segunda-feira, 17 de junho de 2024

O socialismo heroico de Mariátegui

 
 


Nicolas Allen

O primeiro e mais original pensador marxista da América Latina nasceu em
14 de junho de 1894, no departamento de Moquegua, no sul do Peru. José
Carlos Mariátegui (1894–1930) é hoje lembrado como o mais raro dos
intelectuais radicais, latino-americanos ou não: uma figura cuja
influência não só perdura ao longo da extensa trajetória do pensamento
político do século XX, mas evolui rapidamente com os mais variados
contextos históricos. Da teoria da dependência à teologia da libertação,
da teoria decolonial à Onda Rosa Latino-Americana <https://
jacobinmag.com/issue/by-taking-power>, a história do pensamento radical
da região pode, e tem sido, lida como uma interpretação expandida dos
escritos de Mariátegui, ou o “amauta”, como ele era conhecido pelos
camaradas.

Não há melhor introdução à obra mariateguiana do que os Sete Ensaios de
Interpretação da Realidade Peruana <https://www.marxists.org/archive/
mariateg/works/7-interpretive-essays/index.htm> dele, uma obra sem
precedentes da teoria marxista latino-americana cujo nonagésimo
aniversário este ano é a desculpa perfeita para revisitar seu legado.

A vida do Amauta foi breve e intensa. Uma doença fatal manteve o jovem
peruano acamado durante grande parte da sua juventude e quase o privou
de qualquer escolaridade formal. No entanto, esses anos de convalescença
viram Mariátegui tornar-se um formidável autodidata com uma vigorosa,
alguns poderiam dizer melancólica, disposição. Ainda adolescente,
Mariátegui começou a escrever nos periódicos de Lima como forma de
sustentar a família e, em 1918, inspirado pela distante Revolução Russa
e por uma onda de greves locais, declarou-se um socialista convicto.

Os paralelos entre Mariátegui e Antonio Gramsci são tão marcantes que
poucos biógrafos conseguem escapar das comparações. Marxistas
heterodoxos, jornalistas militantes, fundadores dos respectivos partidos
comunistas dos seus países, ambos escritores foram marcados por
fragilidades físicas ao longo da vida e sofreram intensa perseguição
política. Para além destas semelhanças anedóticas, Mariátegui também
passou os seus anos de formação política como testemunha ocular do /
Biennio Rosso/ italiano, vivenciando em primeira mão os conselhos de
fábrica de Turim de 1919-1920 e, no ano seguinte, a fundação do Partido
Comunista da Itália em Livorno.

Embora não haja provas de que os caminhos dos dois revolucionários se
tenham cruzado, Mariátegui inspirou-se na sua experiência italiana de
uma forma que não pode deixar de recordar o autor dos Cadernos do
Cárcere <https://www.marxists.org/archive/gramsci/prison_notebooks/
selections.htm>. Na Itália, Mariátegui descobriu uma nação desprovida
das veneráveis ​​tradições do pensamento socialista, mais típicas da
França ou da Alemanha. Mesmo assim, uma filosofia marxista vibrante
criou raízes na península, florescendo a partir do historicismo
caracteristicamente italiano de Benedetto Croce.

Este encontro com a “filosofia da práxis” peninsular revelou-se decisivo
nas futuras formulações de Mariátegui. Por um lado, a ideia de um
marxismo vernáculo tornar-se-ia uma marca distintiva do “marxismo indo-
americano” de Mariátegui. Essa influência italiana também se traduziu na
sua compreensão voluntarista única do método marxista, concebido como a
unidade de pensamento e ação, consciência e transformação material. Na
terminologia preferida de Mariátegui, “o socialismo como criação heroica”.

Por mais tentador que seja imaginar Mariátegui como a soma de suas
influências díspares (Croce, Sorel, Marx, Surrealismo, Indigenismo, para
citar apenas algumas), seus intérpretes mais lúcidos preferem entender o
Amauta como um interlocutor visionário das possibilidades
revolucionárias emergentes à época. Daí a sua semelhança com Gramsci,
baseada mais num conjunto comum de preocupações do que em quaisquer
influências diretas.

Por exemplo, o Gramsci de “A Questão Meridional” encontra o seu
corolário no apelo de Mariátegui para “Peruanizar o Peru”. No caso de
Gramsci, a Questão Meridional gira em torno da elaboração de um programa
nacional-popular capaz de integrar politicamente os subalternos
marginalizados pelo próprio processo de formação da nação italiana. Para
Mariátegui, “Peruanizar o Peru” significava promover um nacionalismo de
baixo para cima que pudesse desafiar as imposições nacionalistas da
“oligarquia crioula” do Peru e o patriotismo chauvinista que emanava da
Europa.

Ao retornar ao Peru em 1923, Mariátegui entrou na fase madura de seu
trajeto intelectual. Além de escrever os Sete Ensaios, a década de 1920
encontrou o peruano dirigindo um empreendimento cultural único conhecido
como /Amauta/. Este jornal mensal de “doutrina, artes e literatura”
reuniu artes de vanguarda, polêmicas marxistas e política indigenista
com o propósito de liderar um renascimento cultural nacional.

Com a sua política socialista, /Amauta/ ofereceu uma visão do marxismo
como o canal privilegiado para canalizar e amalgamar as expressões e
ideias mais avançadas da época: uma cultura de vanguarda na qual o
marxismo, como adesivo comum, acabaria por se tornar sinônimo da própria
cultura.

No mesmo período, Mariátegui travou debates com companheiros de viagem
da esquerda peruana. O destaque dessas disputas ocorreu com Victor Raúl
Haya de la Torre, fundador e líder da influente Aliança Popular
Revolucionária Americana (APRA). Embora as duas figuras tivessem
partilhado um terreno político comum no início da década de 1920, em
1928 já haviam se distanciado por conta da questão revolucionária.

Haya de la Torre abandonou o seu marxismo anterior em favor de uma linha
“populista”, defendendo uma aliança de classe entre indígenas, burguesia
e proletários, a fim de superar o feudalismo e derrotar o imperialismo.
Nesta perspectiva, o marxismo era uma teoria estritamente europeia,
feita sob medida para a realidade social do velho continente, mas
inadequada para o desenvolvimento da América Latina “semifeudal”.

A resposta de Mariátegui veio logo: só o socialismo revolucionário
poderia fornecer o programa para uma posição autenticamente anti-
imperialista. Porém, no momento em que defendia a universalidade do
método marxista contra as acusações de “eurocentrismo” provenientes das
fileiras crescentes da APRA, Mariátegui enfrentava um conjunto diferente
de acusações em uma outra frente. Em 1929, o recém-formado Partido
Socialista do Peru de Mariátegui (note-se a anomalia: um partido
comunista que manteve a bandeira socialista) foi convidado a participar
na primeira Conferência Latino-Americana do Comintern. No entanto, os
enviados peruanos de Mariátegui provocaram um escândalo ao recusarem-se
a curvar-se à prescrição da Terceira Internacional para uma revolução
democrático-burguesa, o caminho “correto” para as chamadas “nações
coloniais e semicoloniais”.

Incapaz de comparecer fisicamente porque sua doença havia progredido
consideravelmente, os /Sete Ensaios Interpretativos sobre a Realidade
Peruana/ de Mariátegui foram transmitidos ao chefe do Bureau Latino-
Americano, Victorio Codovilla. O argentino Codovilla, famoso pelo seu
stalinismo linha-dura, olhou com desprezo para o volume. “Ensaios
interpretativos” e “realidades nacionais” eram matéria de diletantes
pequeno-burgueses.

À medida que a notícia do escândalo chegava a Moscovo, os /apparatchiks/
soviéticos ficaram particularmente indignados com a defesa de Mariátegui
por um “comunismo inca”: a noção de que as sementes da utopia comunista
já estavam presentes nas comunidades indígenas milenares da região,
tanto quanto o internacionalismo revolucionário da União Soviética.
Mariátegui escreve em seus /Sete Ensaios/: dado o “socialismo prático na
vida agrícola e indígena […] as comunidades representam um fator natural
para a socialização da terra.”

É claro que Mariátegui reconheceu que a transição do comunalismo
anticapitalista para a revolução socialista exigiria um sujeito
proletário, mas também aqui o seu pensamento foi contra a corrente. Ao
invés da transformação ocorrer por conta do desenvolvimento das forças
produtivas, o campesinato andino tornar-se-ia proletário através da
própria revolução socialista: a revolução como o processo de se tornar
sujeito da revolução, ou, mais poeticamente, o que Mariátegui chamou de
luta por uma “criação heroica” da sociedade socialista (note-se aqui os
ecos do socialismo voluntarista e humanista em Che Guevara, delineado no
seu “/Homem e Socialismo/”).

Denunciado como “populista” pela intelectualidade do Comintern, o
“anticapitalismo romântico” de Mariátegui se tornaria mais tarde uma
pedra angular no pensamento do filósofo marxista franco-brasileiro
Michael Löwy. Na categoria de “marxismo romântico”, Löwy colocou
Mariátegui no centro de um panteão intelectual que inclui Benjamin,
Gramsci e Bloch. Cada um deles, à sua maneira, compreendeu que, para
cada revés histórico, impasse revolucionário ou derrota popular, ainda
havia fragmentos utópicos entre as ruínas do passado que poderiam ser
transformados em linhas de resistência e rotas alternativas para o futuro.

A crítica romântico-revolucionária do capitalismo, particularmente na
sua variante radical tipificada por Mariátegui, insiste não em um
regresso literal ao passado (em nenhum lugar da obra de Mariátegui há um
desejo nostálgico de recriar o Império Inca), mas sim na recuperação de
referências históricas capazes de lançar luz sobre a natureza do nosso
presente capitalista e a ressuscitação do próprio potencial
emancipatório que a modernidade possui e renega.

Como o próprio Löwy reconhece no seu /O marxismo na América Latina/, a
cena dramática com o Comintern marcou um dos capítulos finais da era de
ouro da criatividade teórica do marxismo latino-americano (Juan Antonio
Mella, o fundador do partido comunista cubano, pertence a esta época
também). As décadas seguintes de esterilidade intelectual e alinhamento
aos soviéticos começam, fortuitamente, em 1930, ano da morte de Mariátegui.

O legado do Peruano desfrutaria de um renascimento significativo entre a
Nova Esquerda Latino-Americana nas décadas de 1960-70. Até então, o
projeto intelectual de Mariátegui permaneceu durante décadas como a
tentativa mais ousada de resgatar um marxismo vital da polarização que
atormentava as tendências de esquerda da região. De acordo com Löwy,
estas são: uma tentação nativista de rejeitar como estrangeiras
quaisquer teorias que aspirem à universalidade – o marxismo,
principalmente – e, por outro lado, a tentação de aceitar acriticamente
a universalidade e ignorar as particularidades locais.

Em nenhum lugar o ato de equilíbrio de Mariátegui entre o universal e o
particular foi exibido de forma mais lúcida do que em seus /Sete Ensaios
de Interpretação/, onde uma análise marxista rigorosa iluminou as
formações socioeconômicas e culturais concretas da sociedade peruana de
uma maneira dialética que lembra o /Dezoito Brumário/ de Marx ou o /
Desenvolvimento do capitalismo na Rússia/ de Lênin. Conversamos com Löwy
por ocasião do nonagésimo aniversário dos /Sete Ensaios de
Interpretação/, para relembrar o legado do peruano e perguntar sobre sua
relevância no presente.

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NA

*Gostaria de começar perguntando sobre o trabalho que você apresentou em
Lima por ocasião do nonagésimo aniversário dos Sete Ensaios
Interpretativos. Você faz uma comparação entre Walter Benjamin e José
Carlos Mariátegui. Onde você enxerga os pontos em comum deles?*

ML

Apesar de pertencerem a universos culturais muito diferentes — América
Andina e Europa Central — Benjamin e Mariátegui têm muito em comum: não
apenas a sua adesão heterodoxa ao comunismo e as suas visões simpáticas
de Leon Trotsky, mas também o seu interesse pelo pensamento de Georges
Sorel, sua paixão pelo surrealismo e sua visão “religiosa” do
socialismo. O mais importante de tudo é que ambos os pensadores
partilharam uma crítica romântica da civilização moderna que é
inseparável da sua hostilidade ao positivismo e à ideologia do
“progresso”. As afinidades entre os dois são tão marcantes que é de
admirar que os dois não estivessem familiarizados com o trabalho um do
outro.

NA

*E, para Mariátegui, como é uma revolução sem progresso?*

ML

Como afirmou Benjamin em /Passagens/ (/Das Passagen-Werk/), seu objetivo
era desenvolver uma forma de materialismo histórico que rompesse com a
ideologia do progresso. Mariátegui fez o mesmo. Em “/Duas Concepções de
Vida/” (/Dos Concepciones de la Vida/), ele rejeitou, nas suas palavras,
“o respeito supersticioso pela ideia de Progresso”, uma “filosofia chata
e acomodada”, como a chamou. Para Mariátegui, a revolução nunca é o
produto do “progresso”, mas sim a recuperação do passado comunista pré-
colombiano.

NA

*Você pode elaborar esse último ponto? Um “passado comunista pré-
colombiano” parece muito com o que Marx e Engels chamaram de “comunismo
primitivo”. Estaria Mariátegui defendendo um regresso a um passado
comunalista?*

ML

Na verdade, há uma semelhança com o comunismo primitivo tal como foi
definido pela tradição marxista. Vale a pena notar que Rosa Luxemburgo
usou a expressão “comunismo inca” ao discutir as várias formas de
comunismo primitivo em seu /Introdução à Economia Política/. No Peru,
isto se refere aos ayllu, as comunidades camponesas que eram a base
social do Império Inca, que existia na região andina antes de Colombo
“descobrir” as Américas e os colonialistas espanhóis a conquistarem. É
claro que Mariátegui não defende um regresso ao passado pré-colonial,
mas vê nas tradições coletivistas das comunidades indígenas uma base
poderosa para o desenvolvimento do movimento comunista moderno entre o
campesinato.

NA

*Você pode dizer algumas palavras sobre a perspectiva teórica específica
que permitiria a Mariátegui identificar o campesinato e os indígenas
como protagonistas do movimento comunista?*

ML

Como tentei explicar, Mariátegui viu nas tradições coletivistas do
campesinato indígena um importante impulso para sua filiação no
movimento comunista. Além disso, na sua luta pela terra, as massas
camponesas entram necessariamente em conflito com a oligarquia
capitalista e proprietária de terras, podendo ser conquistadas para uma
vanguarda socialista-comunista, uma vez que esta seria a única força
política que luta por uma reforma agrária radical.

NA

*As pessoas falam de Mariátegui como o “primeiro marxista” da América
Latina, enquanto outros vão mais longe e chamam-no de criador de um
marxismo tipicamente latino-americano. Que sentido há em falar de um
marxismo especificamente latino-americano, em oposição, por exemplo, a
um “marxismo periférico”? Dito de outra forma, por que se preocupar com
a distinção quando o próprio objeto de análise do marxismo, o
capitalismo, é ele próprio universal?*

ML

Acho que no caso de Mariátegui as três perspectivas não são mutuamente
exclusivas. Mariátegui é de fato o primeiro marxista da América Latina.
É verdade que houve outros autores que fizeram referência a Marx em
escritos anteriores, como Juan B. Justo, o tradutor argentino d’/O
Capital/. Mas, Justo nunca entendeu Marx. Seu pensamento estava
fundamentado muito mais na filosofia positivista da época do que em Marx.

<https://autonomialiteraria.com.br/>

Com efeito, Mariátegui é o primeiro pensador a propor uma análise
marxista das formações sociais latino-americanas, nomeadamente, nos
seus /Sete Ensaios Interpretativos sobre a Realidade Peruana/. Apesar da
sua adesão ao comunismo, Mariátegui nunca aceitou a doutrina estalinista
oficial do Comintern – a necessidade de passar por uma “fase democrática
burguesa” na América Latina. Para ele, a única alternativa à dominação
imperialista seria o que chamou de “Socialismo Indo-Americano”.

Também faz todo o sentido falar de “marxismo latino-americano”, e não
apenas porque o pensamento de Mariátegui se dedica principalmente ao
Peru e à América Latina. O seu ponto de vista estava profundamente
enraizado na cultura e na história do continente. Da mesma forma, também
se poderia falar de um marxismo periférico, uma vez que Mariátegui
partilhava com outros – da América Latina, Ásia e África – uma visão do
capitalismo situado às margens do sistema.

Mas considero importante sublinhar que o marxismo de Mariátegui é
universal. Esta universalidade está presente não apenas nos seus
escritos sobre o capitalismo, mas também nas suas reflexões sobre uma
série de outros assuntos: o método marxista; a ética revolucionária; a
visão mística do socialismo, da cultura e das artes; para não falar da
sua polêmica em defesa de uma filosofia antipositivista e da sua crítica
do progresso como uma ilusão.

Estas representam contribuições profundamente inovadoras para o marxismo
como tal. Penso que seria um erro deixar que a reputação de Mariátegui
dependesse apenas dos seus brilhantes ensaios sobre a realidade peruana.
Seu pensamento “universal” está no mesmo nível de seus pares
intelectuais das décadas de 1920 e 1930: Walter Benjamin, Antonio
Gramsci ou Ernst Bloch. Falando francamente, Mariátegui é um dos maiores
pensadores marxistas da primeira metade do século XX.

NA

*E quanto à acusação de “eurocentrismo”? Não poderíamos pegar essa
acusação e, no caso de Mariátegui, invertê-la e dizer que o peruano é um
exemplo da universalidade do marxismo, a evidência viva da capacidade da
teoria de “evoluir” através do seu encontro com formações sociais
periféricas que estava além do escopo das formulações originais de Marx?*

ML

Mariátegui não era eurocêntrico e nem antieuropeu. Sua grande conquista
foi oferecer uma síntese dialética entre a singularidade latino-
americana e a universalidade do método marxista. É claro que ele
reinterpretou o método marxista com a ajuda de certas figuras,
particularmente Georges Sorel e Miguel Unamuno, desenvolvendo uma
autêntica vertente romântico-revolucionária do marxismo.

NA

*Um marxista mais ortodoxo poderia questionar, à luz de tal ecletismo,
se Mariátegui era mesmo marxista. O que você diria em resposta?*

ML

Existe um “Marxômetro” que possa medir se as pessoas que afirmam ser
marxistas são ou não “verdadeiros marxistas”? José Carlos Mariátegui
considerava-se marxista, um dos seus livros chama-se /Defesa do
Marxismo/ (1930) e aderiu à Internacional Comunista em 1928. Não vejo
como se poderia negar-lhe a identidade marxista! Na verdade, o marxismo
é uma categoria muito heterogênea: André Tosel, um conhecido marxista
francês (gramsciano), escreveu que existem “mil marxismos”. Pode-se
criticar alguns deles, ou argumentar que compreenderam Marx
completamente mal, mas não é muito útil discutir sobre “quem é um
verdadeiro marxista”.

NA

*A questão da ortodoxia ou heterodoxia de Mariátegui parece ser
relevante pelo menos no que diz respeito à compreensão da sua recepção.
Marginalizado pela Terceira Internacional, foi mais tarde redescoberto
pela Nova Esquerda Latino-Americana na década de 1970 e, mais
recentemente, comemorado pela Onda Rosa da América do Sul. Que
relevância você acha que Mariátegui tem atualmente? Que novas leituras
podem ser realizadas à luz da conjuntura atual?*

ML

Cada época, com seus respectivos e únicos arranjos políticos, terá uma
leitura própria de Mariátegui. No que diz respeito ao momento presente,
sinto que a sua visão de um tipo de socialismo que “não é cópia nem
reprodução” de outras experiências históricas, mas sim uma “criação
heroica” dos povos latino-americanos, uma criação baseada na sua
cultura, sua história e tradições. Esta me parece uma ideia extremamente
relevante para a época atual.

A sua ênfase nas raízes indo-americanas do comunismo, expressa ao longo
dos seus escritos, também pode ser aplicada às lutas dos povos afro-
americanos. A visão de Mariátegui é frequentemente mencionada em relação
ao “multiculturalismo” ou instituições “plurinacionais”, mas tem a ver
principalmente com tradições comunitárias que estão em conflito aberto
com o capitalismo e que carregam dentro de si um potencial radicalmente
subversivo.

Durante demasiado tempo, a esquerda latino-americana tem “reproduzido e
copiado” outros socialismos, particularmente o modelo soviético. Talvez
tenha chegado o momento de redescobrir – mais uma vez – a provocação de
Mariátegui para encontrar um novo caminho que esteja enraizado nas
culturas e práticas das classes populares latino-americanas.

NA

*E você vê alguma força política no continente que, explicitamente ou
não, esteja seguindo esse tipo de caminho? Sei que João Pedro Stédile,
líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Brasil, é um grande
admirador de Mariátegui.*

ML

Claro, houve grandes pensadores peruanos como Aníbal Quijano e Alberto
Flores Galindo que seguiram seu exemplo. Depois temos líderes políticos
indígenas, como Hugo Blanco, que foram influenciados pelo pensamento de
Mariátegui. Mais recentemente, podemos encontrar exemplos do seu impacto
em figuras como Hugo Chávez ou em movimentos camponeses como o MST que
você menciona. No entanto, penso que o movimento revolucionário atual
que melhor encarna a visão geral de Mariátegui – e não necessariamente
porque segue os seus escritos – pode ser encontrado na experiência
zapatista em Chiapas.

NA

*O senhor enfatizou que o conceito de revolução tem um significado
particular para Mariátegui. Como você sugeriu, é uma constante em seus
escritos que às vezes se assemelha a uma fé religiosa, como se a
revolução fosse uma força imbuída de poderes redentores divinos. Não
será isto algo de anacronismo na nossa situação atual, caracterizada
como é por ambições políticas mais modestas, ou mesmo por horizontes
contrarrevolucionários se considerarmos o contexto latino-americano?*

ML

Sem dúvida, o presente político na América Latina mostra todos os sinais
de uma poderosa contrarrevolução. Logo, a questão seria: diante deste
cenário, não será ainda mais necessário reafirmar o horizonte
revolucionário? Como podemos começar a imaginar tirar o calcanhar de
ferro da oligarquia das nossas costas – com o tipo reacionário,
autoritário e repressivo do neoliberalismo que vemos agora – sem também
prosseguir a transformação radical das estruturas econômicas, sociais e
políticas subjacentes? É claro que os processos revolucionários muitas
vezes começam com os tipos de lutas que poderíamos chamar de “modestas”,
baseadas em exigências concretas e formas circunscritas de confronto.

Além disso, a maioria dos acontecimentos revolucionários na América
Latina, pelo menos nos últimos cinquenta anos, estiveram ligados a
alguma forma de “fé religiosa ou força redentora”, como você a chama.
Isto é, Cristianismo da Libertação ou Teologia da Libertação. Sem ter em
conta este componente, é impossível compreender os processos
revolucionários que tiveram lugar na América Central entre as décadas de
1970 e 1990, ou, aliás, a Revolta em Chiapas em 1994. O potencial
emancipatório desta tradição continental continua a ser extremamente
vital e está longe da exaustão.

Mas, para além da dimensão estritamente religiosa do fenômeno que
descrevemos, é impossível imaginar realmente um movimento em grande
escala que resista, combata e lute por uma mudança social radical sem
recorrer também a uma certa “fé, paixão, vontade e misticismo” como
dizia Mariátegui. [A citação completa diz: “A força dos revolucionários
não reside na sua ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua
vontade. É uma força religiosa, espiritual e mística.”]

NA

*Você está aludindo às tão discutidas ideias de Mariátegui sobre o mito
revolucionário. Pode ser interessante revisitar esse conceito hoje à luz
dos mitos reacionários prevalentes que estão em circulação. Poderá
Mariátegui, que testemunhou a ascensão do fascismo em Itália e escreveu
muito sobre o assunto, oferecer alguma visão sobre a atual viragem da
extrema-direita na América Latina?*

ML

O mito reacionário nasce do seu confronto com o mito revolucionário. O
mito contrarrevolucionário fascista, como sabemos, foi erguido contra a
maré crescente do bolchevismo. O que o mito fascista procura fazer é
monopolizar o patriotismo. Como escreveu Mariátegui, o fascismo “espalha
a sua bandeira patriótica para encobrir todos os seus contrabandos, os
seus equívocos doutrinários e programáticos”. Estas palavras, escritas
sobre o fascismo italiano em 1925 e publicadas em /A Cena Contemporânea/
de Mariátegui, são extremamente relevantes hoje em dia na América Latina.

NA

*Alguns dos seus trabalhos mais recentes exploram as possibilidades de
uma perspectiva ecossocialista. A visão mais ampla de Mariátegui do
socialismo é como uma alternativa civilizacional ao capitalismo. Isto
não poderia fornecer alguma inspiração ou orientação para uma política
ecossocialista emergente?*

ML

Mariátegui não pode nos fornecer respostas prontas para todos os
problemas de hoje, tal como Marx ou Lênin não podem. Mariátegui nunca
manifestou qualquer tipo de preocupação ambiental, o que é mais do que
compreensível tendo em conta que os problemas ambientais da sua época
não se assemelhavam em nada à crise que vivemos atualmente.

Mas, para além disso, ao encarar a sua crítica radical do sistema
capitalista como uma crítica de todo um sistema civilizacional – isto é,
não apenas a crítica da extração de mais-valia – ou a sua rejeição da
ideologia burguesa do progresso, ou a sua exaltação das tradições
comunitárias indígenas, se levarmos em conta todos estes fatores, o seu
trabalho representa de fato uma contribuição muito significativa para o
desenvolvimento do pensamento ecossocialista.

Por todo o continente americano, do Canadá à Patagônia, os povos
indígenas estão na vanguarda da resistência contra a destruição
capitalista da natureza. São os mais resolutos defensores dos rios, das
árvores e da terra, os que lutam contra a cruel devastação ecológica
perpetrada pelas multinacionais petrolíferas e mineiras, pela agroindústria.

Esta é uma oposição enraizada nas condições materiais de vida das
comunidades indígenas, na sua própria sobrevivência. Mas é também um
conflito entre uma espiritualidade indígena e o espírito do capitalismo.
O que Mariátegui fez foi nos fornecer uma chave importante para
compreender as comunidades indígenas como protagonistas das lutas
socioecológicas atuais.

Como gostava de dizer um dos maiores admiradores de Mariátegui, o líder
indígena e camponês peruano Hugo Blanco: “Nós, índios, praticamos o
ecossocialismo há cinco séculos”.


          Michael Löwy <https://jacobin.com.br/author/michaellowy/>

é diretor de pesquisa emeritus do Centro Nacional de Pesquisa
Científica, em Paris.

Em
JACOBINA
https://jacobin.com.br/2024/06/o-socialismo-heroico-de-mariategui/
16/6/2024

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