segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

A luta contra a UE e a libertação dos povos: sobre a derrota da euro-esquerda grega


por João Vilela



"Só quem se mexe sente as correntes que o prendem". Rosa
Luxemburgo


A solidariedade internacionalista para com o povo grego e a sua justa
luta contra a austeridade (nome comummente atribuído às imposições
imperialistas da União Europeia) não se exprime de forma correcta se
tivermos uma posição sectária, de crítica pela crítica, para com o Governo
do Syriza. É uma verdade indiscutível. Como é verdade que também não se é
internacionalista defendendo esse mesmo Governo contra todas as evidências
de capitulações, recuos, e traições a promessas eleitorais e a princípios
óbvios de uma política de esquerda. A unidade das forças de esquerda,
indispensável à derrota da investida capitalista, deve conservar-se com
firmeza, certamente. Não deve conservar-se a todo e qualquer preço. E o
preço de abdicar da crítica ao abandono de elementos incontornáveis e
indiscutíveis de uma política de esquerda [1] devemos, todos os que nos
reclamamos da esquerda e nos posicionamos contra a opressão ao lado dos
dominados, recusar-nos terminantemente a pagar.

Vamos a factos: logo no dia 11 de Fevereiro, na reunião do Eurogrupo,
quando o Governo grego contava meros 16 dias de vida, Yanis Varoufakis
esclarecia os parceiros europeus de que "[n]o que respeita às
privatizações, o executivo liderado por Alexis Tsipras afirma-se
"totalmente não dogmático". "Estamos prontos e dispostos a avaliar cada
projeto pelos seus próprios méritos. Notícias como aquelas que anunciam a
reversão da privatização do porto Pireus não poderiam estar mais longe da
verdade"" [2] Nesse mesmo documento, Varoufakis fez ainda saber que o
aumento do salário mínimo nacional grego, medida proclamada pelo Syriza no
dia a seguir à sua eleição, seria afinal de contas aplicado gradualmente,
apenas a partir de Setembro, de comum acordo entre trabalhadores e
patrões, e com compensações fiscais para o patronato em sede de
contribuição para a segurança social, de modo a conservarem a sua
competitividade, enquanto brindava os seus colegas com uma declaração de
amor, rica de significado e de consequências, a que adiante regressaremos:
"a Europa é una e indivísivel, e o Governo grego considera que a Grécia é
um membro permanente e inseparável da União Europeia e da nossa união
monetária (...) Alguns de vós, sei-o, ficaram desagradados com a vitória
de um partido de esquerda, de esquerda radical. A esses, tenho a dizer:
seria uma oportunidade desperdiçada verem-nos como adversários. Somos
europeístas dedicados. Preocupamo-nos profundamente com o nosso povo, mas
não somos populistas que prometam tudo a toda a gente. Mais do que isso,
podemos levar o povo grego a um acordo que seja benéfico para o europeu
médio" [3] . Se já encontrávamos aqui diversas cedências e traições às
justas aspirações do povo grego na sua luta pela emancipação do garrote da
troika, e a insinuação de uma predisposição a todos os títulos
inadmissível, a carta seguinte de Varoufakis, escrita a 18 de Fevereiro, é
já um resvalar absoluto, indecoroso, vexatório, para a capitulação em toda
a linha: Varoufakis, eleito para derrotar a troika, propõe a "supervisão
no quadro da UE e BCE e, no mesmo espírito, com o FMI durante a vigência
do atual acordo"; o Syriza, uma semana antes propunha um plano de aumento
salarial já tíbio, já amedrontado, já antipopular (pois compensava os
aumentos de salários com menos impostos para os patrões), deixa
implicitamente cair essa medida quando se compromete a evitar "ações
unilaterais que enfraqueçam as metas fiscais, a recuperação económica e a
estabilidade financeira"; o Syriza, que durante anos e anos batalhou e fez
elemento central da sua luta o combate à ditadura da dívida, a usura, a
especulação, em nome de uma reestruturação que expusesse e levasse ao
repúdio da componente ilegítima da dívida grega, recua, nesta carta, ao
ponto de prometer que as "autoridades Gregas honram as obrigações
financeiras para com todos os credores" [4] ! Todas e cada uma das medidas
do Syriza são deitadas por terra no período ínfimo de uma semana, sem que
tenha faltado sequer a suprema vergonha de o Syriza ter proposto, e feito
eleger como Presidente da República, Prokopis Pavlopoulos, militante da
Nova Democracia, grande promotor do FRONTEX e de uma política de mão
pesada contra os imigrantes ilegais. Trata-se ainda do homem que estava em
funções quando foi assassinado a sangue frio pela polícia o jovem de 15
anos Alexandros Grigoropoulos, durante uma onda sublevações anarquistas.

Mesmo dentro do Syriza, algumas vozes se têm levantado contra este rumo
político. O membro do Comité Central do Syriza, Stathis Kouvelakis,
escreveu num artigo recente que "a implementação das medidas fundamentais
do programa eleitoral do Syriza de Salónica ficam sujeitas à aprovação
prévia dos credores, o que corresponde de facto à anulação do programa.
Além disso, reconhece os termos odiosos dos acordos com os credores,
dessa forma enfraquecendo a posição negocial da Grécia sobre essa
questão". O mesmo autor faz ainda um reparo que, cotejado com a
"declaração de amor" europeísta de Varoufakis citada acima, nos fornece a
chave para deslindarmos o problema crucial da derrota do Syriza: "[t]odos
os argumentos tranquilizadores que circularam nos últimos anos – acerca de
um bluff europeu, acerca da possibilidade de derrotar a austeridade dentro
da eurozona, de separar os acordos com os credores dos memorandos, de
soluções na linha da conferência de Londres de 1953 sobre a dívida alemã
(quer dizer, de uma reestruturação favorável ao devedor com o acordo do
credor) – por outras palavras, os elementos constituintes da narrativa do
"bom euro" – entraram todos em colapso." [5]

Aqui chegados, encontramos o ponto fundamental da discussão. É
extremamente simplista, e em nada elucida quem acompanha o debate,
reduzir o que se passa na Grécia a uma discussão moral sobre a falta de
coragem do Syriza. Há traições, recuos, capitulações e derrotas que devem
ser tratadas pelo nome. Isso é uma questão. Outra, que é a que importa, é
a análise dos motivos subjacentes a essa mesma derrota. E é de todo
evidente que o motivo central da derrota do Syriza foi, e será no caso de
qualquer partido que perfilhe a grelha de leitura da euro-esquerda, a
crença, que francamente chega a ter semelhanças com a religiosidade, nas
instituições europeias, no projecto europeu, na natureza intrinsecamente
solidária da União Europeia, e demais patacoadas. A União Europeia,
digamo-lo com todas as letras, é um utensílio de subjugação, de dominação,
de exploração e de desapossamento da liberdade e da soberania dos povos
periféricos pela burguesia dos seus potentados centrais, sobretudo a
alemã. Qualquer luta que se trave contra ela pressupondo a bondade da UE,
ou simplesmente a neutralidade da UE, levando a discussão para as suas
instituições, promovendo alterações dentro do seu circuito de tratados,
acordos, e demais parafernália jurídico-diplomática, apelando ao bom
coração dos seus burocratas e à solidariedade dos Governos do centro
imperialista para com os povos dominados, vai espatifar-se contra uma
parede. Dentro da UE é-se, e ser-se-á sempre, escravo da burguesia alemã.
A libertação implica romper com a UE. A discussão de como se pode
permanecer na UE e ser um Estado livre e soberano roça o ridículo.

Que a derrota da euro-esquerda grega, forçada a recuar em toda a linha,
elucide o povo grego, e elucide todas as organizações em luta contra a
opressão da chamada austeridade, para esta evidência: nenhuma luta em
nome dos interesses dos trabalhadores, em nome dos interesses das classes
populares, em nome da sua libertação, da garantia de que viverão numa
sociedade mais justa e poderão almejar a construir o socialismo e o
comunismo será possível sem que, primeiro e antes de mais, tenham quebrado
as correntes que os prendem à União Europeia. Bem sabemos que, como dizia
Rosa Luxemburgo, só quem se mexe sente as correntes que o prendem. Os
gregos mexeram-se. E sentiram-nas nos pulsos, nas pernas, detendo-os e
mantendo-os no redil. Sabem que existem. Sabem que importa parti-las para
que se livrem do cárcere em que a UE se tornou. Para com essa luta, para
com essa consciencialização, a minha mais absoluta solidariedade
internacionalista.

21/Fevereiro/2015

(1) Esqueçamos, por agora, e pese embora não seja um detalhe, o abandono
de elementos cruciais de uma política anticapitalista.
(2)
www.esquerda.net/artigo/grecia-torna-publico-o-que-propos-ao-eurogrupo/35863

(3) www.protothema.gr/files/1/2015/02/18/varouf0.pdf . O texto original,
em inglês, é "Europe is whole and indivisible, and the government of
Greece considers that Greece is a permanent and inseparable member of the
European Union and our monetary union. (...) Some of you, I know, were
displeased by the victory of a leftwing, a radical leftwing, party. To
them I have this to say: It would be a lost opportunity to see us as
adversaries. We are dedicated Europeanists. We care about our people
deeply but we are not populists promising all things to all people.
Moreover, we can carry the Greek people along an agreement that is
genuinely beneficial to the average European.". A tradução é da
responsabilidade do autor.
(4) www.esquerda.net/...
(5) www.esquerda.net/artigo/o-syriza-esta-recuar/35899
N. do A.: Todas as citações foram propositadamente retiradas do
esquerda.net, site oficial do Bloco de Esquerda, partido português
congénere do Syriza e seu parceiro no Partido da Esquerda Europeia, de
modo a evitar qualquer enviesamento na informação fornecida.

Do mesmo autor:
Organização popular e eleitoralismo

Ver também:

Eurogroup statement on Greece
On the SYRIZA Government's Agreement with the Eurogroup , PCG
Before It Is Too Late , Manolis Glezos (deputado do Syriza no PE)
Syriza Capitulates To The EU , Robert Stevens

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
http://resistir.info/portugal/vilela_syriza_21fev15.html
22/2/2015

Nenhum comentário:

Postar um comentário