quinta-feira, 31 de julho de 2014

A semana que anunciou solenemente a nova Guerra-fria


por M. K. Bhadrakumar

Se historiadores do futuro quiserem localizar com precisão o momento de
transição em que a era pós guerra-fria transmutou-se na nova Guerra-fria,
eles estão obrigados a examinar esta semana com atenção. A administração
Barack Obama está numa disposição triunfalista após o êxito, finalmente,
em alinhar os principais aliados europeus dos EUA – Reino Unido, França,
Alemanha e Itália – por trás da sua estratégia concertada para isolar a
Rússia da Europa e impor sanções contundentes contra ela.

Obama podia ter feito um emocionante discurso Cortina de Ferro esta semana
– se não fosse a grande bagunça na Líbia, Iraque, Síria, Afeganistão, et
al, e o horrendo massacre em Gaza que arruinou a sua própria reputação e,
além disso, não esquecer, ele é um Nobel e não se supõe que lance um grito
de guerra.

Ainda assim, o vídeo da teleconferência de Obama na segunda-feira com seus
homólogos europeus anunciando que o acordo sobre "medidas coordenadas de
sanção à Rússia" sugere sem qualquer dúvida que a era pós guerra-fria está
a acabar.

Dentro das próximas "12-48 horas" Bruxelas estará a anunciar novas sanções
contra Moscovo com base nos planos dos EUA que envolvem um vasto conjunto
de medidas destinadas a deixar a economia russa de rastos. Washington em
seguida anunciará suas próprias sanções contra a Rússia.

Espera-se que as assim chamadas sanções em Três Níveis atinjam
instituições financeiras, negócios de armas e tecnologia de exploração
energética da Rússia. Os bancos russos serão impedidos de apresentar novas
emissões de títulos ou acções nas bolsas europeias e haverá proibição de
transferir tecnologias sensíveis que poderiam ser utilizadas na perfuração
em mares profundos, na exploração do Árctico e na extracção do petróleo de
xisto. Também se espera que o embargo inclua uma proibição de futuros
negócios de armas com a Rússia.

Moscovo podia antever as chamadas sanções em Três Níveis e começou a
circular os vagões. Terça-feira passada o Presidente Vladimir Putin
efectuou uma reunião no Kremlin do Conselho de Segurança da Rússia, o mais
alto organismo de elaboração política sobre política externa e questões de
segurança. Putin fez um importante discurso na reunião cuja agenda era
inequivocamente discutir opções estratégicas da Rússia no novo clima de
Guerra-fria em todas as áreas das políticas nacionais – interna, externa,
poder militar e mesmo a "guerra de informação".

Disse Putin: "Nossas Forças Armadas permanecem o mais importante garante
da nossa soberania e da integridade territorial da Rússia. Reagirmos
adequadamente e proporcionalmente à aproximação da infraestrutura militar
da NATO em direcção às nossas fronteiras e não deixaremos de observar a
expansão dos sistemas de defesa de mísseis globais e os aumentos nas
reservas de armamento não nuclear de precisão... podemos ver claramente o
que está a acontecer: grupos de tropas da NATO estão claramente a ser
reforçados em estados da Europa Oriental, incluindo os dos Mares Negro e
Báltico. E a escala e intensidade do treino operacional e de combate está
em crescimento. É imperioso implementar todas as medidas planeadas para
fortalecer a capacidade defensiva da nossa nação plenamente e no prazo
certo". ( sítio web do Kremlin ).

Os acontecimentos desta semana quase eliminam quaisquer perspectivas
residuais de uma acomodação entre Washington e Moscovo. Igualmente, o
papel mediador da Europa – França e Alemanha em particular – também está a
desaparecer. A estimativa estado-unidense é de uma situação "vence-vence"
("win-win"), porque, como observou esta semana o académico Dmity Trenin,
da Carnegie, "Mesmo se nenhum líder pró ocidental substituir um Putin no
Kremlin... a Rússia sucumbirá a um outro período de perturbação, fazendo
com que se centre sobre si própria ao invés de criar problemas para
Washington".

Trenin apresentou o cenário com dureza: "Já não é mais a luta pela
Ucrânia, mas uma batalha pela Rússia. Se Vladimir Putin conseguir manter o
povo russo do seu lado, ele vencerá. Do contrário, uma outra catástrofe
geopolítica pode seguir-se".

Naturalmente, Trenin exagera. A avaliação da popularidade de Putin é o
dobro da de Obama. O povo russo admira Putin como um patriota e um líder
forte, ao passo que os americanos vêm Obama cada vez mais como um
incompetente não importando o assunto que manuseie.

Mas o perigo real está em outro lugar – nomeadamente, a comunidade
internacional pode ter de pagar um preço pesado pelo trabalho mal feito de
Obama no estabelecimento de uma nova Guerra-fria. Quando o Irão não pôde
ser intimidado por sanções, o que é que torna Obama e seus colegas
europeus tão confiantes em que um país muito mais poderoso como a Rússia
possa ser?

Será que o poder combinado dos EUA e dos seus aliados europeus basta para
redefinir a ordem mundial e isolar a Rússia a qual, a propósito, também é
uma ávida globalizadora (ao contrário da antiga União Soviética)?

Se a Europa não vai comprar petróleo russo e vai diversificar, o que
acontece ao mercado do petrolífero que também atende ao resto do mundo? O
que acontecer na verdade à própria recuperação económica da Europa se o
preço do petróleo disparar?

De modo bastante óbvio, quando a Rússia vê a NATO e a instalação de ABMs
como um desafio existencial, como pode isto reconciliar-se com o
estabelecimento de bases militares dos EUA-NATO no Afeganistão? Além
disso, se a Rússia é um adversário, por que deveria ela cooperar com os
EUA (e o Ocidente) sobre o Irão, a Síria ou o Iraque?

Onde é que tudo isto deixa os outros países importantes nos cantos não
ocidentais do mundo – Índia, Brasil ou China? Será que o Ocidente espera
que estes países cumpram o seu regime de sanções em Três Níveis? E se eles
não o fizerem?

Não, Sr. Trentin, o Sr. está errado. Isto não é realmente acerca do regime
na Rússia, isto é acerca da ordem mundial. Isto é acerca do sistema de
Bretton Woods e o desafio a ele que Putin encabeça, como evidenciou na
cimeira dos BRICS em Fortaleza.

Isto é o contra-ataque de Obama numa guerra de guerrilha, assustado acerca
do desafio crescente à supremacia do US dólar. A questão crucial é que,
sem a liberdade contínua para imprimir notas de dólar, a economia
americana está condenada.

O resto do mundo entende perfeitamente bem que a nova Guerra-fria é disto
que trata. Mesmo os europeus não são tontos, eles também compreendem o que
está a acontecer, como testemunha a sua grande relutância em isolar a
Rússia durante todas estas semanas e meses.

Quase certamente, não há ideologia aqui envolvida. Não é uma guerra sobre
socialismo ou terrorismo, nem é uma guerra intrinsecamente acerca da
Ucrânia ou da Rússia. Em termos claros, a nova Guerra-fria é acerca da
perpetuação da dominância global dos EUA.

Sem o sistema de Bretton Woods, sem a NATO, sem superioridade nuclear
sobre a Rússia, os EUA enfrentam a perspectiva ao longo do tempo de se
tornarem uma potência amplamente diminuída. Sem a liderança
transatlântica, fica reduzido ao que costumava ser antes da I Guerra
Mundial uma centena de anos atrás – uma influente potência regional no
Hemisfério Ocidental.

29/Julho/2014
O original encontra-se em
blogs.rediff.com/mkbhadrakumar/2014/07/29/the-week-that-ushered-in-new-cold-war/


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

31/Jul/14
http://www.resistir.info/crise/bhadrakumar_29jul14.html

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