sexta-feira, 5 de abril de 2024

Lula e seus adversários

 

 

Paulo Nogueira Batista Jr

"A situação do governo Lula, difícil desde o primeiro dia, parece ter
sofrido alguma deterioração nos meses recentes. Não chega a ser
surpreendente", indica

A situação do governo Lula, difícil desde o primeiro dia, parece ter
sofrido alguma deterioração nos meses recentes. Não chega a ser
surpreendente. Sempre há uma lua de mel e ela sempre acaba. Mais
importante, a herança recebida dos governos anteriores é pesada, são
muitas as dificuldades de recuperar a máquina pública e – ponto de quero
tratar hoje – são poderosos os adversários políticos do governo.

Cheguei a pensar em intitular o artigo “Governo sitiado”, mas me pareceu
pesado e sombrio demais. Aí pensei em amenizar colocando um ponto de
interrogação, mas isso também não resolveu. Não cabe espalhar pessimismo
e desânimo. Os adversários são poderosos, mas o governo Lula tem seus
recursos e pode prevalecer. Antes de entrar no assunto, porém, faço uma
advertência. As questões de política e economia política são sempre
pantanosas, obscuras, sujeitas a incertezas radicais. Quem se aventura a
escrever ou falar sobre isso precisa avisar o leitor ou a leitora de que
o que se diz ou coloca no papel fica sempre no terreno das conjecturas e
hipóteses. Muitos dos que se aventuram não o fazem e, pior, se deixam
embalar pela própria retórica e cometem não só afirmações taxativas
sobre o presente e o passado, como se lançam em previsões, adotando às
vezes um tom profético. E a história mostra que mesmo os grandes
profetas se enganam.   *Os cinco blocos de poder* Mas vamos ao assunto.
O objetivo fundamental dos adversários do governo Lula é claro e
cristalino: enfraquecê-lo para que chegue derrotável à eleição de 2026.
Derrotável significa para eles não apenas a possiblidade de ganhar a
eleição. Caso isso não seja possível, desejariam encontrar um Lula
fragilizado, suscetível a fazer concessões importantes.

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Obviamente, os adversários formam um grupo bem heterogêneo, o que
facilita o seu enfrentamento. Lula, com sua vasta experiência e grande
habilidade, sabe aproveitar-se dessas diferenças para avançar.

Para facilitar a exposição, vou distinguir quatro grandes blocos
políticos, ou cinco se incluirmos a centro-esquerda liderada pelo
Presidente da República. Os adversários principais são:

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 1. A extrema-direita, que emerge depois de 2018 com a eleição de Bolsonaro.
 2. A direita tradicional ou centro-direita, isto é, o/establishment/,
    os donos do poder e do capital, cuja fração hegemônica é o capital
    financeiro, o chamado “mercado”.
 3. A direita fisiológica, o chamado ”Centrão”, que não tem ideologia
    definida, mas controla o Congresso e age de maneira consistente,
    sempre procurando abocanhar pedaços de poder e recursos orçamentários.
 4. Os militares, quase sempre hostis à esquerda e historicamente
    propensos a golpes de Estado.

Com exceção da direita fisiológica, todos esses blocos de poder têm
importantes ramificações internacionais. A extrema-direita bolsonarista
encontra eco e apoio em Trump nos Estados Unidos, em Milei, na
Argentina, e em diversos países da Europa, onde a extrema-direita
governa ou cresce em popularidade e ameaça vencer eleições. A direita
tradicional sempre teve ligações umbilicais com os EUA e encontra
contrapartes influentes em todos os países desenvolvidos e no resto da
América Latina. Os militares, por sua vez, mantêm vínculos históricos
com os militares americanos, sendo a sua formação muito influenciada
pelas concepções políticas e estratégicas do Departamento de Defesa.

Qualquer taxonomia é sempre uma simplificação. As fronteiras entre os
blocos políticos são fluidas. Há muitas figuras intermediárias, com os
pés em mais de uma canoa. Com frequência, os blocos se misturam,
estabelecendo diferentes alianças políticas e combinações variáveis ao
longo do tempo. A própria palavra “bloco” talvez não seja a mais
adequada, pois passa uma sensação enganosa de solidez e uniformidade.

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*A Arca de Noé*

É imenso, portanto, o desafio para Lula. Quando se critica o governo
atual, e eu mesmo o faço com alguma frequência, não se deve perder de
vista esse contexto político – tanto mais que Lula e a centro-esquerda,
com todas as suas deficiências e limitações, são os únicos que oferecem
uma perspectiva de desenvolvimento com justiça. Politicamente falando,
recorde-se, não há nada significativo à esquerda de Lula. A extrema-
esquerda existe, mas não tem peso político real e também não oferece
saídas convincentes para nossos problemas.

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O melhor que se pode esperar nesse cenário tão complicado é que o
governo Lula consiga negociar com alguns adversários, reforçando a sua
posição – sem, contudo, transigir no essencial e sem se descaracterizar.
Esse requisito é fundamental, como tento explicar na sequência.

A estratégia de Lula, desde 2021 ou 2022, tem sido isolar o principal
adversário, a extrema-direita. Foi assim que ele venceu a eleição.
Compôs com a direita tradicional para derrotar Bolsonaro que, em busca
da reeleição, contava com a máquina do governo e a fidelidade, ou pelo
menos a simpatia, de uma parte muito expressiva do eleitorado. Lula
ganhou por pequena margem, o que sugere que fez a escolha correta.

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Note-se, a propósito, que os donos do poder têm sempre uma pequena
dificuldade no Brasil: raramente ganham eleições presidenciais. Os seus
candidatos não costumam ser competitivos e nem sempre fazem bonito
nessas disputas. Historicamente, os donos do poder recorrem a dois
expedientes tenebrosos. Apoiam candidatos caricatos, mas bons de voto
(Jânio em 1960, Collor em 1989 e Bolsonaro em 2018). Se esta alternativa
não está à mão, eles não se vexam em descartar suas supostas
”credenciais democráticas” para patrocinar golpes militares (como
fizeram contra Getúlio, Juscelino e Jango) ou parlamentares (como
fizeram contra Dilma).  

No caso de Bolsonaro, assim como nos de Jânio e Collor, suponha-se que
seria possível controlá-los depois da eleição. De 2019 em diante,
entretanto, a desordem foi maior do que se esperava e a possibilidade de
controlar Bolsonaro menor do que se esperava. O /establishment/
brasileiro, ou uma parte significativa dele, parece ter se dado conta de
que mais um mandato para Bolsonaro poderia ser desastroso para seus
interesses. Tentaram uma terceira via, que não decolou. Lula foi
percebido como alternativa, contanto que se mostrasse disposto a
negociar com eles. Encontraram receptividade. Lula deixou claro que não
seria revanchista nem radical. Formou-se então a Arca de Noé (expressão
do próprio Lula), a ampla e heterogênea coligação que venceria as
eleições em 2022.

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Não querendo e nem podendo praticar um estelionato eleitoral, Lula teve
que formar um governo heterogêneo, tão heterogêneo quanto a Arca de Noé.
Na área econômica, a presença de neoliberais se faz sentir claramente.
Não só no primeiro escalão, como no segundo escalão dos ministérios e do
Banco Central.

Como a direita fisiológica controla o Congresso, Lula também teve que
abrigá-la no ministério e até numa instituição financeira da importância
estratégica da Caixa Econômica Federal. Assim, o primeiro e o segundo
escalão do governo são uma mistura indigesta de quadros da centro-
esquerda, da centro-direita e da direita fisiológica.

Ao mesmo tempo, Lula busca aplacar os militares. Não se dispõe a
confrontá-los; ao contrário, deseja cooptá-los ou pelo menos neutralizá-
los. Foi por isso que resolveu não patrocinar eventos de condenação do
golpe militar de 1964, no seu aniversário de 60 anos. Parte da esquerda
ficou revoltada, sem levar na devida conta, talvez, o quadro político
adverso que tentei descrever acima.

*A caminho das eleições de 2026 *

Prevalece no governo (ou assim me parece) a percepção de que a principal
e mais destrutiva face da oposição continua sendo a extrema-direita
bolsonarista. Imagine, leitor ou leitora, que ela volte ao poder em
2027, seja com Bolsonaro, seja com alguém que ele indique. Não preciso
falar mais nada.

O tempo dirá, mas os demais blocos não parecem ter força eleitoral para
se contrapor à centro-esquerda nas eleições de 2026. Será provavelmente
tão difícil quanto foi em 2018 e 2022 construir uma terceira via
competitiva.

Assim, a aliança constituída para as eleições de 2022 tende a se repetir
em 2026. Não se deve esperar que Lula faça qualquer movimento para
desalojar a direita tradicional de suas posições de poder no governo.
Tampouco que tente romper com a direita fisiológica. Ou que descuide das
sempre problemáticas relações com as Forças Armadas. Confrontação nunca
foi um traço da personalidade do Presidente da República. Ele chegou
aonde chegou escolhendo suas batalhas e comendo pelas beiradas. Por que
mexeria nesse time que está ganhando?

*A máscara se apega ao rosto *

Para terminar, um alerta que me parece importante. Apesar de tudo que
escrevi acima, há um risco que não pode ser negligenciado: o de que o
governo Lula e com ele toda a centro-esquerda se descaracterize e perca
o rumo estratégico. E esse risco é especialmente relevante na disputa
com a extrema-direita.

Onde reside a força política e eleitoral de figuras como Trump,
Bolsonaro e Milei? Em grande parte, na difusão da ideia de que eles se
opõem a um “sistema”, um conjunto de instituições e interesses viciados
que exclui a grande massa da população, inclusive a classe média. Na
Europa, por exemplo, os partidos socialistas e social-democratas se
confundiram com o /establishment/ e copatrocinaram nas últimas décadas
políticas econômicas e sociais excludentes, a chamada agenda neoliberal.
Assim, quem cresceu com a crise do neoliberalismo foi a extrema-direita.
A centro-esquerda minguou, posto que foi vista como parte integrante
desse maldito “sistema”. O PT é a social-democracia brasileira e corre o
risco de cair na mesma armadilha. Vou dizer uma coisa meio desagradável.
No Brasil, de modo geral, há muito jogo de cintura e pouca espinha
dorsal. A centro-esquerda não foge a essa regra. Ela acredita, ou diz
acreditar, que continua fiel a seus propósitos. Que todas as concessões
são um preço a pagar nas circunstâncias. As medidas cautelosas e a
retórica conformista seriam assim uma máscara, a ser retirada quando as
condições forem mais favoráveis. Compreendo. Mas não vamos esquecer o
poema de Fernando Pessoa: “/Fiz de mim o que não soube,E o que podia
fazer de mim não o fiz.O dominó que vesti era errado.Conheceram-me logo
por quem não era e não desmenti, e perdi-me.Quando quis tirar a
máscara,Estava pegada à cara.Quando a tirei e me vi ao espelho,Já tinha
envelhecido.Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha
tirado.Deitei fora a máscara e dormi no vestiárioComo um cão tolerado
pela gerênciaPor ser inofensivoE vou escrever esta história para provar
que sou sublime/.” O poema caiu como uma luva, não é mesmo?     ***

Em
JORNAL 247
https://www.brasil247.com/blog/lula-e-seus-adversarios
5/4/2024

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