terça-feira, 2 de julho de 2024

Como o Morena transformou a política anticorrupção em política de classe



POR Edwin F. Ackerman


A política anticorrupção foi fundamental para a vitória avassaladora do
partido Morena de AMLO no México. O Morena rotulou o neoliberalismo como
uma forma de redistribuição entre a elite, mobilizando a classe
trabalhadora contra os excessos dos ricos.

As eleições presidenciais que ocorreram no México no dia 2 de junho
deram uma vitória decisiva <https://jacobin.com/2024/06/claudia-
sheinbaum-mexico-presidential-election/> ao partido governante Morena e
à sua candidata, Claudia Sheinbaum. O partido fundado por Andrés Manuel
López Obrador, ou AMLO, em 2014, conquistou 60% dos votos em uma corrida
com três candidatos, além de uma maioria de dois terços no legislativo.
Sheinbaum está prestes a assumir o cargo com um mandato incontestável.
Ela fez campanha prometendo continuar as políticas implementadas por
AMLO durante seu mandato como presidente, que testemunhou avanços
mensuráveis para as classes trabalhadoras.

Os números oficiais mostram que os salários reais aumentaram
aproximadamente 30%, a participação dos trabalhadores na renda aumentou
8%, e os rendimentos dos 10% mais pobres cresceram 98,8%. Além disso, o
coeficiente de Gini, medida de desigualdade, registrou uma queda, e a
pobreza geral diminuiu em 5%, representando a maior redução em 22 anos
para mais de cinco milhões de pessoas. As taxas de desemprego estão
agora entre as mais baixas da região, acompanhadas de uma leve
diminuição do trabalho informal.

*Política de Esquerda Anticorrupção *

Não surpreendentemente, AMLO manteve índices de aprovação
extraordinariamente altos, com média na casa dos sessenta por cento
(embora uma pesquisa recente da Gallup coloque seu apoio em 80%).
Certamente, esquerdistas e progressistas de diferentes linhas criticaram
a natureza e o alcance das reformas que ele implementou durante seu
governo. Durante seu mandato, críticos afirmam que AMLO não rompeu
completamente com o neoliberalismo, não atendeu às demandas de
feministas ou ambientalistas, e fortaleceu a chamada militarização dos
assuntos públicos — muitos grandes projetos de infraestrutura no México
continuam sendo construídos e gerenciados pelo exército. Essas críticas
não são sem fundamento na realidade.

O que é incontestável, no entanto, é o progresso que o Morena alcançou
em favor da classe trabalhadora, confirmado nas urnas no início de
junho. Isso despertou um renovado interesse no mundo anglófono, que por
décadas se perguntou como revitalizar uma esquerda centrada nas classes
populares. Se houve um traço distintivo no estilo político de AMLO, foi
sua habilidade em tratar o neoliberalismo como sinônimo de corrupção.
Historicamente, a política anticorrupção tem sido o pilar da direita
neoliberal que procura privatizar as indústrias estatais dominadas pela
corrupção. Pelo menos na América Latina, as classes média e alta têm
sido o eleitorado mais fiável para este tipo de política. Mas AMLO soube
adaptar a política anticorrupção para atrair as massas sem abraçar um
antiestatismo neoliberal ou uma antipolítica tecnocrática que procura
dar poder a funcionários não eleitos.

“A privatização no México tem sido sinônimo de corrupção”, disse AMLO em
seu discurso de posse em dezembro de 2018. Ele acrescentou que

    infelizmente, essa doença quase sempre existiu em nosso país, mas o
    que aconteceu durante o período neoliberal é sem precedentes nos
    tempos modernos — o sistema como um todo operou em prol da
    corrupção. O poder político e o poder econômico se alimentaram e
    nutriram mutuamente, e o roubo dos bens do povo e da riqueza da
    nação se estabeleceu como o modus operandi.

As características definidoras do estado neoliberal mexicano incluem um
aumento na terceirização de serviços para empresas privadas, subsídios
para um setor privado incentivado a competir com empresas estatais (a
eletricidade é um dos exemplos mais marcantes), mecanismos para ceder o
controle de recursos públicos através de fideicomissos (trusts)
administrados privadamente, e formas sancionadas e não sancionadas de
evasão fiscal. No cerne do diagnóstico de AMLO sobre o mal-estar do seu
país reside uma redefinição fundamental do neoliberalismo: ao contrário
da crença comum, o neoliberalismo não se tratava da contração do estado.
Para AMLO, o neoliberalismo representava a instrumentalização do estado
para servir aos ricos.


    Austeridade republicana

A reinterpretação de AMLO sobre o neoliberalismo trouxe uma sofisticação
às discussões sobre a economia que permanece alheia a grande parte do
mundo anglófono. Graças ao Morena, o debate no México não é, como nos
Estados Unidos, sobre governo pequeno versus governo grande — o México
operou sob um “grande governo” durante o neoliberalismo, mas ele servia
consistentemente à classe alta por meios legais e ilegais. O
reconhecimento deste fato forneceu a base para uma política de classe
anticorrupção.

<https://autonomialiteraria.com.br/>

Essa compreensão ajuda a explicar o conceito emblemático do governo de
AMLO, que talvez seja contraintuitivo: “austeridade republicana”. A
austeridade republicana refere-se a uma reorganização e centralização
contínuas dos gastos públicos, com o objetivo de “cortar de cima”. O
neoliberalismo no México, conforme entendido pelo Morena, não
significava a contração geral do estado, mas sua descentralização e
instrumentalização — a austeridade (de um tipo específico) poderia,
portanto, ser contra intuitivamente uma ferramenta para combater o
neoliberalismo.

Aqui, a conexão com o diagnóstico mais amplo de AMLO sobre corrupção é
fundamental: a austeridade republicana busca combater o neoliberalismo/
corrupção através da eliminação de intermediários de todos os tipos
entre o estado e a cidadania na distribuição de recursos públicos. A
visão do governo de AMLO é que essas redes intermediárias — partes do
setor privado, intermediários clientelistas, ONGs que recebem fundos
governamentais, fideicomissos ou simplesmente empresas privadas
contratadas pelo estado para realizar serviços específicos — facilitam a
captura orçamentária. Assim, central para a política do Morena tem sido
o impulso para centralizar funções governamentais que haviam sido
terceirizadas para entidades privadas ou semi privadas.

Em uma coletiva de imprensa em maio de 2021, AMLO vinculou seu projeto
político a uma visão distinta da história mexicana:

    No nosso país, a acumulação de capital não ocorreu necessariamente
    através da exploração do burguês ou do empregador sobre o
    trabalhador; a acumulação de capital no México ocorreu através da
    corrupção. Isso não é novo; aumentou na última fase, no período
    neoliberal… não é para marginalizar o marxismo, não é [que
    discussões] sobre luta de classes, ou mais-valia sejam inválidas,
    mas sim que o caso do México é algo especial.

Certamente, há muitas objeções acadêmicas que se poderiam fazer aos
argumentos de AMLO, especialmente sua afirmação de que a redistribuição
política ascendente é uma característica única da política mexicana. No
entanto, o que essa narrativa faz é explicar em grande parte a
perspectiva e os objetivos do governo Morena. Mais do que uma série de
crimes individuais ou escândalos isolados, para AMLO, a corrupção é
consequência de uma reordenação na relação estado-economia. O
neoliberalismo foi caracterizado não pela contração do governo, mas pela
sua conversão em um estado rentista reverso, no qual o governo e uma
rede de contratantes drenavam dinheiro público através de uma série de
mecanismos muitas vezes ilegais. Isso variava desde a terceirização de
funções governamentais até, nos casos mais extremos, a criação de
estruturas paralelas de empresas de fachada e empresas fraudulentas,
produzindo uma aliança não oficial entre políticos, empresários e
prestadores de serviços especializados.

Esse nexo de políticos-empresários-consultores representa uma fração que
é, se não específica do neoliberalismo mexicano, especialmente
proeminente dentro dele. A característica definidora desta fração de
classe é que seu valor excedente é gerado não pela produção e venda de
bens no livre mercado, mas pela extração de recursos públicos. Em vez de
focar exclusivamente na exploração dos trabalhadores, AMLO concebeu a
luta de classes no neoliberalismo principalmente como uma batalha para
desmantelar essa fração através da luta contra a corrupção armada com a
ferramenta da austeridade republicana.

Mas os fenômenos observados por AMLO no México têm análogos em todo o
mundo. O sociólogo histórico Robert Brenner argumentou há muito tempo
que o período neoliberal é caracterizado pela redistribuição ascendente
através de meios políticos. Cortes de impostos, altas taxas de juros
sobre dívida governamental, privatização de ativos públicos a preços de
barganha e socialização de perdas privadas massivas, como os programas
de resgate após a crise financeira de 2008, são todos exemplos de como o
estado interveio na economia para alterar o equilíbrio do poder de
classe em favor dos ricos.

Em todo o mundo rico, assim como no Sul Global, o estado não
simplesmente se contraiu. O historiador de desigualdade Thomas Piketty
descobriu que as receitas fiscais nos países ricos como porcentagem do
produto nacional nunca diminuíram durante o período neoliberal. O
neoliberalismo foi, na verdade, uma reorganização do estado para que ele
pudesse reproduzir mais de perto os interesses do capital. Esta fusão de
poder político, administrativo e econômico sem dúvida tornou o
neoliberalismo difícil de desalojar. Mas também expôs as elites ao tipo
de crítica moral e política promovida mais fortemente por AMLO. Este
tipo de política de esquerda anticorrupção não apenas conseguiu
legitimar a redistribuição, mas trouxe a classe trabalhadora de volta ao
campo dos partidos de esquerda, revertendo a tendência de desalinhamento
predominante em grande parte do mundo rico.


      Sobre os autores


          Edwin F. Ackerman <https://jacobin.com.br/author/edwinackerman/>

é professor assistente de sociologia na Universidade de Syracuse e
pesquisador visitante no Weatherhead Center for International Affairs em
Harvard.

Em
JACOBINA
https://jacobin.com.br/2024/06/como-o-morena-transformou-a-politica-anticorrupcao-em-politica-de-classe/
27/6/2024

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