sábado, 26 de julho de 2014

A ascensão e a queda do sul global


por Prabhat Patnaik [*]

Foi pintado um quadro da globalização que é como se segue: os salários
reais no sul são muito mais baixos do que no norte, uma vez que o sul está
sobrecarregado com grandes reservas de trabalho. Num mundo onde o capital
é móvel, ainda que o trabalho não o seja, o capital do norte mudará a
localização da sua actividade produtiva do norte para o sul, para
aproveitar destes salários baixos, a fim de atender à procura global.
Ainda que o capital do norte não se mova para o sul, capitalistas locais
no sul que têm acesso (ou possam obter acesso) a tecnologias de produção
de vanguarda num grande número de sectores, podem produzir no sul a fim de
atender a procura global. Eles podem assim fazer com êxito devido aos
baixos salários do sul, desde que não haja barreiras para o fluxo de bens
e serviços do sul para o norte. Uma vez que "globalização" implica a
ruptura de barreiras ao livre fluxo de bens e serviços e de capital,
incluindo aquele na forma financeira, segue-se que a era da globalização é
a era da emergência do sul, de uma difusão maciça do "desenvolvimento",
dentro da ordem capitalista mundial, do norte para o sul, pela que
desaparecerá a dualidade historicamente observada da economia mundial.

Durante algum tempo este prognóstico parecia justificado. A China registou
enormes taxas de crescimento com base no aumento de exportações. A Índia
testemunhou um aumento significativo em exportações do sector de serviços
e também alcançou taxas de crescimento impressionantes, em comparação
aquelas muito mais baixas na era dirigista pré liberalização pareciam
insignificantes. A ascensão nos preços das commodities primárias, causada
entre outras coisas pelo aumento da procura de uma economia chinesa em
rápido crescimento, ajudou a África e a América Latina a registarem também
taxas de crescimento expressivas. Com a globalização parecia que havia
chegado o "momento" do sul. E o capital financeiro internacional
publicitou este tema da difusão do "desenvolvimento", uma vez que ele
"legitimava" a globalização, pintando-o numa luz extraordinariamente
favorável como uma ruptura com todas as dicotomias passadas.

Este prognóstico também tinha um corolário: o sul já não precisava de se
preocupar acerca do seu próprio mercado interno, nem acerca da
distribuição igualitária de activos entre o seu povo, acerca de reformas
agrárias, acerca da elevação do padrão de vida da sua população. Ficar
"aberto" a fluxos de bens e serviços e de capital era tudo o que
importava, uma vez que automaticamente asseguraria crescimento e elevaria
o padrão de vida da população, se não imediatamente pelo menos ao longo do
tempo – mas nenhuma estratégia de expansão do mercado interno era
realmente necessário. Ao contrário, se o sul executasse reformas
estruturais para uma distribuição igualitária de activos e rendimentos,
então a inquietação social resultante poderia mesmo afastar a entrada do
capital global e privá-lo da oportunidade de crescimento que a
globalização havia aberto. O que havia a fazer, em suma, era evitar
quaisquer reformas igualitárias e simplesmente acalentar o neoliberalismo,
uma conclusão que ia tão directamente contra toda a tradição teórica que
havia emergido das correntes "nacionalistas" e leninistas que, por algum
tempo, aquelas correntes teóricas pareceram fora de moda e obsoletas.

CENÁRIO ALTERADO

Este cenário foi completamente alterado. A crise que em 2007 afundou o
mundo capitalista avançado propagou-se agora ao sul, com taxas de
crescimento tanto na China como a Índia a desacelerarem notavelmente. E
além disso o velho mecanismo de estímulo ao crescimento dentro da
globalização parece ter chegado ao seu fim, levando as economistas
sulistas a um beco sem saída.

Isto era de esperar. Se o estímulo ao crescimento de uma economia decorre
basicamente da sua capacidade de exportar para o mercado mundial, então a
taxa de crescimento da procura mundial terá uma influência importante
sobre a sua taxa de crescimento. A recessão mundial, não
surpreendentemente, atingiu as economias do sul, incluindo a China e a
Índia – e as suas taxas de crescimento também vieram abaixo.

Mas levanta-se aqui uma questão: uma vez que os salários sulistas
continuam a ser consideravelmente mais baixos do que os do norte, por que
o processo de "difusão" de actividades não deveria, ainda que sob a égide
do capital metropolitano ou de produtores internos, continuar em plena
força, de modo a que a taxa de crescimento nos países de baixos salários
não afectasse a taxa de crescimento da procura mundial? Por outras
palavras, por que a taxa de crescimento da economia mundial não deveria
afectar exclusivamente os países de altos salários e excluir aqueles de
baixos salários dos seus efeitos destrutivos, até que as diferenças
salariais na economia mundial tivessem desaparecido?

A resposta a esta pergunta repousa na própria natureza da globalização. A
globalização não provocou a transferibilidade de todas as actividades de
todas as actividades, mas apenas de algumas. Em particular, ela realmente
fortaleceu o monopólio do capital metropolitano sobre tecnologias de
vanguarda num grande número de sectores, acima de tudo através da
institucionalização global de um regime de Direitos da Propriedade
intelectual. Isto significa que naqueles sectores onde o capital
metropolitano não pretende localizar suas unidades de produção no sul, os
produtores locais no sul não estão em posição de produzir para o mercado
mundial. E o próprio capital metropolitano não pretende, em actividades de
tecnologia intensiva, mudar a sua base de produção para o sul, privando-se
de todas as vantagens que desfruta nas suas localizações actuais no norte.
O resultado de tudo isto é que há limites para a difusão de actividades
mesmo sob a globalização actual: actividades que incorporam tecnologia
barata conseguem difundir-se no sul mas não actividades que incorporem
tecnologia avançada.

DESACELERAÇÃO DAS TAXAS DE CRESCIMENTO

Se existe um tal limite para o espectro das actividades que podem ser
difundidas, isto aponta claramente para o facto de salários mais baixos no
sul deixarem de importar no que se refere à difusão. E nas actividades que
são difundidas, a taxa de crescimento da procura mundial determina que as
taxas de crescimento dos países hospedeiros seriam aquelas em que tal
difusão se verificou. Esta é a razão porque países do sul, que até
recentemente estavam a experimentar taxas de crescimento
extraordinariamente altas, agora começam a desacelerar.

Certamente esta desaceleração no sul não foi concomitante com a
desaceleração da economia mundial. Ao contrário, por algum tempo parecia
que o sul havia escapado ao destino do norte, que não seria vítima da
crise tal como as economias nortistas. Mas a razão para este interregno
repousa não no facto de o sul estar livre da influência da recessão
mundial mas sim em outra coisa, nomeadamente na formação de "bolhas" num
certo número de economias do sul mesmo após o colapso da "bolha"
imobiliária nos EUA.

Uma vez que o capital financeiro internacional prefere "finanças
saudáveis", isto é, quer que os governos equilibrem seus orçamentos (ou no
máximo que tenham um défice orçamental que não exceda uma certa
percentagem do PIB, habitualmente 3%), a utilização do instrumento
orçamental para ressuscitar a actividade económica tem primado pela sua
ausência durante a actual crise global. O que o tem substituído é um
vigoroso recurso à política monetária. No principal país capitalista do
mundo, os EUA, as taxas de juro a curto e longo prazo foram virtualmente
conduzidas para zero através da intervenção do banco central (inclusive no
mercado de títulos a longo prazo do governo onde o banco central
normalmente não intervém).

No processo de compra de títulos do governo o Federal Reserve tem estado a
bombear enormes montantes de dinheiro, um fenómeno que é chamado
"facilidade quantitativa" ("quantitative easing"). Embora haja alguma
redução do montante bombeado a cada mês em relação ao nível anterior de
US$80 mil milhões, ainda há uma abundância de dólares a inundarem o mundo
os quais têm ido para as economias do sul com crescimento mais rápido, os
chamados "mercados emergentes", e ali criaram "bolhas".

A desaceleração do crescimento entre as economias mais dinâmica do sul
devido à recessão mundial foi portanto, numa certa medida, contrariada
pelo estímulo à procura dado pela formação destas "bolhas" – e isto
manteve as taxas de crescimento nestas economias avançarem por algum
tempo. A influência das mesmas, no entanto, começa a desvanecer-se. O sul
que supostamente estava em ascensão está agora a testemunhar uma queda, a
qual só pode ser impedida se o mercado interno for expandido através de
medidas igualitárias quanto à riqueza e à distribuição do rendimento, mas
que, além da China numa certa medida, nenhum outro país está a fazer de
qualquer maneira significativa (a China tem aumentado seus salários reais
internos, pelo menos nas regiões costeiras).

É improvável que a economia capitalista mundial registe qualquer
recuperação robusta no futuro previsível. Isto se deve ao facto de na era
da globalização, uma vez que os salários reais por toda a parte são
influenciados pelas grandes reservas de trabalho sulistas, o vector dos
salários mundiais tornam-se rígidos no sentido do aumento mesmo quando a
produtividade do trabalho ascende, levando a um aumento na fatia do
excedente mundial. Esta tendência é mais uma vez reforçada pelo
enfraquecimento dos sindicatos (pelas mesmas razões). Uma vez que o rácio
fora do excedente é mais baixo do que aquele fora dos salários, esta
redistribuição de salários para lucros (e outros rendimentos do
excedente), cria uma tendência rumo à super-produção na economia mundial.

Não se pode recorrer à intervenção do Estado para contrariar esta
tendência porque o capital financeiro, como já foi mencionado, prefere
"finanças saudáveis" e sob a globalização prevalecem os caprichos do
capital financeiro: sendo o capital financeiro internacional e os Estados
sendo Estados-nação, qualquer violação dos seus desejos corre o risco de
provocar uma fuga de capitais das suas costas. A única possível reacção à
tendência em direcção à super-produção na economia mundial sob estas
circunstâncias é dada pela formação de "bolhas". Mas estas não podem ser
feitas sob medida e, assim como a sua formação pode estimular o nível da
actividade económica mundial, o seu colapso seu o efeito oposto de
mergulhar a economia mundial numa crise aguda, como temos estado a ver.

Portanto, a economia mundial no período que vem aí é provável que
testemunhe um estado de quase estagnação, com breves recuperações
ocasionais seguidas por colapsos. As economias sulistas, ligadas sob o
regime de globalização à economia mundial, não estão em vias de conseguir
algo muito melhor. Um aspecto notável do sue alto crescimento passado é
que mesmo naquele período houve pouco impacto deste crescimento sobre o
seu estado de desemprego e sub-emprego e portanto sobre o estado de
pobreza aguda do seu povo. Na verdade, em muitos países o despojamento de
camponeses e de pequenos produtores tradicionais que ocorreu piorou ainda
mais a pobreza. Na estagnação que os ameaça nos próximos anos, uma vez que
este despojamento não cessará (mas pode mesmo ser agravado), a condição do
povo piorará ainda mais.

A revolta popular contra um regime que produz tais resultados pode ser
protelada por algum tempo pelo recurso a várias formas de fascismo, mas
logo ficará claro que a promessa da globalização para o sul foi uma
quimera, que não há alternativa a uma ampliação do mercado interno como
meio de expandir a economia e que as mudanças estruturais exigidas para
isto – tais como a redistribuição igualitária de activos, que a esquerda
sempre enfatizou – são indispensáveis para o progresso.
Do mesmo autor em resistir.info:

Os perigos da distribuição regressiva do rendimento
Sobre a crise económica global
Smith, Marx e alienação
A tributação da riqueza
Neoliberalismo e democracia
O valor do dinheiro
A natureza da actual crise capitalista
O espectro da austeridade

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em
http://peoplesdemocracy.in/2014/0720_pd/rise-and-fall-global-south

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
http://www.resistir.info/patnaik/sul_global_20jul14.html

26/Jul/14

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