quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

"Sem indignação, nada de grande e significativo ocorre na história humana"

26/12/2012

Michael Löwy
Nesta entrevista à Fundação Oswaldo Cruz, o investigador do Centre National de
la Recherce Scientifique (CNRS) diz que a dinâmica de movimentos como o dos
“Indignados” é de uma crescente radicalização anticapitalista, embora nem sempre
de forma consciente. Michael Löwy esteve no Brasil em dezembro para lançar ‘A
teoria da revolução no jovem Marx', publicado em 1970 na França e que só agora
ganha edição em português.
Fundação Oswaldo Cruz
Data: 26/12/2012
Michael Löwy esteve no Brasil no final de 2012 para lançar o livro ‘A teoria da
revolução no jovem Marx', que foi publicado em 1970 na França e só agora tem uma
edição em português.
Durante a sua estada no país, participou de muitos eventos e falou sobre temas
diversos, como literatura e a questão ecológica. Nada que surpreenda no perfil
de um pesquisador que circula com desenvoltura entre o estudo dos clássicos e a
análise da conjuntura atual, e isso sem abrir mão da militância política de
esquerda. Nesta entrevista, ele lança mão dos conceitos que aprendeu com os
clássicos – principalmente Marx e Walter Benjamin – para discutir a crise que o
capitalismo atravessa e os movimentos reivindicatórios que têm surgido em
diferentes cantos do mundo. Além disso, explica os princípios e limitações da
ideia de ‘ecossocialismo', com a propriedade de ter sido um dos autores do
Manifesto que defende essa bandeira.
Brasileiro residente na França desde 1969, Löwy é diretor de pesquisas do Centre
National de la Recherce Scientifique (CNRS) e responsável por um seminário na
Écoles de Hautes Études en Sciences Sociales. Só em português, é autor de mais
de 20 livros.
Como a teoria da revolução do jovem Marx, de que trata o seu livro, nos ajuda a
entender o momento atual, com mobilizações de indignados no Estado espanhol,
Grécia e vários outros países da Europa, além de movimentos de ‘ocupação' em
vários locais do mundo? Esses são movimentos anticapitalistas?
Os movimentos de ‘Indignados' opõem-se às políticas ditadas pelo capital
financeiro, pela oligarquia dos bancos e aplicadas por governos de corte
neoliberal, cujo principal objetivo é fazer com que os trabalhadores, os pobres,
a juventude, as mulheres, os pensionistas e aposentados – isto é, 99% da
população – paguem a conta pela crise do capitalismo. Esta indignação é
fundamental. Sem indignação, nada de grande e de significativo ocorre na
história humana. A dinâmica destes movimentos é de uma crescente radicalização
anticapitalista, embora nem sempre de forma consciente. É no curso de sua ação
coletiva, de sua prática subversiva, que estes movimentos poderão tomar um
caráter radical e emancipador. É o que explicava Marx na sua teoria da
revolução, inspirada pela filosofia da práxis.
Marx escreveu no século XIX. As revoluções socialistas a que assistimos
aconteceram no século 20. O que a realidade trouxe de diferente na forma como se
concretizaram e na forma como se entende revolução nos séculos 19, 20 e 21?
As revoluções sempre tomam formas imprevistas, inovadoras, originais. Nenhuma se
assemelha às anteriores. A Comuna de Paris (1871) foi um formidável levante da
população trabalhadora da grande cidade e a Revolução Russa foi uma convergência
explosiva entre proletariado urbano e massas camponesas. Nas demais revoluções
do século 20, desde a Mexicana de 1911 até a Cubana de 1959, ou nas revoluções
asiáticas (China, Vietname), foram os camponeses o principal sujeito do processo
revolucionário. Não podemos prever como serão as revoluções do século 21: sem
dúvida, não repetirão as experiências do passado. Por outro lado, existe o que
Walter Benjamin chamava de ‘a tradição dos oprimidos': a experiência da Comuna
de Paris inspirou a Revolução Russa e é ainda até hoje um exemplo de
autoemancipação revolucionária das classes subalternas.
Com a crise capitalista de 2008 e o movimento de intervenção dos Estados para
salvar a economia dos países, acreditou-se que a era neoliberal havia chegado ao
fim. No entanto, tem sido intensificada cada vez mais a destruição dos direitos
conquistados com o Estado de Bem-Estar Social, como temos visto acontecer na
Europa (França, agora Espanha...). O que isso significa?
A intervenção dos Estados não significou de forma alguma o fim do
neoliberalismo. O único objetivo desta intervenção era salvar os bancos,
resgatar a dívida e assegurar os interesses dos mercados financeiros. Para este
objetivo, foram sacrificadas conquistas de dezenas de anos de lutas dos
trabalhadores: direitos sociais, serviços públicos, pensões e aposentadorias,
etc. Para a lógica de chumbo do capitalismo neoliberal, tudo isto são ‘despesas
inúteis'.
Um debate antigo da esquerda é sobre a relação entre revolução e reforma. O
contexto do final do século 20 e do início do século 21, com situações como, por
exemplo, a vitória eleitoral de partidos de esquerda na América Latina e mesmo
em alguns países da Europa recolocam essa questão. Como analisa essa relação
hoje?
Rosa Luxemburgo já havia explicado, em seu belo livro ‘Reforma ou Revolução?'
(1899), que os marxistas não são contra as reformas; pelo contrário, apoiam
qualquer reforma que seja favorável aos interesses dos trabalhadores: salário
mínimo, seguro médico, seguro desemprego, por exemplo. Simplesmente, lembrava
ela, não podemos chegar ao socialismo pela acumulação gradual de reformas; só
uma ação revolucionária, que derruba o muro de pedra do poder político da
burguesia, pode iniciar uma transição ao socialismo. O problema da maioria dos
governos de centro-esquerda, seja na Europa ou na América Latina, é que as
‘reformas' que aplicam são muitas vezes de corte neoliberal: privatizações,
regressões no estatuto dos pensionistas, etc. Tratam-se de variantes do
social-liberalismo, que aceitam o quadro económico capitalista mas,
contrariamente ao neoliberalismo reacionário, têm algumas preocupações sociais.
É o caso dos governos Lula-Dilma no Brasil. Temo que no caso da França (François
Hollande, recentemente eleito), nem a isto chegue...
Um desafio dessa esquerda que chegou ao poder na América Latina tem sido
equacionar a dependência econômica da exploração de recursos naturais (como o
petróleo na Venezuela e o gás natural na Bolívia) com a tentativa de superação
da lógica capitalista de destruição do meio ambiente. Na sua opinião, essa
equação é possível?
Contrariamente aos governos social-liberais, os da Venezuela, Bolívia e Equador
têm levado adiante uma verdadeira rutura com o neoliberalismo, enfrentando as
oligarquias locais e o imperialismo. Mas dependem, para a sua sobrevivência
económica, e para financiar os seus programas sociais, da exploração de energias
fósseis – petróleo, gás –, que são os principais responsáveis pelo desastre
ecológico que ameaça o futuro da humanidade.
É difícil exigir destes governos que deixem de explorar estes recursos naturais,
mas eles poderiam utilizar uma parte do rendimento do petróleo para desenvolver
energias sustentáveis – o que fazem muito pouco. Uma iniciativa interessante é o
projeto ‘Parque Yasuni', do Equador, proposta dos movimentos indígenas e dos
ecologistas assumida, após algumas hesitações, pelo governo de Rafael Correa.
Trata-se de preservar uma vasta região de florestas tropicais, deixando o
petróleo embaixo da terra, mas exigindo, ao mesmo tempo, que os países ricos
paguem metade do valor (9 bilhões de dólares) deste petróleo. Até agora, não
houve iniciativas comparáveis na Venezuela ou na Bolívia.
A crítica à destruição do meio ambiente como intrínseca ao capitalismo já estava
presente na obra de Marx?
Muitos ecologistas criticam Marx por considerá-lo um produtivista, tanto quanto
os capitalistas. Tal crítica parece-me completamente equivocada: ao fazer a
crítica do fetichismo da mercadoria, é justamente Marx quem coloca a crítica
mais radical à lógica produtivista do capitalismo, à ideia de que a produção de
mais e mais mercadorias é o objetivo fundamental da economia e da sociedade. O
objetivo do socialismo, explica Marx, não é produzir uma quantidade infinita de
bens, mas sim reduzir a jornada de trabalho, dar ao trabalhador tempo livre para
participar da vida política, estudar, jogar, amar.
Portanto, Marx fornece as armas para uma crítica radical do produtivismo e,
notadamente, do produtivismo capitalista. No primeiro volume de O Capital, Marx
explica como o capitalismo esgota não só as energias do trabalhador, mas também
as próprias forças da Terra, esgotando as riquezas naturais, destruindo o
próprio planeta. Assim, essa perspetiva, essa sensibilidade está presente nos
escritos de Marx, embora não tenha sido suficientemente desenvolvida.
O Manifesto Ecossocialista, que o sr. ajudou a escrever em 2001, diz que o
capitalismo não é capaz de resolver a crise ecológica que ele produz. Como o sr.
analisa as soluções a esse problema que vêm sendo apresentadas pelo capitalismo,
como é o caso da economia verde?
A assim chamada ‘economia verde', propagada por governos e instituições
internacionais (Banco Mundial, etc), não é outra coisa senão uma economia
capitalista de mercado que busca traduzir em termos de lucro e rentabilidade
algumas propostas técnicas ‘verdes' bastante limitadas.
Claro, tanto melhor se alguma empresa trata de desenvolver a energia eólica ou
fotovoltaica, mas isto não trará modificações substanciais se não for
acompanhado de drásticas reduções no consumo das energias fósseis.
Mas nada disto é possível sem romper com a lógica de competição mercantil e
rentabilidade do capital. Outras propostas ‘técnicas' são bem piores: por
exemplo, os famigerados ‘biocombustíveis' que, como bem diz Frei Betto, deveriam
ser chamados de ‘necrocombustíveis', pois tratam de utilizar os solos férteis
para produzir uma pseudogasolina ‘verde', para encher os tanques dos carros – em
vez de comida para encher o estômago dos famintos da terra.
É possível implementar uma perspetiva como a do ecossocialismo no capitalismo?
O ecossocialismo é anticapitalista por excelência. Como perspectiva, implica a
superação do capitalismo, já que se propõe como uma alternativa radical à
civilização capitalista/industrial ocidental moderna. Por outro lado, a luta
pelo ecossocialismo começa aqui e agora, na convergência entre lutas sociais e
ecológicas, no desenvolvimento de ações coletivas em defesa do meio ambiente e
dos bens comuns. É através destas experiências de luta, de auto-organizaçâo, que
se desenvolverá a consciência socialista e ecológica.
A perspectiva ecossocialista pressupõe uma crítica à noção de progresso. Em que
consiste essa crítica?
Walter Benjamin insistia, com razão, que o marxismo precisa libertar-se da
ideologia burguesa do progresso, que contaminou a cultura de amplos setores da
esquerda. Trata-se de uma visão da história como processo linear, de avanços,
levando, necessariamente, à democracia, ao socialismo.
Estes avanços teriam sua base material no desenvolvimento das forças produtivas,
nas conquistas da ciência e da técnica. Em rutura com esta visão – pouco
compatível com a história do século 20, de guerras imperialistas, fascismo,
massacres, bombas atómicas –, precisamos de uma visão radicalmente distinta do
progresso humano, que não se mede pelo PIB [Produto Interno Bruto], pela
produtividade ou pela quantidade de mercadorias vendidas e compradas, mas sim
pela liberdade humana, pela possibilidade, para os individuos, de realizarem
suas potencialidades; uma visão para a qual o progresso não é a quantidade de
bens consumidos, mas a qualidade de vida, o tempo livre - para a cultura, o
ócio, o desporto, o amor, a democracia - e uma nova relação com a natureza. Para
o ecossocialismo, a emancipaçâo humana não é uma ‘lei da história', mas uma
possibilidade objetiva.
Quais as principais diferenças entre o ecossocialismo e a forma como o
socialismo real lidou com os problemas ambientais? E a socialdemocracia,
conseguiu construir alternativas a essa lógica destrutiva do capital?
O assim chamado ‘socialismo real' - muito real, mas pouco socialista - que se
instalou na URSS sob a ditadura burocrática de Stalin e seus sucessores tratou
de imitar o produtivismo capitalista, com resultados ambientais desastrosos, tão
negativos quanto os equivalentes no Ocidente. O mesmo vale para os outros países
da Europa Oriental e para a China. As intuições ecológicas de Marx foram
ignoradas e se levou a cabo uma forma de industrialização forçada, copiando os
métodos do capitalismo. A social-democracia é um outro exemplo negativo: nem
tentou questionar o sistema capitalista, limitando-se a uma gestão mais ‘social'
de seu funcionamento.
Mesmo nos países em que governou em aliança com os partidos verdes, a
social-democracia não foi capaz de tomar nenhuma medida ecológica radical. O
ecossocialismo corresponde ao projeto de um socialismo do século 21, que se
distingue dos modelos que fracassaram no curso do século 20. Ele implica uma
rutura com o modelo de civilização capitalista e propõe uma visão radicalmente
democrática da planificação socialista e ecológica.
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In:
Carta Maior
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21444&boletim_id=1475&componente_id=25109
26/12/2012

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