segunda-feira, 22 de junho de 2020

Como se trama a uberização total ***


 

*por Ricardo Antunes [*]

O mundo principiou este trágico ano de 2020 de modo muito diferente. Não
bastasse a recessão econômica global e em curso acentuado no Brasil, já
visualizávamos no radar sinais de expressivo aumento dos índices de
informalidade, precarização e desemprego, quer pela proliferação de uma
miríade de trabalhos intermitentes, ocasionais, flexíveis etc., quer
pelas formas abertas e ocultas de subocupação, subutilização e
desemprego, todos contribuindo para a ampliação dos níveis já abissais
de desigualdade e miserabilidade social.

Paralelamente a esse quadro social crítico, o léxico empresarial que se
expandia no universo maquínico-informacional-digital estampava muita
pomposidade: /platform economy, crowd sourcing, gig-economy, home
office, home work, sharing economy, on-demand economy, / entre tantas
outras denominações, sem esquecer que os altos gestores (outrora
presidentes e diretores das grandes corporações) foram renomeados como
/chief executive officer (CEO). / Até o /coaching / foi inventado,
afinal seria preciso alguém que ganhasse um bom /cacau / para realizar
algum afago espiritual.

E esse novo palavrório, propalado pela gramática do capital, somou-se
àquele já consolidado e que adulterava os reais significados
etimológicos das palavras, que todos conhecemos: manter sempre a
/resiliência, / atuar com muita /sinergia, / converter-se em autêntico
/colaborador / e em verdadeiro /parceiro, / vangloriar-se da nova
condição de /empreendedor, / exercitar o /trabalho voluntário / (em
verdade uma "sutil" imposição, visto que o voluntariado se tornou
condição /sine qua non / para obtenção de emprego), entre tantos outros
vitupérios à linguagem, que lhe imputam novas "significações".

Mas o inesperado fez essa fumegante nomenclatura, que parecia tão bela,
virar pura balela. A pandemia do capital tratou de demonstrar sua
impostura: "colaboradores" estão sendo demitidos aos milhares,
"parceiros" estão podendo optar entre reduzir os salários ou conhecer o
desemprego e os pequenos empreendedores não encontram consumidores e
veem sua renda se esvanecer.

É bom recordar, porém, que mesmo antes da explosão da pandemia a
realidade cotidiana do labor já vinha expressando um inteiramente outro:
pejotização, trabalho intermitente, subocupação, subutilização,
infoproletariado, cibertariado, escravidão digital, professor delivery,
frila fixo, precári@s inflexíveis etc., terminologia essa que, com tom
irônico e crítico, se originou da própria lavra do trabalho. É por isso
que /uberização
<https://diplomatique.org.br/resistir-a-uberizacao-do-mundo/> / tem hoje
o mesmo traço pejorativo que a /walmartização / ostentou quando se
falava das condições de trabalho nos hipermercados.

Se esse ainda era o cenário no Natal de 2019, com Trump, Bolsonaro,
Orban e outras aberrações assemelhadas, tudo começou a se agravar com o
advento da pandemia. Com a propagação global do coronavírus, o que era
desanimador se tornou desolador. E a crise econômica que atingia
duramente o Brasil passou a ser amplificada pelas crises do governo
Bolsonaro-Guedes, uma simbiose nada esdrúxula entre concepções
ditatoriais e fascistas e uma variante de neoliberalismo primitivo,
devastando ainda mais nosso chão social já bastante desertificado.

Alguns dados estampam essa crueza. Na mensuração referente ao primeiro
trimestre de 2020, o IBGE apresentou uma intensificação das condições
desumanas da classe trabalhadora: atingimos o contingente de 12,9
milhões de desempregados, e a informalidade (flagelo que se tornou
/leitmotiv / da ação do capital) superou a casa de 40%, com cerca de 40
milhões de trabalhadores e trabalhadoras à margem da legislação social
protetora do trabalho.

Vale ressaltar que esses dados não refletem o que vem se passando no
presente (segundo trimestre), dada a expansão exponencial da pandemia no
Brasil, mas tão somente o pouco que era visível até os primeiros dias de
março, visto que o desemprego (tanto aberto quanto aquele por desalento)
está em grande medida invisibilizado pela paralisação de amplos setores
da economia, permitindo tão somente uma aproximação sintomática da
realidade. Se a esses dados incluirmos os subocupados (que trabalham
menos de 40 horas) e os subutilizados (que segundo o IBGE englobam tanto
os subocupados como os desocupados e a força de trabalho potencial), [1]
<#notas> teremos uma ideia mais precisa do tamanho da tragédia social
que não para de se amplificar no país que em fins de maio se encontra no
epicentro da pandemia.

*Segundo ato *

Foi nessa situação verdadeiramente catastrófica, em que a simultaneidade
da crise econômica, social e política se verificou, que a nova pandemia
aterrissou em nossos aeroportos. Muito distante de um vírus cuja
responsabilização se devesse a algum desmando da natureza, tão ao gosto
da apologética da ignorância que hoje se esparrama aqui e alhures, o que
estamos presenciando, em escala global, é resultante da expansão e
generalização do sistema de metabolismo antissocial do capital.

Carregando uma lógica essencialmente destrutiva, esse metabolismo só
pode viver e se reproduzir por meio da destruição, seja da natureza, que
jamais esteve em situação tão deplorável, seja da força de trabalho,
cuja derrelição, corrosão e dilapidação se tornaram absolutamente
insustentáveis. Sendo expansionista e incontrolável, desconsiderando a
totalidade dos limites humanos, societários e ambientais, o sistema de
metabolismo antissocial do capital alterna-se entre produção, destruição
e letalidade. Senão, o que significa a enorme pressão de amplas parcelas
do empresariado predador que exige junto ao governo-de-tipo-lúmpen [2]
<#notas> a imediata volta ao trabalho e à produção, em meio à explosão
de mortes que não param de crescer por conta da pandemia? Será para
preservar os empregos, como dizem?

A resposta é de singela clareza e está estampada não só no país, mas em
todos os rincões do mundo. Da China à Suécia, da Alemanha à África do
Sul, da Índia aos Estados Unidos, da França ao México, do Japão à
Rússia, com a eclosão da pandemia do capital, a criação de riqueza e de
lucro se estancou, dada a paralisação da produção, com exceção das
chamadas atividades essenciais (aliás, ao ampliar ou restringir essa
definição, cada governo estampa seu nível de maior sujeição e servilismo
ao capital).

Como as corporações globais sabem melhor do que ninguém que a força de
trabalho é uma mercadoria especial, uma vez que é a única capaz de
desencadear e impulsionar o complexo produtivo presente nas cadeias
produtivas globais que hoje comandam o processo de criação de valor e de
riqueza social, os capitais aprenderam bem, ao longo destes quase três
séculos de dominação, a lidar com (e contra) o trabalho.

Sabedores de que, se efetivassem a completa eliminação do labor, eles se
veriam na incômoda posição de extinguir seu próprio ganha-pão, sua
alquimia diária, cotidiana e ininterrupta está voltada indelevelmente
para reduzir ao máximo o trabalho humano necessário à produção. E assim
se faz por meio da introdução compensadora do arsenal
maquínico-informacional-digital disponível, ou seja, pelo uso das
tecnologias de informação e comunicação (TIC), "internet das coisas",
impressão 3D, /big data, / inteligência artificial, tudo isso enfeixado,
em nossos dias, na mais do que emblemática proposta da indústria 4.0.

Que esse complexo tecnológico-digital-informacional não tenha como
finalidade central os valores humano-sociais, isso é mais do que uma
obviedade. Ou será que alguém acredita que a guerra entre a
norte-americana Apple e a chinesa Huawei tenha como principal objetivo
melhorar substantiva e igualitariamente as condições de vida e trabalho
dos bilhões de homens e mulheres, brancos, negros, indígenas,
imigrantes, que perambulam entre o desemprego, subemprego, informalidade
e intermitência? Alguém pode imaginar que o objetivo das grandes
corporações globais seja dar-lhes trabalho digno, salários justos, vida
dotada de sentido, atendimento pleno de suas necessidades materiais e
simbólicas?

Um breve olhar para as condições de trabalho da terceirizada global
Foxconn, em suas unidades na China onde produz a marca Apple, nos
revelou dezessete tentativas de suicídio em 2010, das quais treze
lamentavelmente se concretizaram. Podemos lembrar também as rebeliões
contra o famigerado "sistema 9-9-6", praticado pela Huawei (e tantas
outras empresas chinesas do ramo digital, como a Alibaba), que significa
trabalhar das 9 às 21 horas (9 horas), seis dias por semana. Fácil, não?

Mas, se assim caminhava o admirável mundo do trabalho antes da explosão
do coronavírus, o que está sendo gestado no presente, em plena pandemia
do capital? Quais experimentações do trabalho estão sendo maquinadas nos
laboratórios do capital, enquanto uma parte expressiva da classe
trabalhadora preenche os túmulos que, a céu aberto, estão acolhendo seus
corpos?

*Terceiro ato *

Se nossa análise está na direção certa, se estamos apreendendo o cheiro
da coisa, a principal forma experimental do labor pós-pandêmico se
encontra no trabalho uberizado. Utilizando-se ilimitadamente da
informalidade, flexibilidade, precarização e desregulamentação, traços
marcantes do capitalismo no Sul global (e que se expandem intensamente
também no Norte), coube às grandes plataformas digitais e aplicativos,
como Amazon (e /Amazon Mechanical Turk / ), Uber (e Uber Eats), Google,
Facebook, Airbnb, Cabify, 99, Lyft, iFood, Glovo, Deliveroo, Rappi etc,
dar um grande salto pela adição das tecnologias informacionais.

E aqui os algoritmos se destacam, visto que são programas cuidadosamente
preparados para processar imenso volume de informações (tempo, lugar,
qualidade), capazes de conduzir a força de trabalho segundo as demandas
requeridas, dando-lhes a aparência de neutralidade. [3] <#notas>
Juntamente com a inteligência artificial e todo o arsenal digital
canalizado para fins estritamente lucrativos, isso vem possibilitando a
criação de um novo monstrengo que adultera a concretude e efetividade
das relações contratuais vigentes. Os trabalhos assalariados
transfiguram-se em "prestação de serviços", o que resulta em sua
exclusão da legislação social protetora do trabalho. Impulsionados pelo
ideário da empulhação, que os fazia sonhar com um "trabalho sem patrão",
converteram-se no que, em /O privilégio da servidão, / denominei
escravidão digital.

Realizando jornadas de trabalho frequentemente superiores a 8, 10, 12 ou
mais horas por dia, muitas vezes sem folga semanal; percebendo salários
baixos e que estão sendo subtraídos durante a pandemia, sem explicação
por parte das plataformas digitais; padecendo das demissões sem nenhuma
justificativa; tendo de arcar com os custos de manutenção de veículos,
motos, celulares e equipamentos etc., começamos a desvendar, nos
laboratórios do capital, os múltiplos experimentos que pretendem
implantar depois da pandemia, que se pode assim resumir: exploração e
espoliação acentuadas e nenhum direito do trabalho.

Se a desmedida empresarial continuar ditando o tom, teremos mais
informalização com informatização, "justificada" pela necessidade de
recuperação da economia pós-Covid-19. E sabemos que a existência de uma
monumental força sobrante de trabalho favorece sobremaneira essa
tendência destrutiva do capital pós-pandêmico.

Há ainda outros exemplos ilustrativos das experimentações do capital em
curso. A simbiose entre trabalho informal e mundo digital vem permitindo
que os gestores possam sonhar com trabalhos ainda mais individualizados
e invisibilizados. Ao perceberem que o isolamento social realizado
durante a pandemia vem fragmentando a classe trabalhadora e assim
dificultando as ações coletivas e a resistência sindical, eles procuram
avançar na ampliação do home office e do teletrabalho. Desse modo, além
da redução de custos, abrem novas portas para uma maior corrosão dos
direitos do trabalho, acentuando a desigual divisão sociossexual e
racial do trabalho e embaralhando de vez o tempo de trabalho e de vida
da classe trabalhadora. [4] <#notas>

Os bancos, que exercitam uma pragmática de enorme enxugamento há
décadas, uma vez que têm se utilizado intensamente do arsenal digital,
já devem estar fazendo os cálculos de quanto vão lucrar com a introdução
do home office e do teletrabalho.

Vale, por fim, destacar outro exemplo que tem sido emblemático: o EAD
(ensino a distância). Essa prática, que vem se intensificando durante a
pandemia, tanto no ensino privado como no público e especialmente nas
faculdades privadas, além de objetivar a redução dos custos e aumentar
os lucros, visa fortalecer grandes conglomerados privados
"educacionais". Recentemente, como noticiou amplamente a imprensa, a
Laureate, que congrega várias faculdades privadas, além de utilizar
robôs na correção de trabalhos sem conhecimento dos alunos, demitiu mais
de uma centena de professores.

Assim, por meio desses e de outros mecanismos, novas modalidades de
corrosão do trabalho vêm ganhando forte impulsão durante a pandemia e se
ampliando nas mais diversas atividades econômicas, invadindo também o
espaço público e as empresas estatais. Poucas semanas atrás, o CEO da
Petrobras
<https://exame.com/negocios/podemos-trabalhar-com-50-dos-funcionarios-em-casa-diz-ceo-da-petrobras/>
somou-se ao coro ao dizer que a estatal pode "trabalhar com 50% das
pessoas em casa" e assim "liberar vários prédios que custam muito". [5]
<#notas> Vale recordar que, logo antes da eclosão do coronavírus, houve
uma importante greve nacional dos petroleiros.

Em meio a tanta maquinação, imaginar que o apoio de R$ 600 [~120€] (por
três meses) para os que se encontram na informalidade seja suficiente
para reduzir o flagelo e o vilipêndio a que estão submetidos só é
possível para um governo que pratica a necropolítica e a necroeconomia,
o que o levou a "descobrir" que existem mais 40 milhões de
trabalhadores/as /invisíveis, / dura constatação do principal resultado
de sua política genocida.

10/Junho/2020

*[1] Ver Ricardo Antunes, Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado
(e-book), Boitempo, São Paulo, 2020.
[2] Conforme Ricardo Antunes, Politica della caverna, Castelvecchi,
Roma, 2019.
[3] Conforme Vitor Filgueiras e Ricardo Antunes, “Plataformas digitais,
uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo”,
Contracampo, Niterói, 2020.
[4] Sobre home office, teletrabalho e seus usos e abusos, ver Ricardo
Antunes, Coronavírus…, op. cit.
[5] Juliana Estigarribia, " ‘Podemos trabalhar com 50% dos funcionários
em casa’, diz CEO da Petrobras ", Exame, 15 maio 2020.


In
RESISITIR.INFO
https://www.resistir.info/brasil/r_antunes_10jun20.html
10/6/2020

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