domingo, 30 de junho de 2024

A forma específica de pobreza sob o capitalismo




    Prabhat Patnaik [*]
Índice de preços de produtos alimentares da FAO.

A pobreza é considerada um fenómeno homogéneo, independentemente do modo
de produção que está a ser examinado. Mesmo economistas de renome
acreditam nesta concepção homogénea da pobreza. Na realidade, porém, a
pobreza sob o capitalismo é completamente diferente da pobreza em tempos
pré-capitalistas. Mesmo que, para finalidades /estatísticas,/ a pobreza
seja definida como a falta de acesso a um conjunto de /valores de uso/
essenciais para viver, independentemente do modo de produção, o facto é
que sob o capitalismo essa falta está enredada num conjunto de relações
sociais que são /sui generis/ e diferentes das anteriores. A pobreza no
capitalismo assume assim uma forma específica associada /à insegurança e
à indignidade/ que a torna particularmente insuportável.

A pobreza capitalista apresenta, grosso modo, quatro características
aproximadas. A primeira decorre da inviolabilidade dos contratos, o que
significa que, independentemente das suas condições, os pobres têm de
pagar o que contrataram, o que conduz a uma perda de bens ou à miséria.
Nos tempos pré-capitalistas, por exemplo, na Índia [do império] Mughal,
a exigência de receitas era uma proporção /do produzido/; isto
significava que em anos de más colheitas os direitos a receitas dos
camponeses eram /automaticamente/ reduzidos; por outras palavras, o ónus
das más colheitas era partilhado entre os produtores e os donos da
terra. Mas na Índia colonial, reflectindo o seu espírito capitalista, o
imposto passou a incidir sobre a /terra;/ o contrato entre o produtor e
o dono da terra mudou:   ao produtor seria autorizado a cultivar uma
parcela de terra desde que pagasse um determinado /montante/ de receitas
ao Estado. Isto significava que, num ano de más colheitas, o fardo da má
colheita não era partilhado e recaía exclusivamente sobre o produtor.
Por outras palavras, o contrato era celebrado para o pagamento de um
montante fixo em dinheiro e não para o pagamento de um montante
variável, como uma parte da produção ou do seu equivalente em forma
dinheiro. Daí resultou a pauperização do campesinato, ou seja, a
transferência dos ativos dos camponeses para usurários seguiu-se a isto.
Em suma, a pobreza foi associada à miséria a qual, em consequência,
tendia a ter um impacto cumulativo sobre os produtores.

Por outras palavras, a falta de acesso ao "fluxo" dos /valores de uso/
por parte dos produtores era acompanhada por um processo de privação do
seu "stock" de activos, o que significava um /aumento/ da sua
vulnerabilidade ao longo do tempo. Houve portanto uma /dinâmica/
introduzida na pobreza.

A segunda caraterística da pobreza capitalista é o facto de ser vivida
por /indivíduos,/ quer se trate de pessoas individuais ou de agregados
familiares. Numa sociedade pré-capitalista, onde as pessoas viviam em /
comunidades,/ outros membros da comunidade, quer pertencessem ao mesmo
grupo de castas ou simplesmente à mesma aldeia, vinham em auxílio dos
pobres em anos de más colheitas ou calamidades naturais. Por outras
palavras, as privações não eram sofridas de forma isolada. No
capitalismo, porém, quando as comunidades se desagregam devido à lógica
inexorável do sistema, e o indivíduo emerge como a categoria económica
primária, este indivíduo também sofre privações em isolamento.

As tradições não marxistas da teoria económica não conseguem ver esta
mudança básica porque estão desprovidas de qualquer sentido da história.
Marx acusou a economia clássica desta cegueira em relação à história:  
o indivíduo, que surgiu apenas num determinado momento da história, foi
considerado por ela como tendo existido desde sempre. A economia
neoclássica de Carl Menger e Stanley Jevons, iniciada por volta de 1870,
idolatrou o indivíduo, tomando-o como categoria eterna e ponto de
partida da análise económica. Ambas as vertentes não compreenderam,
portanto, o contraste entre a pobreza /capitalista/ e a pobreza /pré-
capitalista,/ a primeira vivida por indivíduos isolados e alienados e a
segunda referindo-se apenas à privação sofrida no seio de uma comunidade
e em consequência numa partilha da privação.

O facto de o capitalismo ser caracterizado por indivíduos alienados (até
formarem "combinações" ou sindicatos que os reúnem em lutas comuns /
contra/ o sistema) e de serem estes indivíduos que vivem a pobreza, dá à
pobreza uma dimensão adicional; não é apenas a falta de acesso a um
conjunto de valores de uso que constitui a pobreza capitalista, mas
também um trauma psicológico que acompanha esta falta de acesso.

Isto torna-se mais claro quando analisamos a terceira caraterística da
pobreza capitalista. Esta surge por duas razões:   uma são os baixos
salários daqueles trabalhadores empregados e a outra a ausência de
emprego. É o exército de reserva do trabalho que é particularmente
afligido pela pobreza. De facto, em economias como a nossa, onde o
"empregado" e os "desempregado" não são duas categorias distintas, mas
em que a maior parte dos trabalhadores, salvo uma pequena minoria, está
desempregada vários dias por semana ou várias horas por dia, o trauma
psicológico associado à pobreza, decorrente da incapacidade de encontrar
emprego, é ainda mais generalizado. A falta de emprego aparece como um
fracasso pessoal por parte do indivíduo, como algo que lhe retira auto-
estima, além de provocar a falta de acesso a um determinado conjunto de
valores de uso.

A quarta caraterística da pobreza capitalista é a opacidade para aqueles
que a sofrem dos factores que a causam. Numa sociedade pré-capitalista,
a pobreza no sentido de falta de acesso a um determinado conjunto de
valores de uso está palpavelmente enraizada na dimensão do que é
produzido e na parte que lhe é retirada pelo senhorio /(overlord)/. Na
verdade, esta é visível para todos:   uma má colheita pode reduzir a
dimensão da produção e portanto agravar a pobreza (mesmo quando a
redução da produção é partilhada); do mesmo modo, um senhorio voraz pode
arrebatar tanto aos produtores que muitos deles ficam reduzidos à
pobreza mesmo em anos de colheita normal. Mas a razão pela qual uma
pessoa permanece desempregada e portanto pobre em condições capitalistas
permanece um mistério para a própria pessoa. Do mesmo modo, a razão pela
qual os preços sobem subitamente, empurrando mais pessoas para a
pobreza, continua a ser um mistério para os afectados.

O filme de Satyajit Ray acerca da fome em Bengala em 1943 (/Distant
Thunder/ <https://en.wikipedia.org/wiki/Distant_Thunder_(1973_film)>)
[1] <#nr> mostra, no período que antecedeu a fome, os preços a subirem
em Bengala enquanto as tropas japonesas ocupavam Singapura. Atualmente,
a guerra na Ucrânia contribui certamente para o aumento mundial dos
preços dos alimentos, o que agrava a pobreza mesmo numa aldeia remota da
África ou da Índia. A aparente opacidade das raízes da pobreza
capitalista está ligada ao fenómeno da interconexão global sob o
capitalismo; isto é, ao facto de os desenvolvimentos globais,
desenvolvimentos em terras distantes, terem um impacto em toda aldeia,
por mais remota que seja.

Estas características específicas da pobreza capitalista têm implicações
importantes, das quais chamarei a atenção apenas para uma. Muitas
pessoas bem intencionadas, que gostariam de reduzir ou eliminar a
pobreza, sugerem que deveriam ser feitas transferências do orçamento do
Estado, de modo a que todos na sociedade tenham um rendimento mínimo
básico. É claro que isso não aconteceu na escala necessária em parte
alguma, de modo que a pobreza continua a ser um fenómeno social e está
mesmo a agravar-se devido à inflação mundial dos preços dos alimentos,
juntamente com a recessão causada pelo capitalismo neoliberal; mesmo as
sugestões de transferências são invariavelmente quantias um tanto
insignificantes. Mas tudo isto se refere à pobreza no sentido de um
acesso inadequado a um conjunto de /valores de uso,/ ou seja, uma
pobreza que não se refere especificamente à pobreza /capitalista./

Mesmo que se fizessem transferências suficientes e se superasse a
pobreza no sentido de falta de acesso a valores de uso, isso ainda não
superaria a pobreza capitalista, a qual implica também um trauma
psicológico, um roubo da auto-estima através do desemprego. A superação
da pobreza capitalista neste verdadeiro sentido exige, entre outras
coisas, a criação de um emprego universal. Keynes pensava que isso era
possível sob o capitalismo, mas provou-se que estava errado. Isto não
significa que não se devam efetuar transferências; mas elas são
simplesmente insuficientes, são paliativos que não vão à raiz do problema.

Na Índia, estão atualmente a ser fornecidos cinco quilos de cereais
alimentares gratuitos por cabeça e por mês a cerca de 800 milhões de
beneficiários. A quantidade de alimentos que lhes é fornecida e a
duração deste regime (que foi iniciado devido à pandemia) são questões
discutíveis. Mas quem acredita que esquemas como este constituem a
panaceia para a pobreza na Índia contemporânea está tristemente
enganado. O que é necessário é a provisão universal de emprego,
educação, cuidados de saúde, segurança na velhice /e/ alimentação, que
devolveria às pessoas a dignidade de serem cidadãos de uma sociedade
democrática – mas isto implicaria ir para além do capitalismo neoliberal.


        30/Junho/2024

Em
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/patnaik/patnaik_30jun24.html
30/6/2024

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