quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Neoliberalismo, o caminho negro para o fascismo


   
       por Chris Hedges [*] 

       O  liberalismo como teoria económica sempre foi um absurdo. Tinha
      tanta validade quanto as ideologias dominantes do passado, como o  direito
      divino dos reis   e a crença fascista no  Übermensch . Nenhuma das suas
      alardeadas promessas era remotamente possível.
       Ao concentrar a riqueza nas mãos de uma elite oligárquica global – oito
      famílias detêm hoje tanta riqueza quanto 50% da população mundial –
      enquanto procedia à demolição de controlos e regulamentações
       governamentais, gerou sempre maciças desigualdades de rendimento, poder
       dos monopólios, alimentou o extremismo político e destruiu a democracia.
      Não é necessário folhear as 577 páginas de Capital in the Twenty-First
      Century de Thomas Piketty para descobrir isso. Mas a racionalidade
       económica nunca foi o ponto. O ponto era a restauração do poder de
      classe.
       Como ideologia dominante, o neoliberalismo foi um êxito brilhante. A
       partir dos anos 70 do século XX, os seus principais críticos  keynesianos
       foram expulsos das universidades, instituições estatais e organizações
      financeiras, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial
      e excluídos dos media. Os cortesãos e intelectuais impostores, como 
      Milton Friedman , foram preparados em locais como a Universidade de
      Chicago, foram-lhes dados lugares proeminentes e pródigos fundos de
      grandes empresas. Disseminaram os dogmas oficiais de teorias económicas
      desacreditadas, popularizadas antes por  Friedrich Hayek e pela escritora
      de terceira categoria  Ayn Rand .
       Uma vez ajoelhado diante dos ditames do mercado, anulando regulamentações
      governamentais, reduzindo os impostos para os ricos, permitindo o fluxo de
      dinheiro através das fronteiras, destruindo sindicatos e assinando acordos
      comerciais que desviavam empregos para fábricas sem condições na China, o
      mundo seria mais feliz e livre, um lugar mais rico. Foi um golpe. Mas
      funcionou.
       "É importante reconhecer as origens de classe deste projeto, que ocorreu
      na década de 1970, quando a classe capitalista estava em grandes
       dificuldades, os trabalhadores estavam bem organizados e começavam a
       avançar", disse  David Harvey , autor de A Brief History of Neoliberalism
       , quando falámos em Nova York. "Como qualquer classe dominante, eles
      precisavam de ideias dominantes. Assim, a liberdade do mercado, as
      privatizações, o empreendedorismo do eu, a liberdade individual e tudo o
      mais deveriam ser as ideias dominantes de uma nova ordem social, e foi
      essa a ordem implementada nos anos 80 e anos 90".
       "Como projeto político, foi muito habilidoso, disse ele. "Conseguiu muito
      consentimento popular porque falava sobre liberdade individual e liberdade
      de escolha. Quando eles falavam sobre liberdade, era a liberdade do
      mercado. O projeto neoliberal disse à geração de 68: "Tudo bem, você quer
      liberdade? É Isso que o movimento estudantil pretende nós vamos dar isso a
      vocês, mas vai ser a liberdade do mercado. A outra coisa que você procura
      é justiça social – esqueça. Então, vamos dar-lhes liberdade individual,
      mas esqueçam a justiça social. Não se organizem". O objetivo era
      desmantelar as instituições, as instituições coletivas da classe
      trabalhadora, particularmente os sindicatos e pouco a pouco os partidos
      políticos que representassem algum tipo de preocupação com o bem-estar das
       massas".
       "A grande coisa sobre a liberdade do mercado é que parece ser
       igualitária, mas não há nada mais desigual do que o tratamento igual dos
      desiguais", continuou Harvey. "Promete igualdade de tratamento, mas se
      você for extremamente rico, isso significa que pode ficar ainda mais rico.
      Se você for muito pobre, é mais provável que fique ainda mais pobre. O que
      Marx mostrou brilhantemente no primeiro volume de  O Capital  é que a
      liberdade de mercado produz níveis cada vez maiores de desigualdade social
      ".
       A disseminação da ideologia do neoliberalismo foi altamente organizada
      por uma classe capitalista unificada. As elites capitalistas financiaram
      organizações como a Business Roundtable, a Câmara de Comércio e grupos de
      reflexão como a The Heritage Foundation para vender a ideologia ao
      público. Inundaram universidades com doações, desde que as universidades
      retribuíssem com fidelidade à ideologia dominante. Usaram a sua influência
      e riqueza, bem como serem donos dos media, para transformar a imprensa no
      seu porta-voz. Silenciaram ou dificultaram o emprego a quaisquer
      heréticos. O aumento dos valores das ações, em vez da produção, tornou-se
      a nova medida da economia. Tudo e tudos foram financiarizados e tornados
      mercadorias.
       "O valor é fixado por qualquer que seja o preço verificado no mercado",
      disse Harvey. "Assim, Hillary Clinton é muito valiosa porque fez  uma
      palestra na Goldman Sachs por 250 mil dólares. Se eu der uma palestra para
      um pequeno grupo no centro da cidade e receber 50 dólares, então
      obviamente ela vale muito mais do que eu. A valorização de uma pessoa e do
      seu conteúdo é avaliada por quanto consegue obter no mercado".
       "Esta é a filosofia por trás do neoliberalismo", continuou. "Temos de
      atribuir um preço às coisas. Mesmo que não sejam realmente coisas que
      devam ser tratadas como mercadorias. Por exemplo, a assistência médica
       torna-se uma mercadoria. Habitação para todos torna-se uma mercadoria. A
      educação torna-se uma mercadoria. Assim, os estudantes têm de pedir
      emprestado para obter a educação que lhes dará um emprego no futuro. Esse
      é o golpe da coisa. Basicamente, diz-se que se você é um empreendedor, se
      se qualificar, etc, receberá a justa recompensa. Se não recebe uma justa
      recompensa é porque não se qualificou suficientemente. Adquiriu o tipo
      errado de cursos. Fez cursos de filosofia ou de clássicos em vez de
      aprender técnicas de gestão de como explorar mão-de-obra.
       O contra do neoliberalismo é agora amplamente compreendido em todo o
       espectro político. É cada vez mais difícil esconder a sua natureza
      predatória, incluindo suas exigências de enormes subsídios públicos (a
      Amazon, por exemplo, recentemente solicitou e recebeu incentivos fiscais
      multimilionários de Nova York e Virgínia para estabelecer centros de
      distribuição nesses estados). Isso forçou as elites dominantes a fazerem
      alianças com demagogos de direita que usam as táticas cruas do racismo,
      islamofobia, homofobia, fanatismo e misoginia para canalizar a raiva e a
      crescente frustração do público para longe das elites e canaliza-la para
      os mais vulneráveis.
       Esses demagogos aceleram a pilhagem pelas elites globais e, ao mesmo
      tempo, prometem proteger os trabalhadores e as mulheres. A administração
       de Donald Trump, por exemplo,  aboliu numerosas regulamentações , das
      emissões de gases do efeito estufa [1] à neutralidade da Internet e
      reduziu os impostos para os indivíduos e empresas mais ricos, eliminando
      cerca de 1,5 milhão de milhões de dólares de receita do governo nos
      próximos dez anos, adotando linguagem e formas autoritárias de controlo.
       O neoliberalismo gera pouca riqueza. Em vez disso, redistribui-a para as
       mãos das elites dominantes. Harvey chama isso de "acumulação por
      desapossamento".
       "O principal argumento da acumulação por desapossamento baseia-se na
      ideia de que quando as pessoas ficam sem capacidade de produzir ou
       fornecer serviços, elas criam um sistema que extrai riqueza de outras
       pessoas", disse Harvey. "Essa extração então torna-se o centro de suas
      atividades. Uma das maneiras pelas quais essa extração pode ocorrer é
      criando mercados onde antes não existiam. Por exemplo, quando eu era mais
      jovem, o ensino superior na Europa era essencialmente um bem público. Cada
      vez mais [este e outros serviços] se tornaram uma atividade privada como
      os serviços de saúde. Muitas dessas áreas que você consideraria não serem
      mercadorias no sentido comum, tornam-se assim mercadorias. Habitação para
      a população de baixos rendimentos era frequentemente vista como uma
      obrigação social. Agora tudo tem de passar pelo mercado. Impõe-se uma
      lógica de mercado em áreas que não deveriam estar abertas ao mercado".
       "Quando eu era criança, a água na Grã-Bretanha era fornecida como um bem
      público", disse Harvey. "Então, é claro, foi privatizada. Você começa a
      pagar taxas de água. Eles privatizaram o transporte [na Grã-Bretanha]. O
      sistema de autocarros é caótico. Há empresas privadas a circularem por
      toda parte. Não é o sistema que as pessoas realmente precisam. A mesma
      coisa acontece na ferrovia. Uma das coisas agora interessantes na
      Grã-Bretanha é que o Partido Trabalhista diz: 'Vamos trazer tudo isso de
      volta à propriedade pública porque a privatização é totalmente insana e
      tem consequências insanas, não está a funcionar devidamente. A maioria da
       população concorda com isto".
       Sob o neoliberalismo, o processo de "acumulação por desapossamento" é
      acompanhado pela financiarização.
       "A desregulamentação permitiu que o sistema financeiro se tornasse um dos
      principais centros de atividade redistributiva através da especulação,
      predação, fraude e roubo", escreve Harvey no seu livro, talvez o melhor e
      mais conciso relato da história do neoliberalismo. "Promoções de ações,
      esquemas Ponzi, destruição de ativos estruturados pela inflação,
      espoliação de ativos por meio de fusões e aquisições, promoção de níveis
      de endividamento que reduzem populações inteiras – mesmo nos países
      capitalistas avançados – à escravidão pelas dívidas. Para não falar em
      fraudes empresariais, desapropriação de ativos, invasão de fundos de
      pensão dizimados em colapsos de ações e por manipulação do crédito e do
      valor de ações, tudo isso se tornou uma característica central do sistema
      financeiro capitalista".
       O neoliberalismo, exercendo um tremendo poder financeiro, é capaz de
       fabricar crises económicas para deprimir o valor dos ativos e depois
       apossar-se deles.
       "Uma das maneiras pelas quais se pode engendrar uma crise é cortar o
      fluxo de crédito". "Isso foi feito no leste e sudeste da Ásia em 1997 e
      1998. De repente, a liquidez secou. As principais instituições deixam de
      emprestar dinheiro. Havia um grande fluxo de capital estrangeiro para a
      Indonésia. Eles fecharam a torneira. O capital estrangeiro fugiu. Fecharam
      a torneira do crédito em parte porque, uma vez que as empresas fossem à
      falência, poderiam vir a ser compradas e colocadas novamente a funcionar.
      Vimos a mesma coisa durante a crise da habitação aqui [nos EUA]. As
      execuções hipotecárias das habitações deixaram muitas vazias que poderiam
      ser apanhadas a preços muito baixos. A  Blackstone [2] apareceu, comprou
      todas as casas e é agora o maior senhorio dos Estados Unidos. Tem 200 mil
      propriedades ou algo parecido. Está à espera que o mercado dê uma volta.
      Quando o mercado muda, o que pode acontecer em breve, então poderá vender
      ou arrendar e ganhar imensos lucros com isso. Desta forma, a Blackstone
      ganhou uma fortuna a crise dos arrestos hipotecários, onde todos perderam.
      Foi uma enorme transferência de riqueza".
       Harvey adverte que a liberdade individual e a justiça social não são
      necessariamente compatíveis. A justiça social, escreve ele, requer
      solidariedade social e "disposição de subordinar necessidades e desejos
      individuais à causa de uma luta mais geral por, digamos, igualdade social
      e justiça ambiental". A retórica neoliberal, com ênfase em liberdades
      individuais pode efetivamente "separar as ideias de liberdade, identidade
      política, o multiculturalismo e, eventualmente, o consumismo narcisista,
      das forças sociais alinhadas na procura de justiça social através da
       conquista do poder de Estado".
       O economista  Karl Polanyi entendeu que existem dois tipos de liberdade.
      Há as más liberdades para explorar os que nos rodeiam e extrair enormes
      lucros sem levar em conta o bem comum, incluindo o mal que é feito ao
      eco-sistema e às instituições democráticas. Essas más liberdades têm
      origem no facto de as grandes empresas monopolizarem as tecnologias e os
      avanços científicos a fim de obter enormes lucros, mesmo quando, como no
      caso da indústria farmacêutica, um monopólio significa que as vidas
      daqueles que não podem pagar preços exorbitantes são colocadas em risco.
      As boas liberdades – liberdade de consciência, liberdade de expressão,
      liberdade de reunião, liberdade de associação, liberdade de escolher o seu
      trabalho – acabam por ser extintas pela primazia dada às más liberdades.
       "Planeamento e controlo são atacados como negação da liberdade", escreveu
      Polanyi. "A livre iniciativa e a propriedade privada são declaradas
      essenciais para a liberdade. Uma sociedade construída sobre outros
      fundamentos é dito que não merece ser chamada de livre. A liberdade que a
      regulamentação cria é denunciada como falta de liberdade; a justiça, a
      liberdade e o bem-estar que ela oferece são denunciados como uma
      camuflagem da escravidão".
       "A ideia de liberdade" degenera, assim, numa mera defesa da livre
       iniciativa, que significa "a plenitude da liberdade para aqueles cujo
       rendimento, lazer e segurança não precisam ser promovidos, e uma mera
      margem de liberdade para as pessoas que podem em vão tentar fazer uso de
      seus direitos democráticos para se defenderem do poder dos donos do
      capital", escreve Harvey, citando Polanyi. "Mas se, como é sempre o caso,
      "nenhuma sociedade é possível em que o poder e a compulsão estejam
      ausentes, nem num mundo em que a força não seja necessária", então a única
      maneira pela qual esta visão utópica liberal poderia ser sustentada é pela
      força, violência e autoritarismo. A utopia liberal ou neoliberal está
      condenada, na opinião de Polanyi, a ser frustrada pelo autoritarismo, ou
      mesmo pelo fascismo total. As boas liberdades estão perdidas, as más são
      assumidas.
       O neoliberalismo transforma a liberdade de muitos em liberdade para
      alguns. O resultado lógico é o neofascismo. O neofascismo abole as
       liberdades civis em nome da segurança nacional e classifica grupos
       inteiros como traidores e inimigos do povo. É o instrumento militarizado
       usado pelas elites dominantes para manter o controlo, dividir e separar a
       sociedade e acelerar ainda mais a pilhagem e a desigualdade social. A
      ideologia dominante, não sendo mais crível, é substituída pela bota
      militar.
       [1] O autor toma como boa a maior impostura científica da história da
      humanidade: a teoria do aquecimento global.   Ver  Aquecimento global: uma
      impostura científica   e    Acerca da impostura global
       [2] Blackstone: é o fundo abutre que em Portugal adquiriu o Novo Banco
       (ex-Banco Espírito Santo) por preço praticamente nulo. 
      [*] Jornalista. Durante quase duas décadas foi correspondente estrangeiro
      na América Central, Médio Oriente, África e Balcãs. Fez reportagens em
      mais de 50 países e trabalhou para  The Christian Science Monitor,
      National Public Radio, Dallas Morning News  e  The New York Times,  no
      qual foi correspondente estrangeiro durante 15 anos.

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/eua/neoliberalismo_fascismo.html
4/12/2018

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