Unidos seguiram uma trajetória semelhante de super-extensão
imperial à custa da sua economia interna. Seus gastos militares além-mar
a partir de 1950 obrigaram o dólar a desligar-se do ouro em 1971. Esta
mudança teve o benefício não previsto de inaugurar um “padrão dólar” que
permitiu à economia estado-unidense e à sua diplomacia militar obterem
refeições gratuitas do resto do mundo, aumentando o endividamento em
dólares de bancos centrais de outros países sem qualquer restrição prática.

A colonização financeira da ex-União Soviética na década de 1990 pela
“terapia de choque” das privatizações dádivas, seguida em 2001 pela
admissão da China à Organização Mundial de Comércio – com a expectativa
de que a China iria, como a Rússia de Yeltsin, tornar-se uma colónia
financeira dos EUA – levou a economia da América a desindustrializar-se
através da transferência do emprego para a Ásia. A tentativa de obrigar
a submissão ao controle estado-unidense através do início da Nova Guerra
Fria de hoje fez com que a Rússia, a China e outros países rompessem com
o comércio e o sistema de investimento dolarizado, deixando os Estados
Unidos e a Europa da NATO a sofrerem austeridade e aprofundamento da
desigualdade de riqueza pois os rácios de endividamento estão a
ascendfer para indivíduos, corporações e organismos governamentais.

Foi apenas a uma década que o senador John McCain e o presidente Barack
Obama caracterizaram a Rússia como um mero posto de gasolina com bombas
atómicas. Isso poderia ser dito agora dos Estados Unidos, que tem como
base do seu poder económico o controle do comércio de petróleo do
ocidente, enquanto os seus principais excedentes de exportação são
produtos agrícolas e armas. A combinação de alavancamento de dívida
financeira e privatização tornou a América uma economia de alto custo,
perdendo a sua antiga liderança industrial, tal como a Grã-Bretanha. Os
Estados Unidos estão agora a tentar viver principalmente de ganhos
financeiros (juros, lucros sobre investimento estrangeiro e criação de
crédito pelo banco central para inchar ganhos de capital) ao invés de
criar riqueza através do seu próprio trabalho e indústria. Os seus
aliados ocidentais procuram fazer o mesmo. O eufemismo deste sistema
dominado pelos EUA é “globalização”, mas isto é simplesmente uma forma
de colonialismo financeiro – apoiado pela habitual ameaça de força
militar e “mudanças de regime” encobertas para impedir países de se
retirarem do sistema.

Este sistema imperial baseado nos EUA e na NATO procura endividar países
mais fracos e forçá-los a entregar o controle das suas políticas ao
Fundo Monetário Internacional e ao Banco Mundial. Obedecer ao “conselho”
neoliberal anti-trabalho destas instituições leva a uma crise de dívida
que obriga a taxa de câmbio do país devedor a depreciar-se. O FMI então
“resgata-os” da insolvência com a “condicionalidade” de que liquidem o
sector público e comutem impostos sobre a riqueza (especialmente a de
investidores estrangeiros) para o trabalho.

Oligarquia e dívida são as características definidoras das economias
ocidentais. Os gastos militares da América e as guerras quase constantes
deixaram o seu próprio Tesouro profundamente endividado a governos
estrangeiros e seus bancos centrais. Os Estados Unidos estão portanto a
seguir o mesmo caminho pelo qual o imperialismo da Espanha deixou a
dinastia dos Habsburgos em dívida para com banqueiros europeus, assim
como a participação da Grã-Bretanha em duas guerras mundiais na
esperança de manter sua posição dominante no mundo deixou-a endividada e
acabou com a sua antiga vantagem industrial. A ascensão da dívida
externa da América tem sido sustentada pelo seu privilégio de “divisa
chave” pois emite a sua própria moeda sob o “padrão dólar” sem que
outros países tenham qualquer expectativa razoável de alguma vez serem
pagos – exceto com ainda mais “dólares de papel”.

Esta afluência monetária capacitou a elite administrativa da Wall Street
a aumentar a sobrecarga rentista da América pela financiarização e
privatização, aumentando o custo de vida e de fazer negócio, tal como
ocorreu na Grã-Bretanha sob as políticas neoliberais de Margaret
Thatcher e Tony Blair. Empresas industriais responderam mudando as suas
fábricas para economias de baixos salários a fim de maximizar os lucros.
Mas à medida que a América se desindustrializa com o aumento da
dependência da importação da Ásia, a diplomacia dos EUA prossegue uma
Nova Guerra Fria que leva as economias mais produtivas do mundo a
desligarem-se da órbita económica estado-unidense.

O aumento da dívida destrói economias quando ele não é usado para
financiar novo investimento de capital em meios de produção. A maior
parte do crédito ocidental hoje é criada para inchar preços de ações,
títulos e imobiliário, não para restaurar capacidade industrial. Em
consequência desta abordagem dívida-sem-produção, a economia interna nos
EUA tem sido esmagada pelo endividamento para com a sua própria
oligarquia financeira. Apesar dos almoços gratuitos da economia
americana na forma de contínuos aumentos da sua dívida oficial para com
bancos centrais estrangeiros – sem nenhuma perspetiva visível de a sua
dívida internacional ou interna vir a ser paga – a sua dívida continua a
expandir-se e a economia tornou-se ainda mais alavancada pela dívida. A
América polarizou-se com riqueza extrema concentrada no topo enquanto a
maior parte da economia é conduzida profundamente ao endividamento.

*O fracasso de democracias oligárquicas para proteger a generalidade da
população endividada*

O que torna oligárquicas as economias ocidentais é o seu fracasso em
proteger a cidadania de ser conduzida à dependência dos credores da
classe que possui a propriedade. Estas economias retiveram leis de
dívida baseadas no direito romano, mais notavelmente a prioridade dos
direitos do credor sobre a propriedade dos devedores. Os credores do Um
Porcento tornaram-se uma oligarquia politicamente poderosa apesar das
reformas políticas nominalmente democráticas que ampliam direitos de
voto. Agências regulatórias do governo foram capturadas e o poder fiscal
tem sido tornado regressivo, deixando o controle económico e o
planeamento nas mãos da elite rentista.

Roma nunca foi uma democracia. E, em qualquer caso, Aristóteles
reconhecia que democracias evoluíam mais ou menos naturalmente para
oligarquias – as quais afirmavam serem democráticas para objetivos de
relações-públicas enquanto pretendiam que a sua crescente forte
concentração de riqueza no topo seria pelas melhores razões. A retórica
de hoje do gotejamento /(trickle-down)/ apresenta administradores da
banca e da finança como se dirigissem as poupanças do modo mais
eficiente para produzir prosperidade para toda a economia, não apenas
para si próprios.

O presidente Biden e os seu neoliberais do Departamento de Estado acusam
a China e qualquer outro país que procure manter a sua independência e
auto-suficiência económica de serem “autocráticos”. A sua
prestidigitação retórica justapõe democracia a autocracia. O que eles
chamam “autocracia” é um governo suficientemente forte para impedir uma
oligarquia financeira orientada pelo ocidente de endividar a população
para com ela – e a seguir intrometer-se nas suas terras e outras
propriedades passando-as para as suas próprias mãos e aquelas dos seus
apoiantes americanos e outros apoiantes estrangeiros.

O duplo pensar orwelliano de chamar oligarquias de “democracias” é
seguido por uma definição de mercado livre como aquele que é livre para
a busca de renda financeira. A diplomacia dos EUA tem endividado países,
forçando-os a venderem o controle da sua infraestrutura pública e
transformando os “altos comandos” das suas economias em oportunidades
para extrair renda de monopólio.

Esta retórica autocracia vs democracia é semelhante à retórica que as
oligarquias grega e romana utilizavam quando acusavam reformadores
democráticos de buscarem a “tirania” (na Grécia) ou a “realeza” (em
Roma). Foram os “tiranos” gregos que derrubaram autocracias semelhantes
à máfia nos séculos VII e VI AC, abrindo o caminho para os arranques
económicos e proto-democráticos de Esparta, Corinto e Atenas. E foram
reis de Roma que construíram sua cidade-estado ao darem apoio à posse da
terra pelos seus cidadãos. Esta política atraiu imigrantes das
cidades-estado italianas vizinhas cujas populações eram forçadas à
servidão da dívida.

O problema é que democracias ocidentais não se demonstram aptas a
impedir a emergência de oligarquias e a polarização da distribuição do
rendimento e da riqueza. Desde Roma, “democracias” oligárquicas não
protegem os seus cidadãos dos credores que procuram apropriar-se da
terra, do seu rendimento rentístico e do domínio público para si mesmos.

Basta perguntar-nos quem hoje está a aprovar e impor políticas que
procuram por em causa a oligarquia a fim de proteger os meios de vida
dos cidadãos, a resposta é que isto é feito pelos estados socialistas.
Só um estado forte tem o poder de por em causa uma oligarquia financeira
e em busca de rendas. A embaixada da China nos EUA demonstrou isto na
sua réplica à descrição da China feita pelo presidente Biden como uma
autocracia:

    Preso a uma mentalidade de Guerra Fria e à lógica hegemonista, os
    EUA seguem uma política de blocos, inventam a narrativa “democracia
    versus autoritarismo” … e intensificam alianças militares
    bilaterais, numa clara tentativa de combater a China.

    Guiado por uma filosofia centrada no povo, desde o dia sua fundação
    … o Partildo tem trabalhado incansavelmente pelo interesse do povo e
    tem-se dedicado a realizar as aspirações populares por uma vida
    melhor. A China vem avançando em todo o processo da democracia
    popular, promovendo a salvaguarda dos direitos humanos e defendendo
    a equidade social e a justiça. O povo chinês agora desfruta de mais
    amplos e mais extensos e abrangentes direitos democráticos.[1] <#notas>

Quase todas as primitivas sociedades não-ocidentais tinham proteções
contra a emergência de oligarquias mercantis e rentistas. Eis porque é
tão importante reconhecer que aquilo que se tornou civilização ocidental
representa uma rutura com o Oriente Próximo, a Ásia do Sul e do Leste.
Cada uma destas regiões tinha o seu próprio sistema de administração
pública para salvaguardar seu equilíbrio social da riqueza comercial e
monetária que ameaçava destruir o equilíbrio económico se não fosse
controlada. Mas o carácter económico do ocidente foi modelado pelas
oligarquias rentistas. A República de Roma enriquecia a sua oligarquia
pela retirada da riqueza das regiões que conquistava, deixando-as
empobrecidas. O que permanece na estratégia extrativa do colonialismo
europeu subsequente e, mais recentemente, da globalização neoliberal
centrada nos EUA. O objetivo tem sido sempre “libertar” oligarquias dos
constrangimentos à sua própria satisfação.

A grande questão é “liberdade” para quem? A economia política clássica
definia um mercado livre como aquele livre de rendimento não merecido
/(unearned income),/ a começar pela renda da terra e renda de outros
recursos naturais, renda de monopólio, juros financeiros e privilégios
relativos aos credores. Mas no fim do século XIX a oligarquia rentista
patrocinou uma contra-revolução fiscal e ideológica, redefinindo mercado
livre como aquele livre para rentistas extraírem renda económica –
rendimento não merecido.

Esta rejeição da crítica clássica do rendimento rentista tem sido
acompanhada redefinindo que “democracia” exige ter um “mercado livre” da
variedade oligárquica rentista, anti-clássica. Ao invés de os governos
serem os reguladores económicos no interesse público, a regulação
pública do crédito e dos monopólios é desmantelada. Isto permite às
empresas que cobrem o que quiserem pelo crédito que fornecem e pelos
produtos que vendem. Privatizar o privilégio de criar moeda-crédito
permite ao sector financeiro assumir o papel de distribuir a propriedade.

O resultado tem sido centralizar o planeamento económico na Wall Street,
na City de Londres, na Bolsa de Paris e em outros centros financeiros
imperiais. É disso que trata a Nova Guerra Fria de hoje: proteger este
sistema de capitalismo financeiro neoliberal centrado nos EUA, pela
destruição ou isolamento dos sistemas alternativos da China, Rússia e
seus aliados, enquanto procuram financiarizar ainda mais o antigo
sistema colonialista que patrocina o poder do credor ao invés de
proteger devedores, impondo a austeridade do endividamento ao invés do
crescimento e tornando irreversível a perda da propriedade através do
arresto ou da venda forçada.

*(continua)*


        12/Julho/2022


      [NT] Em 1826 Bolívar organizou um congresso a que denominou
      “Anfictiónico
    Em
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/m_hudson/colapso_11jul22_1.html
12/7/2022

Nenhum comentário:

Postar um comentário