quarta-feira, 17 de junho de 2020

Marx, pensador do racismo sistémico



// Bruno Guigue

Para alguns opinadores ignorantes, o marxismo nada teria a dizer sobre
anti-racismo. Acontece que Marx viu perfeitamente a relação entre
discriminação racial e opressão de classe, e que escreveu páginas
luminosas sobre a questão. Que Marx compreendeu que o racismo sistémico
inerente ao esclavagismo mercantil era a certidão de nascimento do
capitalismo moderno.

Entre as incongruências ultimamente lidas aqui e ali figura a ideia de
que seria escandaloso alguém reclamar-se do marxismo quando participa da
luta contra o racismo. Com base no argumento de que para Marx o capital
não tinha cor, que ele defendia a maioria e não as minorias, que o
essencial é a luta de classes e não a raça, e outros argumentos do mesmo
calibre.

Excepto que Marx viu perfeitamente a relação entre discriminação racial
e opressão de classe, e que escreveu páginas luminosas sobre a questão.
Dedicou-lhe até um capítulo inteiro do Capital, o capítulo 31 da Oitava
secção do Livro I, no qual descreve a geração do capitalismo moderno a
partir do regime colonial e da escravatura nas plantações.

Citaremos daí apenas alguns trechos:
“Os tesouros directamente extorquidos fora da Europa pelo trabalho
forçado dos indígenas reduzidos à escravidão, pela concussão, a pilhagem
e o assassínio, retornavam à mãe pátria para aí funcionarem como capital”.

“A descoberta das regiões auríferas e argentíferas da América, a redução
dos indígenas à escravidão, o seu afundamento nas minas ou o seu
extermínio, os inícios da conquista e da pilhagem nas Índias, a
transformação da África em terreno de caça às peles negras, eis os
processos idílicos de acumulação primitiva que assinalam a era
capitalista na sua aurora”.
“A situação dos indígenas era a mais assustadora nas plantações
destinadas apenas ao comércio de exportação, tal como as Índias
Ocidentais, e nos países ricos e populosos, como as Índias Orientais e o
México, caídas como despojos nas mãos de aventureiros europeus”.

A verdade, como podemos ver, é que Marx compreendeu que o racismo
sistémico inerente ao esclavagismo mercantil era a certidão de
nascimento do capitalismo moderno; que este último em breve adoptaria a
lógica daquilo a que Samir Amin chamará “desenvolvimento desigual”; que
uma vez estabelecidas as relações de dependência entre o Norte e o Sul,
essa desigualdade iria conferir ao sistema mundial a sua verdadeira
estrutura; que se instauraria uma divisão do trabalho entre o centro e a
periferia atribuindo à segunda o papel de fornecedor de mão de obra e de
matérias-primas a baixo preço; que, gerando uma exploração em cascata,
essa hierarquização do mundo perpetuaria as relações de exploração das
quais o Ocidente capitalista retiraria a sua prosperidade e cujas
sequelas são ainda visíveis.

Marx escreveu também numerosos artigos sobre o colonialismo britânico
nas Índias. Num texto publicado pelo New York Daily Tribune em 22 de
Julho de 1853, ele sublinhava que, nas colônias, a brutalidade da
burguesia europeia, podia desencadear-se sem entraves:
“A profunda hipocrisia e barbárie inerentes à civilização burguesa
expõem-se diante de nossos olhos ao passarem da sua terra natal, onde
assumem formas respeitáveis, às colónias onde se apresentam sem disfarce”.

Longe de ser indiferente à questão racial, Marx percebeu o seu caráter
originário, viu que ela era indissociável da génese do modo de produção
capitalista. Formulou o retrato de uma dominação sem precedentes, que
estendeu a toda a terra a lei de bronze do capital, retomando práticas
ancestrais de uma violência sem precedentes. Chicoteado, mutilado ou
queimado vivo à menor tentativa de rebelião, o escravo negro das
colónias era a metáfora de um mundo onde o racismo de Estado justificava
todas as transgressões. Representava o ponto extremo de um sistema de
exploração mundializado que em breve transformaria os trabalhadores,
fosse qual fosse a sua cor, em simples mercadorias destinadas à
acumulação de lucro.

“Ao mesmo tempo que a indústria algodoeira introduzia a escravidão
infantil na Inglaterra, transformava nos Estados Unidos o tratamento
mais ou menos patriarcal dos negros num sistema de exploração mercantil.
Em resumo, o pedestal necessário da escravidão dissimulada dos
trabalhadores na Europa era a escravidão aberta no Novo Mundo”.

O esclavagismo racial existia efectivamente como tal e Marx tomou-o em
consideração na sua análise das relações sociais capitalistas. Não é por
acaso que ele cita o esclavagismo de plantação nos Estados Unidos. Sabia
que o racismo instituído era um dos fundamentos da assim chamada
democracia americana. É por isso que ele tomou publicamente partido pela
União contra a Confederação durante a guerra civil, e esse simples facto
invalida qualquer interpretação que vise diminuir a questão racial no
seu pensamento. Para Marx, que sabia muito bem que Lincoln defendia os
interesses da burguesia industrial do Norte, a abolição da escravatura
racial no Sul era uma prioridade absoluta.

O que Marx mostra brilhantemente é que o capital instituiu o racismo
sistémico desde o seu início, que é um facto estrutural incontestável, e
que é independente das atitudes individuais. Se Marx não fala do nosso
tempo, fala bem da que a precede e a sustenta, tanto é verdade, como
dizia, que “a tradição dos povos do passado pesa como um pesadelo no
cérebro dos vivos”.
Esquecer esta lição é esquecer Marx.

/Fonte: https://www.legrandsoir.info/marx-penseur-du-racisme-systemique.html

In
O DIÁRIO.INFO
https://www.odiario.info/marx-pensador-do-racismo-sistemico/
17/6/2020

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