sábado, 31 de agosto de 2024

Leilão “progressista” da Venezuela

 

Leilão “progressista” da Venezuela



Vários países latino-americanos com governos supostamente de centro-esquerda ou de esquerda juntaram-se aos EUA em propostas que procuram minar os processos democráticos venezuelanos. O que provocou uma vaga de desiludida indignação entre os que, mundo fora, se solidarizam com o processo bolivariano e condenam a sistemática ingerência e agressão dos EUA em relação a ele. Este texto formula uma avaliação da real natureza, limites e contradições internas de tais governos. Mostra que o que é aconselhável é moderar a desilusão, porque esta resulta de uma apreciação provavelmente pouco realista dessas situações. A 2ª vaga “progressista” na América Latina é bastante mais à direita e mais limitada do que a 1ª. E mesmo esta sofrera sérias derrotas.

Em 16 de Agosto, a Organização dos Estados Americanos (OEA), cuja formação em 1948 como instituição da Guerra Fria foi instigada pelos Estados Unidos, votou uma resolução sobre as eleições presidenciais venezuelanas.

O cerne da resolução proposta pelos EUA pedia à autoridade eleitoral da Venezuela, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), que publicasse todos os detalhes das eleições o mais rapidamente possível (incluindo as actas, ou registos de votação, ao nível das assembleias de voto locais).

Esta resolução pede ao CNE que vá contra a Lei Orgânica de Processos Eleitorais da Venezuela (Ley Orgánica de Procesos Electorales ou LOPE). Uma vez que a lei não exige a publicação destes materiais, fazê-lo seria uma violação do direito público.

O que a lei indica é que a CNE deve anunciar os resultados no prazo de 48 horas (artigo 146º) e publicá-los no prazo de 30 dias (artigo 155º) e que os dados das assembleias de voto (tais como as actas) devem ser publicados em forma de tabela (artigo 150º).

É pura ironia que a resolução tenha sido votada na sala Simón Bolívar na sede da OEA em Washington, D.C.

Bolívar (1783-1830) libertou a Venezuela e os territórios vizinhos do Império Espanhol e procurou criar um processo de integração que reforçasse a soberania da região. É por isso que a República Bolivariana da Venezuela presta homenagem ao seu legado no seu nome.

Quando Hugo Chávez assumiu a presidência, em 1998, centrou Bolívar na vida política do país, procurando aprofundar este legado através de iniciativas como a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA), que daria continuidade ao caminho para estabelecer a soberania no país e na região.

Em 1829, Bolívar escreveu : “Os Estados Unidos parecem estar destinados pela providência a atormentar a América [Latina] com miséria em nome da liberdade.” Essa miséria, no nosso tempo, é exemplificada pela tentativa dos EUA de sufocar os países latino-americanos por meio de golpes militares ou sanções. Nos últimos anos, Bolívia, Cuba, Nicarágua e Venezuela têm estado no epicentro desta “praga”. A resolução da OEA faz parte desse sufoco.

A Bolívia, as Honduras, o México e São Vicente e Granadinas não foram a votos (nem Cuba, que foi expulsa da OEA em 1962, o que levou Fidel Castro a apelidar a organização de “Ministério das Colónias dos Estados Unidos”, nem a Nicarágua, que abandonou a OEA em 2023).

O presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador, conhecido como AMLO, explicou por que razão o seu país decidiu não comparecer na reunião da OEA e por que razão discorda da resolução proposta pelos EUA, citando o artigo 89, secção X da Constituição mexicana de 1917, que afirma que o presidente do México deve aderir aos princípios de “não intervenção; resolução pacífica de disputas; [e] proibição da ameaça ou uso da força nas relações internacionais”.

Para esse fim, AMLO disse que o México aguardará que a “autoridade competente do país” resolva qualquer desacordo. No caso da Venezuela, o Supremo Tribunal de Justiça é a autoridade competente, o que não impediu a oposição de rejeitar a sua legitimidade.

Esta oposição, que caracterizámos como a extrema-direita de um tipo especial, está empenhada em utilizar qualquer recurso - incluindo a intervenção militar dos EUA - para derrubar o processo bolivariano. A posição razoável de AMLO está em consonância com a Carta das Nações Unidas de 1945.

Muitos países com governos aparentemente de centro-esquerda ou de esquerda juntaram-se aos EUA na votação desta resolução da OEA. Entre eles estão o Brasil, o Chile e a Colômbia.

O Chile, apesar de ter um presidente que admira Salvador Allende, que foi morto num golpe imposto pelos EUA em 1973, tem mostrado uma orientação de política externa em muitas questões, incluindo a Venezuela e a Ucrânia, que alinha com o Departamento de Estado dos EUA.

Desde 2016, a convite do governo chileno, o país acolheu quase meio milhão de migrantes venezuelanos, muitos dos quais estão sem documentos e agora enfrentam a ameaça de expulsão por um ambiente cada vez mais hostil no Chile.

É quase como se o presidente do país, Gabriel Boric, quisesse ver a situação na Venezuela mudar para poder ordenar o regresso dos venezuelanos ao seu país de origem. Essa atitude cínica em relação ao entusiasmo do Chile pela política dos EUA em relação à Venezuela, no entanto, não explica a situação do Brasil e da Colômbia.

O último dossiê do nosso Tricontinental, “To Confront Rising Neofascism, the Latin American Left Must Rediscover Itself”, analisa o actual cenário político do continente, começando por questionar a suposição de que houve uma segunda “maré rosa” ou ciclo de governos progressistas na América Latina.

O primeiro ciclo, que foi inaugurado com a eleição de Hugo Chávez em 1998 na Venezuela e chegou ao fim após a crise financeira de 2008 e a contraofensiva dos Estados Unidos contra o continente, “desafiou frontalmente o imperialismo norte-americano ao fazer avançar a integração latino-americana e a sua soberania geopolítica”, enquanto o segundo ciclo, definido por uma orientação mais de centro-esquerda, “parece mais frágil”.

Esta fragilidade é emblemática da situação tanto no Brasil como na Colômbia, onde os governos de Luiz Inácio “Lula” da Silva e Gustavo Petro, respectivamente, não conseguiram exercer pleno controlo sobre as burocracias permanentes dos ministérios dos Negócios Estrangeiros.

Nem o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, nem o da Colômbia, Luis Gilberto Murillo, são homens de esquerda ou mesmo de centro-esquerda, e ambos têm laços estreitos com os EUA como ex-embaixadores no país.

É preciso reflectir sobre o facto de existirem ainda mais de 10 bases militares norte-americanas na Colômbia, mas isso não é razão suficiente para a fragilidade deste segundo ciclo.

No dossier, a Tricontinental apresenta sete explicações para esta fragilidade:

1. as crises financeiras e ambientais mundiais, que criaram divisões entre os países da região sobre qual caminho seguir;

2. a reafirmação do controlo dos Estados Unidos sobre a região, que o tinham perdido durante a primeira vaga progressista, nomeadamente para contestar o que os Estados Unidos consideram ser a entrada da China nos mercados latino-americanos. Isto inclui os recursos naturais e laborais da região;

3. a crescente uberização dos mercados de trabalho, que criou muito mais precariedade para a classe trabalhadora e afectou negativamente a sua capacidade de organização de massas. Isto resultou num retrocesso significativo dos direitos dos trabalhadores e no enfraquecimento do poder da classe trabalhadora;

4. a reconfiguração da reprodução social, que passou a centrar-se no desinvestimento público em políticas de protecção social, colocando assim a responsabilidade dos cuidados na esfera privada e sobrecarregando sobretudo as mulheres;

5. o aumento do poder militar dos EUA na região como principal instrumento de dominação em resposta ao declínio do seu poder económico;

6. o facto de os governos da região não terem sido capazes de tirar partido da influência económica da China e das oportunidades que esta apresenta para impulsionar uma agenda soberana e de a China, que emergiu como o principal parceiro comercial da América Latina, não ter procurado desafiar directamente a agenda dos EUA para assegurar hegemonia sobre o continente;

7. divisões entre os governos progressistas, que, juntamente com o ascenso do neofascismo nas Américas, impedem o crescimento de uma agenda regional progressista, incluindo políticas de integração continental semelhantes às propostas durante a primeira vaga progressista.

Estes factores, e outros, enfraqueceram a assertividade destes governos e a sua capacidade de concretizar o sonho bolivariano comum de soberania e parceria hemisférica.

Um ponto adicional, mas crucial, é o facto de a relação das forças de classe em sociedades como o Brasil e a Colômbia não ser favorável a uma política genuinamente anti-imperialista.

Ocasiões eleitorais celebradas, como as vitórias de Lula e Petro em 2022, não são construídas sobre uma base alargada de apoio organizado da classe trabalhadora que obrigue a sociedade a avançar com uma agenda genuinamente transformadora para o povo.

As coligações que triunfaram incluem forças de centro-direita que continuam a exercer o poder social e a impedir que estes líderes, independentemente das suas credenciais impecáveis, exerçam uma governação livre. A fraqueza destes governos é um dos elementos que permite o crescimento de uma extrema-direita de tipo especial.

Como argumentamos no dossier,

“A dificuldade de construir um projecto político de esquerda capaz de ultrapassar os problemas quotidianos da vida da classe trabalhadora desvinculou muitos destes projectos eleitorais progressistas das necessidades das massas”.

As classes trabalhadoras, presas em ocupações precárias, precisam de investimentos produtivos maciços, impulsionados pelo Estado, tendo como premissa o exercício da soberania sobre cada país e a região como um todo. O facto de vários países da região se terem alinhado com os EUA para diminuir a soberania da Venezuela mostra que estes frágeis projectos eleitorais têm pouca capacidade para defender a soberania.

No seu poema “Quo Vadis”, a poetisa mexicana Carmen Boullosa reflecte sobre a natureza problemática da fidelidade à agenda do governo dos EUA. “Las balas que vuelan no tienen convicciones“(”as balas que voam não têm convicções”), escreve.

Estes governos “progressistas” não têm qualquer convicção em relação a operações de mudança de regime ou aos esforços de desestabilização noutros países da região. Muito poderia ser esperado deles mas, ao mesmo tempo, não se justifica uma desilusão excessiva.

Fonte: https://consortiumnews.com/2024/08/26/vijay-prashad-progressive-sellout-of-venezuela/

Em

O DIARIO.INFO

https://www.odiario.info/leilao-progressista-da-venezuela/

29/8/2024


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