segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Neoliberalismo e retomada do movimento operário e popular: os anarquistas

Candido G. Vieitez

A crise econômica e as políticas exacerbadamente antipopulares do neoliberalismo estão revolvendo as entranhas da sociedade capitalista, desnudando e potenciando contradições insuperáveis. Esta é possivelmente a causa principal da retomada do movimento operário e popular (MOP), inclusive no centro imperial, ainda que segundo variações presumíveis em cada país1. Este acontecimento é particularmente significativo no que diz respeito à Europa, uma vez que esta, por sua riqueza e políticas de welfare era usualmente assinalada na apologética da ordem como o exemplo concreto da harmonia e humanização capitalista.
As manifestações populares de massa, que por sua espontaneidade e carência de articulação política evocam o mob inglês do tempo da revolução industrial, são talvez o acontecimento mais chamativo na atual retomada2. O mais expressivo, no entanto, é o reencontro dos operários com a luta social, bem como suas tradicionais formas de luta, tais como paralisações, greves, manifestações de rua, ocupações de empresas, e marchas dentre outras3. Isto mostra que a classe operária continua significativamente presente na sociedade, em que pese o fato de que sua suposta inexpressividade tenha sido cantada em prosa e verso. Por outro lado, não deixa de chamar a atenção que a luta social não é mais uma quase exclusividade dos operários dado que, trabalhadores das “classes médias”, como estudantes, professores e profissionais da saúde dentre outros, passaram também a se socorrer dela4.
Num outro terreno temos o cooperativismo dos trabalhadores que é outro acontecimento digno de nota desde pelo menos os anos 1990. No entanto, as fábricas apropriadas pelos trabalhadores, um acontecimento com poucos antecedentes fora de períodos insurrecionais, que na Argentina são denominadas recuperadas, notabilizam-se não tanto por assumirem frequentemente a forma cooperativa de organização, mas pelo fato de que em sua gênese, ontem como hoje, encontraram-se “perigosamente” próximas de uma atividade de controle operário. O controle operário é um fenômeno real ou virtualmente questionador da propriedade capitalista, e que esteve presente no cerne da Revolução Russa.
Aliás, até mesmo o controle operário, eclipsado mundo afora como consigna ou como prática pouco tempo após a revolução soviética, dá sinal de si na atual quadra histórica, embora isto esteja por ora embrionariamente restringido à Venezuela5 ou pouco mais.
Em conexão com a retomada do movimento social encontramos o ressurgimento, ou, tentativa de ressurgimento, de correntes político-sociais que durante a “fase dourada” do capitalismo chegaram a ser consideradas superadas, e não apenas pela direita, muito ao contrário. Este é o caso de partidos políticos comunistas revolucionários que ora se constituem ou que buscam ressurgir do ostracismo político6. Outra corrente político-social que aflora na sociedade, e que também esteve na categoria das manifestações sociais supostamente anacrônicas é a anarquista7, na qual no detemos.
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O anarquismo teve sua importância no movimento operário italiano. E seguramente foi muito importante na Espanha, país em que aparece como uma das forças imbricada na luta contra o fascismo montante nos anos 1930. No Brasil, a doutrina anarquista, “importada” pelas numerosas colônias imigrantes de trabalhadores espanhóis e italianos, foi possivelmente a corrente militante mais influente no movimento operário até pelo menos a década de vinte do século passado. Entretanto, o papel mais importante e expressivo dessa corrente foi interpretado, com certeza, na Revolução Russa de outubro de 1917, onde contracenou com os bolcheviques na luta pela revolução.
Avrich8 afirma que “El anarquismo ruso nunca llegó a ser um credo político de las masas de campesinos y obreros industriales” (p. 257). Mas afirma, também, que os anarquistas tiveram um papel significativo na Revolução e que “[...] si uno trata de evaluar el verdadero alcance y la complejidad de la revolución de 1917 y los acontecimientos que sucedieron posteriormente, es imprescindible tener en cuenta el papel que jugaron los anaquistas” (p.11).
Várias correntes anarquistas estavam presentes na Rússia: anarco-individualistas, anarco-comunistas, anarcosindicalistas. E, depois que os bolcheviques assumiram o poder, surgiram os anarcosoviéticos que inclusive ocuparam cargos no
governo. Estas correntes nunca se entenderam muito bem. As duas primeiras praticaram a típica e secular violência russa ligada ao Antigo Regime, o que se manifestava em atentados mais ou menos aleatórias contra a propriedade, o Estado, a nobreza ou a burguesia. Já os anarcosindicalistas não eram favoráveis a essas ações, acreditando que o correto era fazer um trabalho de educação, agitação e propaganda junto aos operários, sobretudo com o intuito – daí o sindicalismo- de que estes tomassem a revolução socialista em suas próprias mãos.
Estas importantes divisões prático/doutrinárias, mais o fato de que os anarquistas em geral tinham verdadeira ojeriza a organizações com poderes centralizados, explicam em grande parte que, malgrado várias tentativas, jamais conseguiram constituir, ao menos na Rússia, uma organização minimamente unitária.
Os anarcosindicalistas foram a faccão anarquista mais influente no movimento operário e na revolução. Isto ocorreu devido à sua postura em relação à classe trabalhadora e devido também a uma coincidência relativa entre sua doutrina e a inclinação natural do movimento operário nas principais cidades industriais russas desde os inícios de 1917.
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Os comitês de fábrica foram organizações de grande transcendência no movimento operário russo. A contar, sobretudo da revolução de fevereiro e a instauração do governo provisório, os comitês de fábrica cresceram como cogumelos por toda parte e, com eles, emergiu também a consigna pelo controle operário na indústria e outros setores9. Esta bandeira, juntamente com o lema todo o poder aos soviets galvanizou a ação das massas rumo à revolução.
A concepção do controle operário, que se formara a partir do trabalhador coletivo industrial de modo imanente, ou seja, de modo espontâneo, era heterogênea no conjunto do MOP. Este, enquanto movimento de massa não tinha propriamente um projeto revolucionário. Assim, a posição mais usual era a de que os trabalhadores interviessem parcialmente nas fábricas, ou, outras unidades econômicas, com o objetivo de resguardar a produção face às várias formas de sabotagem patronal numa situação revolucionária. Entretanto, nas fábricas abandonadas pelos patrões ou naquelas em que o lock-out era franco, os trabalhadores não tinham muitas dúvidas em partir para a
apropriação desses estabelecimentos sob a égide do trabalho associado, isto é, para a recuperação dos mesmos para a atividade produtiva sob sua própria associação e direção.
Para os anarcosindicalistas, essa tendência natural do MOP era como o mel da terra prometida. Só que de modo diverso ao MOP espontâneo, eles tinham tanto um projeto de revolução, quanto um projeto de como deveria ser a sociedade que deveria emergir dessa revolução. Os trabalhadores deveriam assumir imediata e plenamente as empresas as quais se organizariam em federações. E o Estado e a propriedade privada seriam abolidos prontamente. Dada essa concepção, os anarquistas não só apoiaram o controle operário com todas suas forças, como também trataram de fazer com que a apropriação das indústrias pelos trabalhadores fosse erigida em princípio geral do controle operário.
Desde a revolução de fevereiro, pelo menos, os bolcheviques juntaram-se a esse caudal que fluía tumultuosamente sob a bandeira do controle operário (CO). Porém, a visão que os bolcheviques tinham do CO era muito diferente tanto da dos anarquistas, quanto dos setores mais aguerridos do próprio movimento operário. Eles estavam completamente de acordo em que os trabalhadores introduzissem elementos de controle nas fábricas até o ponto de limitarem drasticamente a soberania dos proprietários sobre as mesmas. Porém, não estavam de acordo com as “expropriações” - critério que manteriam nos primeiros anos após a revolução-, e nem tampouco que as fabricas fossem dirigidas diretamente pelos próprios trabalhadores. Os bolcheviques apoiaram o controle operário basicamente por duas razões: porque era uma maneira de coibir a desarticulação da economia promovida pela burguesia em reação à revolução em marcha e à imobilidade do governo provisório; e porque era uma formidável ferramenta política para potenciar a organização, a agitação, a propaganda e a disposição insurrecional da classe trabalhadora e, o mais interessante, praticamente nos próprios termos desta.
Os anarquistas tinham desavenças profundas com os marxistas. Para eles os marxistas e, particularmente os bolcheviques, eram uns sicofantas, pois, com seu apego à ditadura do proletariado, à organização e à disciplina, acabariam por não fazer mais do que substituir o velho domínio político por um novo. Não obstante essa divergência, como o bolchevique era o único partido revolucionário e como este apoiava o controle
operário, os anarquistas, sem olvidar as diferenças prático/doutrinárias, aliaram-se com ele sob a bandeira do controle até a revolução de outubro.
O conceito de controle operário, portanto, tinha acepções bem distintas segundo quem o pronunciasse. Porém, na revoltosa conjuntura, dificilmente se poderia prestar muita atenção, e mais ainda observar na prática, os aspectos teóricos, projetivos ou teleológicos da concepção de controle operário. Desta situação decorreu que da revolução de fevereiro à de outubro, a maior parte do movimento operário, os anarquistas e os bolcheviques cerraram fileiras em torno à bandeira do controle operário, e naquele interregno, o CO foi fundamentalmente a ação prática, insurrecta, da classe trabalhadora.
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Depois de outubro o “idílio” terminou. Os anarcosoviéticos apoiaram o governo bolchevique. Mas os anarcosindicalistas – e nem o que dizer quanto às demais facções- passaram a fazer ferrenha oposição ao que consideravam mais um (novo) governo despótico, que renegara suas lutas pelo controle operário. Portanto, continuaram a defender e a promover o controle operário até as suas últimas consequências, o que para eles significava a entrega das fábricas e outras unidades de trabalho ao controle (direção) dos trabalhadores e a expropriação da burguesia. Quanto aos bolcheviques, estes estavam insertos em uma estrutura de poder na qual a evolução dos soviets foi cada vez mais formal. Devido ao impulso inercial do movimento pelo controle, à ação dos anarquistas e outros fatores, expropriaram muito mais empresas do que previa o seu programa de transição. No entanto, não tardou para que rompessem com o controle operário, inclusive o controle operário de sua própria lavra, mesmo quando a nacionalização massiva dos meios de produção tornou-se imperativa. E em pouco tempo afastaram-se completamente da tese de que os trabalhadores deveriam dirigir coletivamente as empresas nacionalizadas ou por nacionalizar10.
Apesar das profundas divergências com o governo bolchevique e de lhe fazerem oposição obstinada, os anarquistas continuaram a apoiar o governo contra a intervenção imperialista e, durante a guerra civil, contra os brancos. O rompimento definitivo, porém, era uma questão de tempo e este veio por ocasião da insurreição de Kronstadt que fora um baluarte no processo revolucionário. Segundo Avrich anteriormente mencionado, embora houvesse muita influência das ideias anarquistas na guarnição de
Kronstadt, esta não era propriamente um contraforte da resistência anarquista aos bolcheviques, o que não impediu que o governo sufocasse o levante manu militari. Desse momento em diante o conflito prevaleceu, o governo reprimiu os militantes anarquistas e o movimento acabou definhando.
No livro citado, Avrich afirma que em 1918 Lênin recebeu o líder anarquista Majnó e transcreve um fragmento da conversa então travada entre eles.

“‘La mayoría de los anarquistas piensan y escriben sobre el futuro’, Le dijo Lenin, ‘sin entender el presente. Esto es lo que nos separa a nosostros, los comunsitas, de ellos’. Aunque los anarquistas eran hombres ‘generosos’, prosiguó Lenin, su ‘vacío fanatismo’ oscurecía su visión del presente y del futuro. ‘Pero creo que usted, camarada’, le dijo a Majnó, ‘tiene uma actitud realista ante los problemas candentes de la actualidad. Sólo con que una tercera parte de los anarco-comunistas fuese como usted, nosotros, los comunistas, estaríamos, bajo ciertas condiciones conocidas, a trabajar com ellos em una organización libre de productores’” (p. 215).

O que chama a atenção na fala de Lênin é sua alusão à possibilidade de trabalhar com os anarquistas numa organização de produtores livres. Isto porque o próprio Lênin, como dissemos, desentendeu-se não só do controle operário tal como o havia definido o Partido, como também bloqueou qualquer possibilidade real de que os trabalhadores tivessem algum poder ou autonomia nas empresas. Esta posição pode ter sido decorrência - o que não fica nada claro quando examinamos a documentação a respeito-, da aplicação prática da categoria de transição para o socialismo com a qual trabalhava o partido bolchevique. De qualquer modo, não houve qualquer sinalização para a reversão desse processo por parte do Partido enquanto Lênin estava à frente do mesmo e, depois de sua morte prematura, menos ainda, de sorte que a classe trabalhadora continuou quase que totalmente entalada no trabalho alienado até a dissolução da URSS. No entanto, o fenômeno da desagregação da URSS, que aparentemente passa pela manutenção em grande parte do trabalho alienado, segue na dependência de que a pesquisa histórica apresente explicações verossímeis.
Os anarquistas careciam de uma teoria crítica própria da alienação do trabalho11. Sua visão do controle operário era intuitiva e o seu programa, se aplicado cabalmente, dificilmente deixaria de propiciar a continuidade da economia do valor com suas
determinantes reais ou potenciais de alienação. Os bolcheviques, por seu lado, que dispunham de uma teoria crítica da alienação do trabalho romperam com o controle operário sob qualquer de suas formas, o que permanece até hoje, em última análise, como acontecimento enigmático.
Esse acontecimento nos leva a supor que a interlocução entre bolcheviques e anarquistas em torno ao controle operário não foi esgotada, antes de tudo porque a própria Revolução não a esgotou, o que ficou muito evidente com o desaparecimento da URSS. E o fato é que nos é difícil imaginar como se pode construir uma sociedade socialista com a concomitante manutenção do trabalho alienado nas unidades econômicas. E isto mesmo se considerarmos que o exercício real do poder diretamente pelos trabalhadores na instância política – o que deveria ter ocorrido, mas não ocorreu com os soviets- já seria, talvez, meio caminho andado na via de superação do trabalho alienado.
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Como indicamos, o anarquismo parece reviver conjuntamente com os movimentos operários e populares, embora não necessariamente em todas as versões que encontramos na revolução russa. Observamos indícios quanto a isso em mídias alternativas, na formação de núcleos nas universidades ou no movimento operário. Na Espanha, por exemplo, a CGT parece estar outra vez adquirindo protagonismo, inclusive devido à pusilanimidade dos grandes sindicatos existentes. Para além das organizações ou núcleos, o anarquismo, ainda que mais mediatamente, tem influência sobre várias atividades, e uma delas, que mencionamos ao início destas linhas, é o cooperativismo popular em variantes que se autodenominam economia social ou economia solidária, etc., e que muitas vezes se reivindicam da autogestão.
Encerrando. É elucidativo observarmos que ao se reanimarem os movimentos operários e populares, correntes político-ideológicas que se encontravam contraídas também se revigoraram. As correntes aqui mencionadas ou outras, com demasiada frequência estão em desacordo. E o acordo entre elas, mesmo que relativo, é bem conveniente, como o indica a história, tanto do ponto de vista educativo quanto da potenciação da força política dos trabalhadores. Não nos parece realista supormos que nos dias atuais essa “unidade” seja mais fácil de obter que no passado. Em todo caso, supomos que o estudo e a elucidação do movimento operário popular com suas várias
correntes possam atuar como um fator facilitador. Neste caso é necessário considerar não só a pesquisa contemporânea como também a do passado uma vez que, de algum modo o passado está no presente, enquanto as lutas atuais prosseguem no passado em torno à interpretação e esclarecimento dos fatos.


1 - Não obstante, precisamos considerar que se revigorou, também, o fascismo. BEINSTEIN, J. O regresso do fascismo. Resistir.info, 13/1/2015 2015. Disponível em: http://www.resistir.info/franca/c_hebdo_beinstein.html. Acesso em: 13/1/2015.
2 - WALLERSTEIN, I. Levantamientos aquí, allá y en todas partes La Jornada, México, 06/07/2013 2013.Disponível em: http://www.jornada.unam.mx/2013/07/06/index.php?section=mundo&article=021a1mun. Acesso em: 06/07/2013.
3 - CSP-CONLUTAS. Marcha Sindical leva cerca de 100 mil pessoas às ruas na Bélgica 7/11/2014 2014. Disponível em: http://cspconlutas.org.br/2014/11/marcha-sindical-leva-cerca-de-100-000-pessoas-as-ruas-na-belgica-ato-terminou-em-confronto-com-a-policia/. Acesso em: 13/11/2014.
4 - AGENCIAS- APORREA.ORG. Sacudida Alemania con ola de paros en el sector público Aporrea.org, Venezuela, 20/3 2012. Disponível em: http://www.aporrea.org/internacionales/n201185.html. Acesso em: 21/3.
5 - PEÑA, D. Sobre Clorox, las expropiaciones y el control obrero - Lecciones para el
movimiento obrero. Lucha de clases, Venezuela, 27/10/2014 2014. Disponível em : http://www.luchadeclases.org.ve/marxismo/analisis/7807-lecciones-para-movimiento-obrero. Acesso em: 27/10/2014.
6 - Temos um exemplo no PRCF. PRCF [PÔLE DE RENAISSANCE COMMUNISTE EN FRANCE].
Attentat à Paris contre Charlie Hebdo - Communiqué du PRCF Initiative Communiste, França, 7/1/2015 2015.Disponível em: http://www.initiative-communiste.fr/articles/prcf/lhorreur-attentat-paris-contre-charlie-hebdo-communique-du-prcf/. Acesso em: 20/1/2015.
7 - ICEA. Anarquía, ¿pasado o futuro? ICEA, España, 20/1/2015 ( s/d) 2015. Disponível em: http://iceautogestion.org/index.php?option=com_content&view=article&id=680:anarquia-ipasado-o-futuro&catid=19:noticias. Acesso em: 20/1/2015.
8 - AVRICH, P. Los anarquistas rusos. España: Alianza Editorial, 1974.
9 - FERRI, F. El problema Del control obrero, p. 75. In: GERRATANA, V. et alii. Consejos obreros y democracia socialista. México, Siglo Veintiuno, 1977. Cuadernos de Pasado y Presente 33
10 - LENIN, V.I. El control obrero y la nacionalización de la industria Moscu: Progreso, 1978.
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11 - GRAEBER, D. Fragments of an anarchist anthropology. Chicago: Prickly Paradigm Press, 2004.

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