sábado, 15 de julho de 2023

Um conto sobre duas cidades

 

 

Alastair Crooke


*A convicção ocidental de que a fragilidade da Rússia é explicada por seu afastamento das doutrinas econômicas 'anglo' reflete uma ilusão.*

<https://sakerlatam.org/wp-content/uploads/2023/07/allez.png>Crédito da
imagem: Strategic Culture Foundation

O caos que os ‘especialistas’ ocidentais esperavam
<https://thegrayzone.com/2023/06/26/russias-civil-war-beltway-expert/>,
‘com entusiasmo libidinoso’, se desenrolaria na Rússia “que certamente
apresentaria “russos… matando russos” e com Putin “provavelmente
escondido em algum lugar” – veio – só que explodiu na França, onde não
era esperado, com Macron na corda bamba ao invés de ser Putin em Moscou.

Há muito a ser destilado dessa interessante inversão de expectativas e
de eventos – de um conto sobre duas insurreições muito diferentes:

Na tarde de sábado, depois que Prigozhin chegou a Rostov, surgiram
notícias nos Estados Unidos de que Prigozhin havia fechado um acordo com
o presidente Lukashenko para encerrar seu protesto e ir para a
Bielorrússia. Assim o caso terminou em grande parte sem sangue
derramado. Nenhum apoio foi dado a Prigozhin, nem da classe política nem
dos militares. O establishment ocidental ficou titubeante; suas
expectativas aparentemente inexplicavelmente esmagadas, em poucas horas.

Igualmente chocantes para o Ocidente, no entanto, foram os vídeos vindos
de Paris e de cidades por toda a França. Carros queimando; delegacias de
polícia e prédios municipais em chamas; a polícia atacou e lojas
amplamente arrombadas e saqueadas. Essas eram cenas, como se fossem
tiradas de ‘A Queda da Roma Imperial’.

No final das contas, essa insurreição também desapareceu. No entanto,
não foi nada como o desaparecimento do ‘motim’ de Prigozhin, que
terminou com uma demonstração de apoio ao Estado russo /per se /e ao
presidente Putin, pessoalmente.

Na insurreição francesa, precisamente nada foi ‘resolvido’ – o Estado
sendo visto como ‘além de conserto’ em sua iteração atual: Uma República
não mais. E a posição pessoal do presidente Macron permaneceu insultada,
possivelmente além da reabilitação.

Ao contrário da instância russa, o presidente francês viu grande parte
da polícia se voltar contra ele (com o sindicato da polícia emitindo uma
declaração que cheirava a iminência de guerra civil, com os
manifestantes rotulados de ‘vermes’). Os generais do Exército também
alertaram Macron para ‘controlar’ a situação ou seriam forçados a fazê-lo.

Claramente – mesmo que por apenas nove dias – os meios de execução da
Lei do Estado viraram as costas para o Chefe de Estado. Toda a história
nos diz que um líder que perdeu o apoio de seus agentes executores pode
perder-se logo também (na próxima insurreição).

Este motim dos /banlieues/ é facilmente descartado como uma ferida
antiga de origem argelina/marroquina ressurgindo, mais uma vez. É
verdade que o assassinato de um jovem de origem norte-africana foi o
estopim imediato de tumultos em várias cidades – todas em alvoroço em
uma hora.

Para aqueles que desejam descartar qualquer significado mais amplo
(apesar dos protestos em massa anteriores não serem dos /banlieusards/),
ele é descartado, com murmúrios de como os franceses estão de alguma
forma propensos a ir para as ruas!

Falando francamente, o problema subjacente que a França acabou de
revelar é a crise pan-europeia – de longa fermentação – para a qual não
há soluções prontas. É uma crise que ameaça toda a Europa.

Os comentaristas, no entanto, são rápidos em sugerir que os protestos de
rua (como os da França) não podem ameaçar um Estado europeu – os
protestos lá foram difusos e sem um núcleo político.

Stephen Kotkin, no entanto, escreveu um livro /Uncivil Society/ em
resposta ao mito prevalente de que sem uma sociedade civil paralela
organizada, se opondo e finalmente deslocando o regime, os estados da UE
estão perfeitamente seguros e podem ‘continuar’ ignorando a raiva popular.

A tese de Kotkin é que
<https://theworthyhouse.com/2022/02/07/uncivil-society-1989-and-the-implosion-of-the-communist-establishment-stephen-kotkin/> os regimes comunistas caíram, não apenas inesperada e basicamente da noite para o dia, e (exceto na Polônia) sem a existência prévia de qualquer oposição organizada. É um mito completo que o comunismo caiu como resultado de uma sociedade civil oposta, ele escreve. O mito persiste, no entanto, dentro de um Ocidente que cria ativamente sociedades civis de oposição em prol de seus objetivos de mudança de regime.

Em vez disso, a única estrutura organizada na Europa Oriental comunista
era a Nomenklatura governante. Kotkin estima essa burocracia
tecnocrática dominante em cerca de cinco a sete por cento da população.
Essas pessoas interagiam umas com as outras diariamente e formavam a
entidade coerente que tinha poder real. Eles viviam uma realidade
paralela privilegiada, totalmente alijada do mundo ao seu redor, que
ditava todos os aspectos da vida em seu próprio benefício – até que um
dia isso não aconteceu. Foi essa tecnocracia que entrou em colapso em 1989.

O que causou a queda repentina desses Estados? A resposta curta de
Kotkin é uma queda de confiança em cascata: uma “corrida política aos
bancos”. E o evento crucial na derrubada de todos os governos comunistas
foi o protesto de rua. Assim, os eventos de 1989 surpreenderam
totalmente todo o Ocidente devido à falta de oposição política organizada.

O ponto aqui, é claro, é que a tecnocracia europeia de hoje, habitando
suas políticas extremas de gênero, diversidade e realidades verdes
paralelas (à da maioria dos europeus), presunçosamente assume que com o
controle da Narrativa, eles podem suprimir protestos e impor um futuro
/Fórum Econômico Mundial/ que apaga identidades e culturas nacionais sem
impedimentos.

O que está acontecendo na França – de diversas formas – é precisamente
uma “corrida aos bancos política” do presidente francês. E o que está
acontecendo na França, no entanto, pode se espalhar…

Claro, protestos de rua em Estados comunistas já aconteceram antes. O
que era diferente em 1989, argumenta Kotkin, era a extrema fragilidade
do regime. Os dois impulsionadores imediatos – além da simples
incompetência e esclerose – foram a recusa de Mikhail Gorbachev (como
Macron durante esta recente insurreição) em parar uma repressão, além do
fracassado esquema econômico Ponzi em que todos esses Estados se
envolveram (empréstimo em moeda forte do Ocidente para sustentar suas
economias).

É aqui que podemos entender por que os eventos recentes na França são
tão graves e afetam mais amplamente. Pois, perversamente, a Europa está
trilhando essencialmente o mesmo caminho (com características
ocidentais) que o Leste Europeu trilhou.

No final das duas Guerras Mundiais, os europeus ocidentais buscavam uma
sociedade mais justa (a sociedade industrial que precedeu as guerras era
francamente feudal e brutal). Os europeus queriam um novo acordo que
também cuidasse dos menos favorecidos. Não era o socialismo em si que se
buscava, embora alguns claramente desejassem o comunismo.
Essencialmente, tratava-se de reinserir alguns valores éticos em uma
esfera econômica de /laissez-faire/ amoral.

Não funcionou bem. O sistema cresceu, até que os Estados ocidentais não
podiam mais se sustentar. A dívida disparou. E então, na década de 1980,
um aparente ‘remédio’ – importado da Escola de Chicago de fanáticos
neoliberais, pregando o desgaste da infraestrutura social e a
financeirização da economia – foi amplamente adotado.

Os proselitistas de Chicago disseram à PM Thatcher para parar de
construir navios ou fabricar carros – isso era para a Ásia. A
‘indústria’ de serviços financeiros era a galinha dos ovos de ouro no
futuro.

A cura provou ser ‘pior que a doença’. Paradoxalmente, a falha desse
enigma econômico em desenvolvimento foi percebida por Friedrich List e
pela Escola Alemã de Economia, já no século XIX. Ele viu a falha no
modelo ‘Anglo’ liderado pela dívida e baseado no consumo: que (em poucas
palavras) o bem-estar de uma sociedade e sua riqueza geral são
determinados não pelo que a sociedade pode /comprar/, mas pelo que ela
pode /fazer/.

List previu que uma virada para a valorização do consumo – acima de
cuidar da construção da economia real – inevitavelmente levaria a uma
atenuação da economia real: à medida que o consumo e um efêmero setor
financeiro e de serviços sugavam o ‘oxigênio’ de novos investimentos da
manufatura da produção real (ainda necessária para pagar as
importações), a economia real definharia.

A autossuficiência seria corroída e uma base cada vez menor de criação
de riqueza real sustentaria números cada vez menores em empregos
adequadamente remunerados. E uma dívida cada vez maior se tornaria
necessária para sustentar um grupo cada vez menor de empregados
produtivos. Isso representa o ‘Conto da França’.

Nos EUA hoje, por exemplo, os números oficialmente
<https://www.zerohedge.com/personal-finance/more-105-million-working-age-americans-do-not-have-job-right-now> de desempregados são<https://www.zerohedge.com/personal-finance/more-105-million-working-age-americans-do-not-have-job-right-now>6,1 milhões de americanos; ainda assim, 99,8 milhões de americanos em idade ativa são considerados “fora da força de trabalho”. Assim, um total de 105 milhões de americanos em idade produtiva não têm emprego hoje.

Esta é a mesma ‘armadilha’ que afeta a França (e grande parte da
Europa). A inflação está subindo; a economia real está se contraindo; e
o emprego bem remunerado encolhendo – ao mesmo tempo em que o tecido de
apoio foi eviscerado (por razões ideológicas).

É sombrio. O aumento da imigração para a Europa agrava o problema. Todos
podem ver isso, exceto a Nomenklatura europeia que permanece na negação
ideológica da ‘sociedade aberta’.

Aqui está o problema: não há soluções. Desfazer as contradições
estruturais desse modelo de Chicago está além das atuais capacidades
políticas ocidentais.

A Esquerda não tem solução, e a Direita não pode opinar – Zugzwang
(xeque-mate).

O que nos traz de volta ao ‘Conto sobre as Duas Cidades’ e suas
experiências de insurgência muito diferentes: Na França, não há solução.
Na Rússia, Putin e milhões de outros experimentaram a “terapia de
choque” da liberação de preços e do hiperfinanceiro durante os anos
Yeltsin.

E Putin ‘entendeu’. Como List previu, o modelo financeirizado ‘Anglo’
corroeu a autossuficiência nacional e encolheu a base da criação real de
riqueza, que fornecia os empregos necessários para sustentar a população
russa com trabalho.

Muitas pessoas perderam seus empregos durante os anos Yeltsin; não foram
pagas; e viram o valor real de seus ganhos despencar – enquanto
oligarcas pipocavam aparentemente do ar e vinham saquear qualquer
instituição que tivesse valor. Houve hiperinflação, gangsterismo,
corrupção, corridas monetárias, fuga de capitais, pobreza desesperadora,
aumento do alcoolismo, declínio da saúde e exibições vulgares e
esbanjadoras de riqueza por parte dos super-ricos.

No entanto, a principal influência sobre Putin veio do presidente Xi.
Este último havia deixado claro, em uma análise contundente intitulada
“Por que a União Soviética se desintegrou?”, que o repúdio soviético à
história do PCUS de Lênin, de Stálin, “foi destruir ao caos a ideologia
soviética e engajar em niilismo histórico”.

Xi argumentou que, dados os dois polos de antinomia ideológica – o da
construção anglo-americana, por um lado, e a crítica escatológica
leninista do sistema econômico ocidental, por outro – os “estratos
dominantes soviéticos deixaram de acreditar” no último e,
consequentemente, caíram em um estado de niilismo (com o pivô para a
ideologia do mercado liberal ocidental da era Gorbachev-Yeltsin).

O ponto de Xi foi claro: a China nunca havia feito esse desvio. Em
termos simples, para Xi, o desastre econômico de Yeltsin foi o resultado
da virada para o liberalismo ocidental. E Putin concordou.

Nas palavras de Putin, a China “conseguiu da melhor maneira possível, na
minha opinião, usar as alavancas da administração central (para) o
desenvolvimento de uma economia de mercado… A União Soviética não fez
nada disso, e os resultados de uma política econômica ineficaz impactou
a esfera política”.

Mas isso é precisamente o que a Rússia, sob Putin, corrigiu. Misturar a
ideologia de Lênin com os insights econômicos de List (um seguidor de
List, o conde Sergei Witte foi primeiro-ministro na Rússia do século
XIX) tornou a Rússia autossuficiente.

O Ocidente não a vê dessa forma. Este último persiste em ver a Rússia
como um Estado frágil e friável, tão em dificuldades financeiras que
qualquer reversão na frente de batalha ucraniana poderia provocar um
colapso financeiro em pânico (como visto em 1998) e anarquia política em
Moscou, semelhante à da era Yeltsin.

Com base nessa análise falha e absurda, o Ocidente lançou uma guerra
contra a Rússia via Ucrânia. A estratégia de guerra sempre se baseou na
fragilidade política e econômica russa (e em um exército atolado em
rígidas estruturas de comando de estilo soviético).

A guerra pode ser atribuída em grande parte a essa falha em entender a
forte convicção de Xi e Putin de que a devastação de Yeltsin foi o
resultado inevitável da virada para o liberalismo ocidental. E que essa
falha exigia uma correção ajustada, o que Putin fez devidamente – mas
que o Ocidente não percebeu.

Os EUA, no entanto, persistem, contra as evidências, na convicção de que
a fragilidade inerente da Rússia é explicada por seu afastamento das
doutrinas econômicas ‘anglo’. Isso reflete a pura ilusão ocidental.

A maioria dos russos, por outro lado, atribui a resiliência da Rússia
diante de um ataque financeiro ocidental combinado como explicável,
porque Putin, em grande parte, levou a Rússia à autossuficiência, fora
da esfera econômica ocidental dominada pelos EUA.

Assim, o paradoxo é explicado: Diante da ‘insurgência’ de Prigozhin, os
russos expressaram sua confiança e apoio ao Estado russo. Já na
insurgência francesa, o povo expressou descontentamento e raiva pela
‘armadilha’ em que se encontra. A corrida política ao ‘banco’ Macron
está em andamento.

Fonte: https://strategic-culture.org/news/2023/07/13/tale-of-two-cities


Em
SAKER LATINOAM
https://sakerlatam.org/um-conto-sobre-duas-cidades/
13/7/2023

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