sábado, 19 de julho de 2014

Smith, Marx e alienação Smith


por Prabhat Patnaik [*]

Entre não marxistas há sempre uma tendência a ignorar a especificidade
das percepções de Marx no âmago da economia política e reduzi-las, ao
invés, a ideias semelhantes mas anteriores que podem ser encontradas em
Adam Smith ou David Ricardo. O economista Paul Samuelson exprimiu esta
tendência da maneira mais flagrante, se não deliberadamente provocatória,
quando se referiu a Marx como um "pós ricardiano menor".

O problema com esta tendência é que ela perde o salto que Marx deu sobre
os seus antecessores e portanto interpretou-o muito mal. O caso clássico
de tal má interpretação é a teoria de valor de Marx, a qual é erradamente
tomada como não diferente daquela de David Ricardo (um erro que conforma a
caracterização de Marx feita por Samuelson). Um erro análogo é cometido
também quanto à visão de Marx da alienação.

Adam Smith, seria de recordar, enfatizou o significado profundo da divisão
do trabalho tanto na sociedade como um todo como também dentro da fábrica.
Em relação a esta última, ele deu o famoso exemplo da fábrica de alfinetes
onde o trabalho de manufacturar alfinetes era segmentado em numerosas
actividades separadas e diferentes trabalhadores eram assinalados a estas
diferentes actividades, o que resultava num enorme aumento da
produtividade por trabalhador. Smith havia sustentado que tal aumento de
produtividade e o rácio no qual o total da força de trabalho era dividido
em "trabalhadores improdutivos" (tais como servidores domésticos) e
"trabalhadores produtivos" (os quais produziam valor excedente) como os
dois factores chave que determinavam o aumento da riqueza das nações.

Mas tendo enfatizado o papel da divisão do trabalho como causa do
progresso económico, no sentido de aumentar a "riqueza das nações", Smith
avançou para destacar o facto de que tal especialização tendia a causar a
"mutilação mental" dos trabalhadores, uma vez que cada um deles estava
restrito a desempenhar uma única tarefa repetitiva. Vale a pena aqui citar
Smith na íntegra:
"O homem cuja vida inteira é gasta no desempenho de umas poucas
operações simples, das quais os efeitos são talvez sempre os mesmos, ou
muito aproximadamente os mesmos, não tem oportunidade de exercer o seu
entendimento ou de exercitar o seu poder inventivo na descoberta de
expedientes para remover dificuldades que nunca ocorrem. Ele
naturalmente perde, consequentemente, o hábito de tal esforço e torna-se
geralmente tão estúpido e ignorante quanto é possível tornar-se uma
criatura humana. O torpor da sua mente torna-o não só incapaz de
desfrutar ou participar de qualquer conversação racional, nem de
conceber qualquer sentimento generoso, nobre ou delicado e,
consequentemente, de formar qualquer julgamento justo referentes mesmo a
muitos dos deveres comuns da vida privada... Mas em toda sociedade
aperfeiçoado e civilizada isto é o estado no qual os trabalhadores
pobres, isto é, o grande conjunto do povo, deve necessariamente cair, a
menos que o governo faça alguns esforços para impedi-lo".
Se bem que esta visão de Smith sem dúvida apreenda um aspecto importante
da produção capitalista, um aspecto acerca do qual muitos marxistas também
escreveram e que de modo impressionante foi captado no filme Tempos
Modernos de Charlie Chaplin, ela é frequentemente mantida como sendo a
precursora da teoria da "alienação" de Marx e como contendo a sua ideia
central. Esta última afirmação no entanto é errónea e enganosa, não
obstante a perspicácia contida nas observações do próprio Smith.

Smith queria que os "governos" nas "sociedades civilizadas" impedissem
este torpor da mente que sobrevém aos pobres trabalhadores, como
complemento necessário ao progresso económico da nação. Comunistas
pré-marxistas como Proudhon [NR] também trataram das consequências
adversas da divisão do trabalho e exprimiram-se sobre como ultrapassar
este torpor. Marx resumiu a visão de Proudhon sobre isto, em A pobreza da
filosofia, com as seguintes palavras;
"O sr. Proudhon ... propõe ao trabalhador que faça não só um doze avos
do alfinete, mas sucessivamente todas as doze partes dele. O trabalhador
viria então a conhecer e compreender o alfinete. Isto é a síntese do
trabalho do sr. Proudhon... ele não pode pensar em nada melhor do que em
levar-nos de volta ao artesão ou, no máximo, ao mestre-artífice da Idade
Média".
Portanto a alienação, como Smith ou mesmo Proudhon a viam, não exige a
transcendência do capitalismo para ser ultrapassada (isto apesar do facto
de que o próprio Proudhon era comunista [NR]). O entendimento de Marx da
alienação, embora não negando a percepção que Smith e, a seguir a ele,
Proudhon, haviam avançado, era no entanto completamente diferente disto; e
a ultrapassagem exigia uma transcendência do capitalismo.

A ULTRAPASSAGEM DA ALIENAÇÃO NECESSITA DA TRANSCENDÊNCIA DO CAPITALISMO

Em Smith, eram apenas os trabalhadores que eram alienados desta maneira.
Mas em Marx, a alienação era uma característica universal do sistema,
afectando todos, não apenas os trabalhadores mas também os capitalistas. E
a universalidade da alienação caracterizando o sistema significa que ela
não podia ser ultrapassada dentro do próprio sistema; ela necessariamente
exigia a sua transcendência.

A alienação era imanente na própria forma mercadoria. Uma mercadoria é
naturalmente um valor de uso e um valor de troca; mas ela não é um valor
de uso para o produtor. Enquanto para o comprador ela é tanto um valor de
troca, representando uma certa soma de dinheiro como um valor de uso, com
certas propriedades físicas e químicas as quais satisfazem suas
exigências, para o vendedor ela é só um valor de troca, só uma certa soma
de dinheiro. As propriedades físicas e química da mercadoria são inúteis
para ele pessoalmente.

Isto é um ponto básico de diferença entre a economia política marxiana e a
economia política burguesa "convencional" ("mainstream"), uma vez que esta
última é fundamentada sobre a presunção de que a mercadoria que é trocada
por dinheiro entre o vendedor e o comprador constitui um valor de uso para
ambos (além naturalmente de ser um valor de troca para ambos). Mas se a
mercadoria é apenas um valor de troca, não um valor de uso, para o
produtor, então o produtor não pode simplesmente retirar-se do mercado e
consumir sua própria mercadoria. Venha o inferno ou a tempestade ele deve
vendê-la por uma certa soma de dinheiro; se não puder vender então está
condenado, a menos que tenha algumas reservas de cash a que recorrer.

Uma vez que todos os vendedores sabem disto, construir tais reservas pela
ampliação do negócio a expensas de rivais torna-se essencial para cada um.
A competição, por outras palavras, introduz uma luta darwiniana entre
produtores de mercadorias; e isto transmite-se ao capitalismo, o qual é
nada mais que a produção generalizada de mercadorias (onde o próprio
valor-trabalho tornou-se uma mercadoria). É a esta luta darwiniana que
está subjacente o impulso para a acumulação de capital e para a introdução
do progresso tecnológico.

O que isto significa é que não são apenas os trabalhadores que têm de
competir uns contra outros pelo emprego num mundo caracterizado pelo
desemprego (isto é, pela presença perene de um exército de reserva do
trabalho), mas os capitalistas também têm de competir uns contra os
outros. Em suma, todos os participantes neste sistema têm de representar
papeis particulares, quer gostem ou não; pois se não o fizerem então
dão-se por vencidos. Cada um deles pode conservar a sua posição dentro do
sistema, não importa se essa posição implica ser um explorador ou quem é
explorado, só representando um certo papel, actuando e comportando-se de
uma maneira particular. Cada participante individual no sistema aparece
como tendo "arbítrio" ("agency") no sentido de ser aparentemente livre
para fazer o que preferir fazer; mas de facto esta aparência é enganosa
porque o modo da sua acção é determinado pela sua posição dentro do
sistema e o papel deste impõe-se sobre ele ou ela. É digno de nota que
Marx chamou o capitalista de "capital personificado", isto é, as
tendências imanentes do sistema actuam elas próprias entre outras através
do "arbítrio" nominal dos capitalistas (tal como efectivamente dos
trabalhadores).

O capitalismo, por outras palavras, não é apenas um sistema explorador;
não é apenas um sistema anárquico onde a resultante agregada das acções de
indivíduos revela-se diferente do que pretendiam; ele é também, além
disso, um sistema "espontâneo", onde o modo de influir sobre parte dos
próprios indivíduos não é determinada pela sua vontade mas é-lhes imposta
pela posição que ocupam dentro do sistema.

A LÓGICA COERCIVA DO SISTEMA

A alienação sob o capitalismo está basicamente ligada a isto, isto é, ao
facto de que as acções dos indivíduos não são baseadas na sua própria
vontade mas derivam da lógica coerciva do sistema. O capitalista acumula
não porque goste mas porque não tem outra opção dentro da lógica do
sistema se não quiser dar-se por vencido. Os trabalhadores obedecem ordens
porque se não o fizessem seriam despedidos e postos à margem. O progresso
tecnológico é introduzido porque se um capitalista com acesso à nova
tecnologia não a introduzisse, então algum outro o faria; e o primeiro
capitalista ficaria fora da competição e seria descartado. É esta coerção
que é alienante, o facto de que o arbítrio nominal não implique arbítrio
autêntico, mas seja meramente a mediação através do qual funcionaa lógica
imanente do sistema.

Contudo é precisamente esta espontaneidade que é desafiada pelos
trabalhadores através de "combinações" que impõem cada vez mais
complexidade política (com a ajuda de teoria trazida de "fora"). Tais
combinações, por outras palavras, constituem passos para ultrapassar a
alienação imposta pelo sistema sobre os trabalhadores. Mas as tendências
imanentes do mesmo (ex. a tendência rumo à centralização do capital, sua
formação em blocos cada vez maiores), actua sempre para frustrar e
reverter estes esforços em direcção à ultrapassagem da alienação dentro do
próprio sistema.

O facto de que a globalização do capital, a qual é expressão do mais alto
nível de centralização até hoje alcançado, tenha servido para minar os
movimentos sindicais por todo o mundo capitalista, e com isto o movimento
político de esquerda, só confirma esta afirmação. Disto se segue que a
ultrapassagem da alienação, como entendida por Marx, não é possível dentro
do próprio sistema; ela só é possível através da sua transcendência. Este
facto apenas enfatiza a diferença básica entre o entendimento smithiano e
o entendimento marxiano da alienação.
[NR] Ao invés de "comunista pré-marxista" seria preferível classificá-lo
como socialista utópico.

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia .

O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2014/0323_pd/smith-marx-and-alienation . Tradução de
JF.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

28/Mai/14
http://www.resistir.info/patnaik/patnaik_smith_marx.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário