quarta-feira, 12 de junho de 2024

O esforço de Lula é inútil: o sonho das classes dominantes é destruir o PT - Revista Opera

 

 

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Uma das características distintivas do Brasil é o fato de ter se
desenvolvido, por mais de quatro séculos, sob um esquema de baixíssima
intensidade de participação política. A escravidão, o analfabetismo, a
imensidão do País, o caráter dependente de seu desenvolvimento – e,
portanto, o fato de ter sua produção primarizada e voltada para fora –,
a repressão direta e indireta à participação política e o projeto de
deseducação de seu povo são todos temas que se ligam a esse fato, que
poderia ser traduzido numa frase: na longa trajetória histórica, o povo
brasileiro teve sua organização restringida, e daí decorreu um País cujo
espírito não pôde se manifestar na arena política – ou, de outra forma;
um País cujo espírito foi a negação dos anseios de seu povo.

Essa baixa participação política, no entanto, não pode ser entendida
simplesmente como uma “deformação natural” ou uma “deficiência” do
processo civilizatório brasileiro. Como Darcy Ribeiro bem resumiu em
seu /Sobre o óbvio/ <http://www.biolinguagem.com/ling_cog_cult/
ribeiro_1986_sobreoobvio.pdf>, tratou-se de uma façanha espetacular de
nossas classes dominantes, que fundaram “um sistema social perfeito para
os que estão do lado de cima da vida”. Diz ele: “[…] Já não há como
negar dois fatos que ficaram ululantemente óbvios. Primeiro, que não é
nas qualidades ou defeitos do povo que está a razão do nosso atraso, mas
nas características de nossas classes dominantes, no seu setor dirigente
e, inclusive, no seu segmento intelectual. Segundo, que nossa velha
classe tem sido altamente capaz na formulação e na execução de projeto
de sociedade que melhor corresponde a seus interesses. Só que este
projeto, para ser implantado e mantido, precisa de um povo faminto,
chucro e feio. Nunca se viu, em outra parte, ricos tão capacitados para
gerar e desfrutar riquezas, e para subjugar o povo faminto no trabalho,
como os nossos senhores empresários, doutores e comandantes. Quase
sempre cordiais uns para com os outros, sempre duros e implacáveis para
com subalternos […]”.

Houve, certamente, luta. Darcy mesmo conta 50 mil mortos na repressão a
revoltas anteriores e posteriores à Independência. Mas o surgimento de
organizações políticas de monta, num País como o Brasil – com largo
território, povos de origens diversas, e uma organização geoestratégica
fundada no domínio da terra por vários felizardos individuais que tudo
controlavam em “seus” espaços – dependeria de que nossas classes
dominantes fizessem um esforço concentrado para estimulá-las, quando, de
fato, fizeram um esforço sobrehumano no sentido contrário.

No Brasil, o surgimento de partidos nacionais, onde seu povo pudesse se
organizar e mobilizar, dependeria, já de antemão, da abolição do
escravismo; da ampla alfabetização do povo; de um surgimento mais livre
de jornais e livros (estes foram obsessivamente controlados e
proibidos); de uma ampliação da mobilidade dentro do País. Mas o sistema
ferroviário brasileiro em 1889 só cobria 0,1% do País (9.583 km de
ferrovias <https://www.repositorio.ufal.br/bitstream/riufal/6756/1/
Ferrovias%20em%20Alagoas%20no%20s%C3%A9culo%20XIX%20e%20nas%20primeiras%20d%C3%A9cadas%20do%20s%C3%A9culo%20XX.pdf>em uma extensão territorial de 8,3 milhões de km²); o sistema telegráfico era de 2 mil km² em 1870; o primeiro jornal, invenção de 59 a.C, só surgiria aqui em 1808, a censura prévia sobre a impressão só seria abolida em 1821, assim como o monopólio do governo sobre a impressão – medidas que não tinham tampouco efeito tão extenso, haja em vista que o analfabetismo era amplo; na época da Independência, era de 99%; em 1900, ainda atingia 65% da população, e a alfabetização de mais da metade da população só seria atingida nos anos 1950 (enquanto o direito ao voto do analfabeto só seria garantido a partir de 1985, após ser abolido em 1881); por fim, como é conhecido, a abolição só viria em 1888.

Estes dados todos ajudam a explicar porquê o nascimento de um partido
político regular com vocação verdadeiramente nacional no Brasil só viria
em 25 de março de 1922, com a fundação do Partido Comunista. Regular
porque, antes disso, havia o Exército; o primeiro com vocação
verdadeiramente nacional porque, excluindo-se o Partido Fardado, a
organização partidária vigente até então era fundamentalmente regional,
estadual, e, ainda, restrita às oligarquias agrárias, a setores da
burguesia emergente e à burocracia.

É importante notar que o Partido Comunista viveria a maior parte de sua
trajetória na ilegalidade, sendo continuamente reprimido. Por outro
lado, o segundo partido de massas e nacional surgido no Brasil, a Ação
Integralista Brasileira (AIB), teria o seu caminho franqueado pela
legalidade, podendo aumentar consideravelmente seu contingente de
membros, em franco conflito com o Partido Comunista, até ser finalmente
extinto em 1938, em função das intentonas integralistas de março e maio.

Assim, só é possível falar de partidos nacionais institucionalizados no
Brasil a partir de 1945: ainda assim, dos 32 partidos constituídos à
época, só eram efetivamente nacionais a conservadora UDN, de alguma
forma de massas, reunindo as classes médias, os militares e setores da
burguesia nacional, e com projeto associado ao imperialismo norte-
americano; o PTB, reunindo a herança mais progressista do varguismo, as
massas trabalhadoras e setores da pequeno-burguesia e burguesia
nacionais; e o PSD, também descendente do varguismo, mas de corte mais
liberal, com baixa inserção de massas, formado por burocratas ligados às
intervenções pós-Revolução de 30, e representante acima de tudo de
setores industriais da burguesia nacional.

É importante notar que toda essa surgente organização partidária é
destruída com o golpe militar de 1964. Com a impossibilidade de fazer
frente ao varguismo no âmbito partidário-eleitoral, as classes
dominantes decidem por outra estratégia: o golpismo. Os líderes
partidários derrotados pelo varguismo (em suas duas faces, o PSD e o
PTB) desde 1945, por sua vez, vêem no movimento a oportunidade de
“limpar o campo” para si. Acabam sendo também limpados do campo: nem o
PTB e PSD, nem a UDN, se recuperariam do golpe.

Logo se vê, portanto, a razão de Darcy: mesmo superada a etapa colonial
e monárquica, já sob a República e em meio à modernização industrial, as
classes dominantes no Brasil só permitiriam que os partidos nacionais e
de massa se desenvolvessem pelos breves 19 anos que vão de 1945 a 1964.

Na saída da ditadura, há uma proliferação de novas organizações. Somente
entre 1979, ano da Lei Orgânica dos Partidos, e 1990, 20 organizações
surgem no Brasil. Mas a fragmentação partidária tampouco foi um
acidente; tratou-se uma estratégia do regime militar, sob quem a nova
organização partidária brasileira surgira, para garantir uma transição
segura.

Do início da Nova República até os dias de hoje, as características de
longa duração da organização partidária brasileira se manteriam na maior
parte dos partidos: 1 – baixa inserção nas massas; 2 – baixo nível de
identificação partidário-ideológica no povo em geral e até entre seus
membros; 3 – escassa inserção nacional; 4 – alto comprometimento
pragmático-institucional, pouco comprometimento ideológico; 5 – alta
dependência de figuras individuais.

Dos partidos ali surgidos até tempos recentes, o único que escapará
dessa conformação é o Partido dos Trabalhadores. Trata-se do segundo
maior partido em número de filiados, o mais pujante em termos de
identificação partidário-ideológica, o mais avançado em termos de
inserção nacional: o único grande partido surgido na Nova República que,
do Oiapoque ao Chuí, conta com uma ampla base militante, comprometida e
identificada com o partido, mais ou menos identificada com um programa
mínimo (embora este seja constantemente rebaixado).

Tão poderosa é essa organização na trajetória brasileira que, assim como
o PTB varguista, sua tentativa de destruição levou não só à sua derrota
(no caso do PT, momentânea), mas também à destruição da oposição que a
organizara: no pós-golpe de 2016, o PSDB desapareceu (foi de 54
deputados em 2014 para 29 em 2018, chegando a 13 hoje), e o MDB encolheu
(66 assentos em 2014; 34 em 2018; 42 hoje). Também tal qual no passado,
sua tentativa de destruição trouxe de volta à cena política o primeiro
partido nacional brasileiro – o irregular Partido Fardado.

O PT, no entanto, não foi capaz de superar a dependência da organização
de uma figura individual (Lula), e nos últimos anos, na medida em que
avança no seu comprometimento pragmático-institucional, borra e
enfraquece o seu engajamento ideológico.

A inovação da atual fase histórica, com o bolsonarismo, não é que haja
um movimento de extrema-direita de massas no Brasil – isso o
integralismo foi – mas sim que este tenha, ao mesmo tempo, uma forte
inserção institucional, e que seja suficientemente descentralizado e
amplo para abarcar diversos partidos ou candidatos individuais,
impactando o cenário político como um todo sem se comprometer com as
limitações que a organização partidária impõem. O bolsonarismo é mais
massivo do que foi a UDN, mas muito mais flexível do que foi a AIB;
efetivamente, trata-se de um movimento que disputa hegemonia num sentido
gramsciano, tal qual fizera o PT nos anos 80 – em outras palavras, é um
movimento com constante inserção em grupos sociais diversos, com a
capacidade de pô-los em movimento, organizando-os como uma força mais ou
menos homogênea, sem no entanto comprometê-los com uma hierarquia rígida.

Estas considerações todas são fundamentais na conjuntura atual: capaz de
resistir à sua tentativa de destruição, o petismo reemergiu em 2022, com
a missão declarada de reconstituir o ideário da Nova República <https://
revistaopera.operamundi.uol.com.br/2023/01/05/o-homem-da-nova-republica-
forca-e-hegemonia-no-governo-lula/>. Sua estratégia foi tentar recompor
com as forças características daquele período político por meio da
frente ampla, sem se dar conta de importantes diferenças conjunturas e
de alguns problemas que a estratégia impõe: primeiro, que a própria
conjuntura do início da Nova República, e as organizações políticas nela
inscritas, estavam influenciadas pela disputa hegemônica das esquerdas,
capazes então não só de mobilizar o consenso, como também sua força – é
notável, por exemplo, que no mesmo ano que o Brasil elegia Collor,
também criava o SUS, por meio de uma longa trajetória de lutas (hoje o
Brasil elege Lula e avança na privatização e precarização da saúde);
segundo, que hoje há a extrema-direita a mobilizar o binômio gramsciano,
influenciando, portanto, todas as outras forças políticas, tanto mais
quando não limitada pela forma partido – isto é, há anos as ruas e a
disputa ideológica nas bases deixaram de ser monopólio das esquerdas;
terceiro, que a hegemonia novo-republicana, do ponto de vista das
classes dominantes, não era a composição por elas /desejada/, mas a /
possível/naquele período histórico, e que o objetivo dessas classes
dominantes sempre foi superá-la, em especial no que toca aos aspectos
sociais da Constituição de 1988; quarto, que desde o período colonial
até a ditadura, conter o surgimento de partidos nacionais massivos
sempre foi o sonho das classes dominantes. Assim prosseguem elas, “quase
sempre cordiais uns para com os outros, sempre duros e implacáveis para
com subalternos”.

No afã de barrar o bolsonarismo, o governo Lula III parece ter se
inaugurado sob a infantil crença de que as classes dominantes também se
preocupam com a democracia. Só faltou questionar-se qual democracia “os
nossos senhores empresários, doutores e comandantes” pretendiam
defender, e se mesmo o PT cabe nela.

Já está evidente: não cabe. No que tange à economia, o governo Lula até
aqui não arranha sequer no verniz o modelo neoliberal, mediando cada boa
nova ao povo com uma chuva de boas notícias ao capital (Desenrola, Minha
Casa Minha Vida, Novo PAC) e em muitos casos só diferenciando sua agenda
da Ponte para o Futuro de Temer no que se refere a uma maior efetividade
do governo petista em aplicá-lo (Arcabouço Fiscal, Plano Safra recorde).
As medidas mais corajosas foram interromper o processo de privatização
de oito importantes estatais, ainda em janeiro de 2023, sem no entanto
tocar no que foi privatizado; a breve pressão sobre a taxa de juros no
início do governo; a aprovação da taxação dos fundos exclusivos
(cinicamente propagandeada pelo governo como uma “taxação dos super-
ricos”). A tão comemorada Reforma Tributária só mirou, até agora, a
simplificação, sem tocar na injustiça tributária que sobretaxa os pobres
via consumo. Ainda assim, nas colunas econômicas dos jornais, a sensação
alardeada é que trata-se de um governo demasiadamente esquerdista e
gastão, às portas de levar o Brasil ao caos econômico.

Não sendo essas entregas suficientes para acalmar as classes dominantes,
o governo concede também na arena política. Além da amplíssima frente
estabelecida já na posse, efetivamente foi o governo, em especial por
meio do ministro Múcio, que avançou a /anistia política/às Forças
Armadas, que, tal como planejaram <https://
revistaopera.operamundi.uol.com.br/2023/03/04/expressas-comando-militar-
virou-jornal/>, limparam suas fardas da lama e do sangue por sua
associação ao governo Bolsonaro e por seu golpismo latente (manifestado
antes, durante e depois de Bolsonaro, vale recordar). O 7 de setembro
não foi mais que um evento de relações públicas a favor dessa limpeza
<https://revistaopera.operamundi.uol.com.br/2023/09/09/jogo-de-cena-
militar/>(o lema: “Democracia, soberania e união”); o governo, depois de
insistir que não faria GLO, fez uma GLO que “não é bem uma GLO <https://
revistaopera.operamundi.uol.com.br/2023/12/06/ano-termina-com-militares-
impondo-sua-realidade-concreta-ao-governo/>”; e Lula pessoalmente se
envolveu no negacionismo militar <https://
blogdaboitempo.com.br/2021/04/15/negacionismo-de-esquerda-militares-e-
genocidio/>, ao vetar cerimônias sobre o 60º aniversário do golpe e
declarar que “não vai ficar remoendo” a história. No Congresso, dobra-se
completamente ao Centrão, sem mediar as necessárias concessões com
pautas de seu interesse e chamamentos à pressão popular – pelo
contrário, no geral concede para aprovar medidas de ortodoxia econômica,
e agora se fala até em só tratar dessas pautas, para evitar derrotas
como a imposta no tema das “saidinhas” de presos. Na comunicação,
reserva as maiores verbas a quem o fustiga <https://
www1.folha.uol.com.br/poder/2024/03/jornal-nacional-lidera-verba-de-
publicidade-em-primeiro-ano-de-
lula-3.shtml#:~:text=O%20presidente%20Lula%20em%202024&text=R%C3%A1dios%20recebem%2012%25%20da%20verba,mais%20receberam%20verba%20do%20governo.>e chama o silêncio e a covardia de republicanismo: em nenhuma das quatro ocasiões em que falou em Rede Nacional (1 de Maio  de 2023, 7 de setembro de 2023, Natal de 2023, e Dia das Mães de 2024) comprou qualquer enfrentamento ou fez qualquer conclamação por mobilização; em todas elas, o tom foi o de propaganda de margarina. Isso apesar das oportunidades que a intentona de 8 de janeiro, as revelações sobre a participação de militares no golpismo e a tragédia no Rio Grande do Sul ofereceram.


       Leia também – 1964: cinco lições do golpe militar para o
      presente  <https://
      revistaopera.operamundi.uol.com.br/2024/04/01/1964-cinco-licoes-
      do-golpe-militar-para-o-presente/>

A extrema-direita já fala em impeachment; a “direita tradicional” já
busca sua sempre desejada terceira via, em fórmulas esdrúxulas como
“bolsonarismo moderado”. Convém lembrar que mesmo quando a disputa ficou
entre o hoje aplaudido ministro da Economia, Fernando Haddad, e o
capitão Bolsonaro, a opção das classes dominantes – ainda que
reconhecendo-a como uma “escolha muito difícil” – foi pelo segundo.

Na história brasileira, Lula III é um governo de transição: não é
improvável que seja o último com Lula à frente. Não trata só do País
durante este quatro anos; carrega também o futuro do PT, e com isso o
destino do único grande partido nacional e de massas do Brasil. Tudo
constante, as classes dominantes manterão boas opções para cumprir o
objetivo histórico de destruí-lo: o mais arriscado e draconiano
impeachment, improvável mas não impossível; a imposição do
parlamentarismo, sonho molhado dos ricos efetivado em 1961 e derrotado
um ano antes do golpe de 1964; ou simplesmente a eterna aposta na
“terceira via”, hoje abarcando até governadores sanguinolentos como
Tarcísio – nossos ricos não têm restrições democráticas quanto às
execuções sumárias na Baixada Santista ou sobre a militarização do
ensino público, embora tanto esforço façamos para incluí-los em nossas
“frentes pela democracia”.

Com o que vem apresentando até aqui, o governo Lula não só deixa estes
três caminhos bem abertos à preferência das elites; também as assegura
de que acabará sem meios para enfrentar qualquer um deles.

/*(*) Pedro Marin* é editor-chefe da Revista Opera. É autor de
“Aproximações sucessivas – o Partido Fardado nos governos Bolsonaro e
Lula III (Escritos: 2019-2023)” <https://baionetaeditora.com.br/produto/
aproximacoes-sucessivas-o-partido-fardado-no-governo-bolsonaro-e-lula-
iii-escritos-2019-2023/>./

Em
OPERA MUNDI
https://revistaopera.operamundi.uol.com.br/2024/06/11/o-esforco-de-lula-e-inutil-o-sonho-das-classes-dominantes-e-destruir-o-pt/
11/6/2024

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