sábado, 14 de agosto de 2021

América Latina: Alternativas frente à crise (2)

 


*por José Valenzuela Feijóo [*]

/"Men at some time are masters of their fates".
W. Shakespeare, Julius Caesar. /

Lenine, detalhe em mural de Diego Rivera no Palácio da Presidência da
República. /I – Ciclos económicos: bem comportados ou "perversos"
II – As mudanças exigidas por uma crise estrutural
III – O caso da América Latina
IV – Rotas que preservam o regime capitalista <#4>
V – A rota democrática-socialista <#5> /

*IV – Rotas que preservam o regime capitalista *

A /rota do pântano. /

Trata-se de uma rota que implica a preservação do modelo neoliberal. Por
isso, no fundo não se trata de uma rota pois não abre qualquer saída à
crise. Uma situação deste tipo não é uma novidade histórica e
verifica-se quando "os de cima já não podem" (condição de toda grande
mudança) e além disso "os de baixo tão pouco podem" (pelo que a mudança
não emerge). Neste caso, a sociedade cai numa espécie de pântano
histórico, de brejo putrefacto no qual a ordem institucional e moral
vai-se decompondo cada vez mais e não aparecem actores sociais (i.e.,
classes e/ou fracções de classe) com a capacidade de visão e de
organização para impulsionar o processo de mudança necessário. Por isso,
não existe um projecto de país, nacional, capaz de mobilizar a
sociedade. De facto, a visão desta, como totalidade orgânica, desaparece
da consciência social e política fazendo parecer que só existe o
individual, o particular, o parcial, quotidiano e de curto prazo: opera
o velho lema do "eu me preocupo comigo e dos demais que Deus se
encarregue". Além disso, faço-o com regras de conduta ad-hoc em que tudo
é permitido: a falta de lealdade, a mentira, o roubo, o crime. A longo
prazo, uma situação deste tipo não se mantém, mas enquanto isso podem
passar-se décadas de história perdida. Na região, muito provavelmente no
México, especialmente sob os governos de Salinas, Fox, Calderón e Peña
Nieto, assiste-se a uma situação mais ou menos semelhante. [5] <#notas>

/A rota de uma industrialização autoritária e de corte fascistóide /

O ponto mereceria um exame muito minucioso. Mas, por razões espaço,
limitar-nos-emos a um esboço simples e muito taquigráfico. Como quadro
geral de referência supomos um processo de estancamento económico, de
parasitismo (só o capital especulativo é premiado), de miséria,
desemprego e marginalização crescentes. Ou seja, o que tipicamente
resulta do modelo neoliberal.

Também supomos: 1) Um desprestígio crescente dos partidos políticos
tradicionais e dos seus dirigentes. Em geral, grande descrédito da
política: "a política é suja, própria de desonestos, de mentirosos e
ladrões, fuja dela". Algo que os media televisivos se encarregam de
difundir e propagandear amplamente. 2) Desprestígio e decomposição de
partidos de esquerda. Estes esquecem seus ideais anti-capitalistas,
subordinam-se ao sistema e operam como verdadeiros criados do grande
capital. 3) A burguesia, especialmente a grande, mostra-se como
politicamente fraca, incapaz e impotente para impulsionar um projecto de
renovação nacional. 4) A dependência e consequente penetração imperial
atingem níveis extremos no económico e ideológico. 5) Estende-se cada
vez mais um descontentamento generalizado. Mas como este mal-estar e
raiva não se processam em termos de consciência de classe (a consciência
política dos segmentos médios e populares é praticamente nula), o
descontentamento só consegue buscar um novo personagem, necessariamente
providencial.

Num contexto como o indicado, dão-se condições para a emergência de
líderes "providenciais", "milagroso", com um alto poder carismático.
Estes podem conseguir um apoio maciço de boa parte das camadas urbanas
marginalizada pelo sistema, os "ambulantes", o lumpen, os pequenos
comerciantes, boa parte das novas camadas médias, etc. Em vez de falarem
contra o capitalismo, na América Latina tais líderes dirigiriam os seus
ataques "contra os ricos e a favor dos pobres". Certamente dariam ênfase
ao "patriotismo e à defesa dos interesses nacionais". Além disso, na
necessidade de uma autoridade firme e repressiva. Esta linguagem é mais
compreensível para as camadas atrasadas e despolitizadas da cidade e do
campo, além de evitar o possível perigo de um discurso que fale de
classes sociais, capitalismo explorador e mesmo socialismo nacionalista,
no estilo do que pregavam Mussolini e Hitler.

Se a isto acrescentarmos que a partir da sua impotência política a
burguesia pode decidir "abdicar" a favor de tais líderes providenciais,
já temos aí todos os ingredientes para a rota autoritária. A qual
operaria com alguns elementos do "bonapartismo" descrito por Marx e,
sobretudo, com os traços que tipificaram as experiências de corte
fascista (na Europa e, parcialmente, na Argentina de Perón). [6]
<#notas> O processo também poderia operar sob direcção militar sem
grande apoio popular. Ou seja, seriam militares que implantariam uma
ditadura desenvolvimentista.

Em tal contexto, dever-se-ia perfilar uma estratégia económica que: a)
impulsionasse uma industrialização muito acelerada com um alto
crescimento ocupacional (como nos tempos do Brasil de Kubitschek e dos
militares que derrubaram Goulart); b) o processo também iria associado a
um férreo controle dos salários e, em geral, da força de trabalho
assalariada. Em suma, ditadura contra o trabalho; c) pela distribuição
do rendimento que se delineia, o crescimento industrial deve
obrigatoriamente apontar para o desenvolvimento da indústria pesada (o
Departamento I de Marx) e para as exportações; d) os pontos anteriores
podem ser recobertos com uma linguagem "atraente": transformar o país
(ex. Brasil) em "grande potência mundial". [7] <#notas> Do ponto de
vista económico esta rota também se pode denominar como "caminho à
Tugan-Baranovsky", em recordação das teorias do grande economista russo.
Ou seja, durante um período que poderia não ser curto, a acumulação e o
crescimento podem ser desligados do crescimento do consumo assalariado.

/Uma industrialização democrático-burguesa /

Neste caso, o bloco social impulsionador da mudança deveria agrupar o
conjunto dos sectores populares (camponeses, marginais urbanos, pequena
burguesia independente e assalariada urbana, proletariado industrial e
dos transportes, capitalistas médios e pequenos), sob a direcção da
burguesia nacional. [8] <#notas> Entende-se por esta a fracção
capitalista que trabalha fundamentalmente para o mercado interno na
secção de bens de consumo e que, por regra, não ocupa posições
monopolistas. Supõe-se também que seja inimiga do capital financeiro e
que busque reservar espaços de investimento estratégico para o capital
nacional. Ou seja, regula fortemente a presença de capitais estrangeiros.

Em outros tempos (primeiro terço ou metade do século XX), esta fracção
do capital chegou a desempenhar um papel importante em diversos países
do terceiro mundo. Esteve por trás de Perón na Argentina, de Vargas no
Brasil, de Lázaro Cárdenas no México, de Aguirre Cerda no Chie. Hoje,
mais de meio século depois, surgem dúvidas sérias sobre a sua capacidade
de liderança e até sobre a sua própria existência. Para o caso pode-se
assinalar: i) sua debilidade económica; ii) sua habitual covardia
política, sua cegueira e tendência à acomodação com os de cima. Digamos
também que em muitas ocasiões esta fracção inicialmente se escuda por
trás de movimentos políticos populares com direcção pequeno-burguesa e
relativamente radicalizados. Neste caso e em países de capitalismo muito
atrasado onde as possibilidades reais do socialismo são mínimas, o que
na verdade se verifica é a /criação a partir do Estado / dessa classe
burguesa (este poderia ser o caso do Equador com Correa e da Bolívia com
Evo Morales). Quando a direcção é claramente demo-burguesa, a nível
declarativo pode-se radicalizar mas na sua eventual gestão pública
maneja-se com pés de chumbo e concilia com os piores inimigos, como
p.ex. a banca e o capital financeiro especulativo. Os casos de Lula no
Brasil, de Alan García no Peru, Tabaré Vazquez no Uruguai e de Michelle
Bachelet no Chile são exemplos claros desta capacidade "compromisso sem
avançar".

O modelo demo-burguês na região, além da sua difícil implementação no
político, encontraria (ao chegar ao governo) problemas económicos
agudos. Como deve redistribuir o rendimento e encontra uma oferta
relativamente inelástica, costuma provocar inflação e desequilíbrios na
Balança de Pagamentos. Também costuma enfrentar dificuldades para
impulsionar o investimento e o crescimento. Estes problemas, ainda que
difíceis, podem ser resolvidos uma possibilidade implica radicalizar o
processo e activar-estender a intervenção estatal (controle da política
monetária e cambial, do comércio exterior, taxas de câmbio múltiplas,
investimento estatal, etc). Fenómeno que só se pode verificar no
contexto de uma mobilização popular muito vasta, a qual – /hélas / –
também aproximaria bastante a possibilidade de uma rota de superação do
próprio capitalismo. A outra possibilidade, que nada resolve, é a do
retrocesso: "atirar a esponja" e andar para trás, negociar com o capital
estrangeiro e financeiro, aplicar algumas despesas sociais ("apagar
fogos"): uma espécie de neoliberalismo moderado com algumas despesas
sociais que salvem as aparências. Esta "alternativa" não é hoje invulgar
na região. [9] <#notas>

*V – A rota democrática-socialista *

Pelos seus anseios, esta é a única rota que procura ir para além do
capitalismo. Exige uma ampla coligação popular liderada pela classe
trabalhadora industrial. E se chegar ao poder, não se deve acreditar que
a ordem socialista possa ser implantada da noite para o dia. Como regra,
trata-se de um processo que pode ser longo e sinuoso. Além disso, não se
deve esquecer que o próprio socialismo não é senão uma fase de
transição, ainda mais longa e conflituosa e que pode perfeitamente
acabar no fracasso. Esta conotação transicional gera uma exigência
inescapável: que a classe líder do processo funcione com plena
consciência dos fins derradeiros que se perseguem.

Na actualidade, as dificuldades desta rota são de ordem maior. Podemos
assinalar algumas: a) no presente (2021), a correlação internacional de
forças (contrapondo a AL no seu conjunto ao resto do mundo) é muito
desfavorável para uma via socialista. Os países que o tentarem
encontrarão um duro boicote económico e prováveis agressões militares,
como as já sofridas por Cuba e Venezuela. Cabe também apontar: pela
frente podemos esperar conflitos inter-imperiais cada vez mais agudos
(ex. entre China e EUA), o que abre uma situação, se bem manejada,
aproveitável pelos mais fracos. No interior da região sul-americana a
situação é bastante movediça: passa-se rapidamente de governos
demo-reformistas para outros de extrema-direita (casos do Brasil de Lula
e Dilma que desemboca no actual Bolsonaro, ou do Equador de Correa que
se move para governos repressivos de extrema direita). Também há
movimentos em sentido inverso, os que reflectem o descontentamento
popular com a direita e apoiam líderes e/ou partidos reformistas. Além
disso, há uma lição que não deveria ser silenciada: os governos de corte
reformista (Lula e Dilma no Brasil, Bachelet no Chile) quando se dobram
ao poder neoliberal vigente acabam por impulsionar a volta a regimes de
extrema-direita. O que também nos adverte: as massas populares
manejam-se mais por estados de ânimo do que por interesses políticos
genuínos. Ou seja, impera uma falta de consciência política de classe
que chega a surpreender; b) na actual América Latina, as forças
políticas que se propõem avançar ao socialismo e comunismo ou não
existem ou são muito fracas. Inclusive na Venezuela – que a nível
oficial declarou que sua meta é o socialismo, ainda que na sua /prática
efectiva / os propósitos socialistas pareça muito adormecidos [10]
<#notas> , não se encontra uma organização ou partido político sólido
que combata com força e clareza ideológica (vg. no estilo bolchevique
dos russos de 1917 ou dos espartaquistas alemães de Karl Liebnechet e
Rosa Luxemburgo. Ainda que estes exemplos, sublinhemos, não devem ser
tomados como um apelo à cópia, à repetição boba. Trata-se de recolher o
espírito, as grandes diretrizes que impulsionaram esses movimentos) as
metas do socialismo e do que deveria seguir-se-lhe; c) existe uma grande
falta de clareza sobre as metas socialistas, as relações de propriedade
a impulsionar, os mecanismos de gestão económica: plano x mercado, o
tipo de Estado, etc. O colapso do campo socialista não gerou uma crítica
profunda e eficaz para superar estes fracassos. Pelo contrário, a
discussão de um além do capitalismo simplesmente desapareceu da cena
histórica; d) no plano ideológico, o neoliberalismo penetrou na
consciência pública e criou a imagem de um sistema comunista que, além
de sórdido, é historicamente impossível. Para o que o fracasso de
experiências históricas como a URSS e China muito contribuíram: dá uma
base empírica à posição neoliberal.

Ao já mencionado há que acrescentar o impacto destruidor do
neoliberalismo na classe operária. A ocupação cai como percentagem da
população e a população operária industrial cresce muito pouco ou
inclusive diminui em termos absolutos. Além disso, reduz-se muito o peso
dos ocupados na grande indústria: o grosso da ocupação nova dá-se em
empresas de tamanho médio ou pequeno. Finalmente, se considerarmos o
conjunto dos trabalhadores assalariados, temos que o grosso do
crescimento populacional é gerado em sectores improdutivos. Para os
nossos propósitos, o ponto a sublinhar seria: a classe operária
industrial (vanguarda potencial de um processo de avanço ao socialismo)
perde peso económico e político. E junto com isso, aumenta o peso de
segmentos assalariados dispersos e difíceis de organizar: a chamada
flexibilidade laboral e o trabalho precário que engendra são causas
importantes destes processos.

Ao "efeito de destruição" que acaba de ser mencionado, em países como a
Argentina, Chile, Uruguai e semelhantes acrescenta-se outro: emergem
novas camadas de trabalhadores assalariados – no comércio, comunicações,
etc – que se bem que objectivamente devam ser qualificados como parte da
classe trabalhadora (são assalariados que vendem sua força de trabalho
por um dinheiro que funciona como capital), pelos seus valores, estilos
de vida e nível de rendimento tendem a auto-encarar-se como "classe
média" e não costumam estar dispostas a qualquer mobilização colectiva
nem radical. [11] <#notas>

Nas condições actuais, a classe operária funciona como uma ilhota
rodeada de um mar de informais, de pequena burguesia pauperizada, de
ambulantes, lumpen e outros. [12] <#notas> Estes segmentos, pelas suas
próprias condições de vida são indisciplinados e muito difíceis de
organizar. Sua conduta política costuma ser muito volátil e, como regra,
vem determinada por factores puramente emocionais. Organizações
políticas como as próprias da classe operária não os atraem (na
realidade, nenhum tipo de organização costuma atraí-los) e apresentam um
problema sério: o de como incorporá-los ao bloco popular. Até agora, a
única solução ou mecanismo visível é pela via do poder carismático de
grandes líderes. Tal parece ser o caso de López Obrador, Chávez, Correa,
Ollanta Humala e Evo Morales. Também, com outros alcances, o de Lula (um
hábil ex-operário, desde sempre ao serviço do capital). O problema que
isto provoca é conhecido: a personalidade do líder arrasta as próprias
organizações, impede-as de solidificarem-se e evita – espontânea,
inconscientemente – a consolidação de uma direcção colectiva.

O panorama descrito não é para saltar de alegria. Mas não devemos
esquecer: a) enquanto existir o capitalismo sempre existirá a
necessidade da sua negação; b) em época críticas podem-se produzir (a
experiência histórica assim o mostra) grandes saltos em frente nas
forças sociais e políticas que impulsionam metas anti-capitalistas; c)
se a esquerda deixa de actuar e de acumular forças, nunca chegará o dia
em que possa sintetizar, em seu favor, esta ou aquela crise estrutural.
Se hoje não pode decidir, amanhã poderá – com a condição de que saiba
/hoje / acumular forças.

Certamente, a pergunta do milhão que emerge é como acumular as forças
necessárias. Pretender aqui dar uma resposta adequada é impossível, além
de que seria necessário concretizá-la ao nível do país particular. Só
podemos tentar – com o sério risco de cair no óbvio – enumerar algumas
directrizes básicas. Seriam elas:

/1) Organizar os trabalhadores nos seus centros de trabalho e criar
Poder Popular. /

Trata-se de impulsionar uma organização eficaz e congruente com os fins
de curto, médio e longo prazo da classe. Considerando dois tipos de
lutas reivindicativas: a) as que buscam melhorar a condição operária sem
romper a ordem capitalista: reduzir e controlar o comprimento e a
intensidade da jornada de trabalho; melhorar os salários; melhorar
condições de segurança e de salubridade para os trabalhadores, etc; b)
as metas de ordem superior e que apontam para a criação de Conselhos
Operários de Fábrica, com os quais o trabalhador (como colectivo) começa
a decidir alguns aspectos da gestão económica da fábrica ou grupo de
fábricas. Aqui já se trata da educação, através das práticas do caso,
que a classe operária precisa para lutar pelo Poder Político geral (o
Estado). Ou seja, começar a criar e manifestar um Poder Popular real,
cada vez mais amplo e mais sólido. Em tudo isso, a chave esta em
desenvolver a capacidade política (organização e consciência) da classe.
Por outras palavras, é necessário que a classe trabalhadora se assuma
como classe dominante, em potência ou de facto.

2) Recuperar o ideal, a "utopia" entendida não no seu sentido mais
literal (=algo belo mas impossível) mas como um "sonho realizável": como
um mundo melhor que não só é desejável, mas também possível. Um mundo em
que "o livre e pleno desenvolvimento de cada qual é uma condição para o
livre e pleno desenvolvimento dos demais". Ou melhor: que o homem, que o
trabalhador, se torne mestre do seu destino. Esta recuperação, que
também deve ser /recriação, / é fundamental para: i) todo propósito
hegemónico da classe; ou seja, para ter a capacidade de atracção e de
direcção sobre o mais vasto bloco popular; ii) dar força vital
("combustível") à classe e aos membros da organização partidária que
procura fazer avançar o processo. Como se trata de uma "longa marcha",
este ponto é vital: permite superar derrotas, desalentos, não pensar que
não conseguir tudo em termos de uma vida significa o fracasso do
projecto de luta. Ou seja, sentir solidariedade e "camaradagem" não só
com os nossos contemporâneos que estão ao lado e de costas voltadas, mas
também com as gerações vindouras.

3) /Recuperar e desenvolver a capacidade crítica / mais profunda e mais
afiada. Isto significa, acima de tudo, capacidade teórica, aplicada a
fenómenos reais (não cair na armadilha pós-modernista europeia) com
rigor e profundidade.

Esta capacidade crítica deve ser aplicada com especial cuidado e rigor:
i) às realidades do capitalismo, especialmente à sua variante
neoliberal. Evidentemente, sem nunca esquecer que a libertação da classe
trabalhadora implica a superação da escravatura salarial imposta pelo
capitalismo em quaisquer das suas variantes. A crítica deve abordar as
dimensões económica, política e cultural do sistema. Em particular,
preocupar-se com o impacto devastador e embrutecedor dos media (TV e
outros) na consciência social; ii) também ser muito crítico dos erros e
derrotas históricas que o socialismo sofreu.

Escusado será dizer que esta crítica não deve ser entendida como uma
negação puramente emocional. Pressupõe: i) a compreensão do porquê das
coisas, não se limitando a uma simples rejeição emocional. Quando Marx
examina Sismondi, assinala que este "critica as contradições da produção
burguesa com energia, mas não as compreende, e portanto não as
/compreende / e portanto não compreende o processo pelo qual é possível
resolvê-las" [13] <#notas> ; ii) pressupõe também uma assimilação, no
sentido hegeliano /("aufheben") / do termo, do mais avançado da cultura
burguesa: Spinoza, Diderot, Holbach, J.S. Mill, etc; iii) compreender
que uma teoria crítica só faz sentido se estiver associada a uma prática
igualmente crítica. E vice-versa.

4) /Desenvolver as capacidades ideológicas e políticas da classe operária /

No plano ideológico, que desenvolva sua consciência de classe e que, por
isso, passe a operar como /"classe para si". / O que implica um processo
duplo e simultâneo: tirar da cabeça as ideias e valores ali postos pela
classe dominante (que por isso é dominante) e nela por as ideias,
valores e atitudes que a classe precisa para proteger os seus
interesses. Neste sentido, a recuperação e assimilação do marxismo por
parte dos trabalhadores torna-se absolutamente vital. Em paralelo,
desenvolver a capacidade política da classe, o que significa criar ou
impulsionar-consolidar uma organização político-partidária congruente
com os objectivos históricos da classe e que lhe permita uma alta
eficácia na luta política. Em tudo isto, o estudo das experiências
históricas acumuladas, especialmente dos fracassos, torna-se
imprescindível. Por exemplo: o que se passou com os sovietes na Rússia,
porque se diluíram tão depressa? Por que os espartaquistas na Alemanha
de Weimar fracassaram? Por que foi derrotada a Revolução Cultural
chinesa? O que podemos aprender da lendária Coluna Prestes no velho
Brasil? Por que, em países como Cuba, o desempenho económico
(produtividade do trabalho, PIB por habitante, etc) foi tão medíocre?

5) /Unir a firmeza estratégica com a flexibilidade táctica. /

As relações entre estratégia e táctica, entre outras coisas, colocam-nos
(e que deus nos livre do pedantismo) um problema filosófico: quais são
os nexos entre o abstracto e o concreto? Entre o geral e o particular?
Entre essência (o interno) e aparência (o externo)? Como se ascende de
um para o outro? Em suma, estamos diante de um problema metodológico que
é complexo e com um significado prático decisivo. E como o ponto escapa
ao objectivo destas notas só podemos advertir sobre a sua importância e
complexidade.

Firmeza estratégica significa jamais esquecer as metas finais pelas
quais se luta. O que, por sua vez, exige que: i) cada etapa ou fase,
cada passo ou luta concreta deve ser /congruente com as metas finais; /
ii) a congruência significa também /eficácia / e esta deve ser medida em
termos da /acumulação de forças / (isto é, conseguir uma força política
crescente) que o passo ou luta concreta possibilita; iii) a acumulação é
de /forças para cumprir as metas finais; / iv) tal acumulação não recusa
a luta por reformas. Entendendo as reformas como um mecanismo de
acumulação de forças (não ao purismo, sim à política) e não como formas
de legitimação do sistema (não ao reformismo); v) a firmeza estratégica
também tem um ingrediente moral-pessoal: a congruência ética e moral dos
quadros políticos com os ideais e metas a que a classe se propõe.
Exemplo: o funcionamento interno do partido não se pode basear numa
ordem burocrática-autoritária. Naturalmente, ordem e disciplina sim, mas
isto não equivale a despotismo dos dirigentes. A discriminação racial,
de género e outras são igualmente repudiáveis. E convém sublinhar: não
se trata de forjar santos e sim de seres humanos dignos. E como se vive
dentro da cloaca burguesa, isto também implica uma luta permanente
contra essas influências desagregadoras.

Flexibilidade táctica significa reconhecer que a realidade se move, que
se vai alterando e que, em consequência, a eficácia significa mudar o
modo concreto e particularizado como se faz a política. Se a organização
partidária não se insere nas lutas quotidianas do povo e da classe,
isola-se e perde-se. Nesta fluidez do quotidiano há que aprender a
identificar o nuclear e a agarrar-se a ele evitando a dispersão. Em
alguma conjuntura ou momento, a chave pode ser uma reivindicação
salarial, em outra lutar por um sistema de saúde (ou educacional)
público e gratuito, em outra "tomar por assalto do Palácio de Inverno".
Inclusive pode ser necessário ordenar um retrocesso em todas as linhas
da frente.

Em certas ocasiões, se nos fixarmos no aparente, poderia parecer que a
táctica contradiz os propósitos estratégicos. Mas o que deve interessar
é o substantivo, o que por vezes não se vê com a clareza necessária. O
exame, na prática quotidiana, deve ser feito de forma exaustiva,
reiteradamente. E pode mostrar-nos se havia congruência. Ou que não
havia, o que inclusive o que poderia ter sido visto como uma vitória não
era senão uma derrota, um retrocesso que poderia ter sido evitado.
Também aqui temos de aprender que toda autocrítica deve ser pública e
colectiva: abandonar a ideia generalizada de que reconhecer os erros é
beneficiar o inimigo. Na realidade, tal "ocultismo" apenas confunde os
sectores populares.

/6) Aprender a sumar e evitar sermos sumados /

Chegar à meta final, a de uma sociedade comunista, implicar abrir uma
trilha escarpada e terrivelmente longa. Fazê-lo obriga a pausas, a
delimitar fases e etapas. A estratégia deve definir etapas, tarefas a
satisfazer em cada uma delas e identificar as forças sociais que devem
impulsionar essas mudanças. Tais forças sociais não se mobilizam
gratuitamente e sim em função dos seus interesses específicos, os que no
prazo muito longo não costumam coincidir com os da classe operária. Mas
podem sim fazê-lo nesta ou naquela etapa. Exemplo: os camponeses não
gostam da propriedade colectiva, mas têm interesse em destruir a
propriedade latifundiária. Os pequenos capitalistas não querem
socialismo mas sim libertar-se da opressão dos grandes monopólios. E é
este dado que possibilita a configuração de um amplo bloco social que
impulsione o progresso, o avanço que a etapa correspondente pode e deve
alcançar.

Hoje, na região, a classe trabalhadora não é maioritária e deve,
obrigatoriamente, trabalhar pela formação de um amplo bloco social
popular. Pelos seus integrantes potenciais este bloco social deve ser
semelhante ao que impulsionaria a rota demo-burguesa, mudando – é claro
– a força dirigente do processo. Em suma, a classe trabalhadora (ou
proletariado moderno) deve configurar alianças de classe. Surgem aqui
dois problemas: um, o já indicado da população margina e pauperizada, as
tremendas dificuldades que implica atrair estas camadas da população. No
caso, o esforço de imaginação e de tenacidade a desenvolver é
monumental. Dois, o problema clássico e que surge com força ao olhar
para cima, para os possíveis segmentos dirigentes: participa-se da
frente só na qualidade de força dirigente? Este propósito, ainda que
frequente, é absurdo: a qualidade de força dirigente ganha-se dentro e
não fora da frente e a esta, dada a situação actual, dificilmente se
chega na qualidade de força dirigente. Mais concretamente, suponhamos
que não estão preenchidas as condições políticas para começar a avançar
desde já no sentido do socialismo (portanto, de uma frente com direcção
operária). E que se abre uma rota do tipo demo-burguêsa acima delineada.
Qual seria a opção? A resposta (que não é unânime) deveria ser apoiar
tal movimento preservando ao mesmo tempo a independência ideológica e
política da classe. [14] <#notas> Por vezes fala-se de "apoio com
reservas". Ou seja, avançando fortemente e criticando sem cerimónias
qualquer hesitação e tentativa de conciliação com os principais
inimigos. Embora isto, como é bem conhecido, seja muito fácil de
escrever e muito difícil de praticar. [15] <#notas>

7) Recuperar e massificar a reivindicação chave: /o direito à felicidade /

Já o dizia Diderot (e outros antes e depois dele): o homem tem o direito
e o dever de ser feliz. Não se pode aceitar que este mundo seja um "vale
de lágrimas" e que a felicidade só se encontre lá longe, nos "santos
céus". E se assim é, tem a obrigação de /lutar / por essa felicidade.
Luta que só se pode dar em termos colectivos, recuperando essa
solidariedade humana radical e primordial que ordens sociais como a
mercantil-capitalista tendem a destruir.

Na verdade, o compromisso com a história e o progresso, a justiça e a
liberdade, é uma forma, a mais elevada, de se enriquecer como ser
humano. Nem todos têm esta "oportunidade". Os que estão no topo, salvo
excepções – os "traidores à sua classe" – estão condenados a rejeitá-la:
é a sua forma de fidelidade de classe. Para os de baixo, é uma
necessidade e obrigação. Por conseguinte, se tal possibilidade surgir, é
preciso assumi-la plenamente, comprometer-se com ela. O compromisso é
também uma aposta moral, de responsabilidade para consigo próprio e para
com os outros. [16] <#notas> Aqueles que o fazem não são de modo algum
abençoados ou Joanas d'Arc histéricas em busca de uma imolação insana.
São, mais simplesmente, apenas homens que procuram a felicidade
juntamente com os seus camaradas de classe: "construir na terra o mundo
dos santos céus " /("Wir wollen hier auf Erden schon,/Das Himmelreich
errichten") / proclamava Heine. [17] <#notas> E que alcançam esta
felicidade, pelo menos até certo ponto, já pelo simples facto de se
empenharem na luta, independentemente dos seus possíveis bons
resultados. Como bem dizia Schiller, "só os grandes assuntos comovem
profundamente a alma da humanidade; nos anseios mesquinhos ela
apequena-se; engrandece-se ao aspirar a um fim elevado". [18] <#notas>
Enfim, talvez a nova ordem não esteja ao virar da esquina, mas é a única
luta que vale a pena.

12/Agosto/2021

[5] López Obrador, o novo presidente, percebe bem o fenómeno. Mas
pretende mudá-lo com perorações morais, próprias de párocos de aldeia.
[6] Sobre o tema, um texto muito interessante é August Thalheimer,
"Sobre o Fascismo", Centro de Estudos Victor Meyer, Salvador, Bahía,
2010. Thalheimer, foi um grande dirigente da social-democracia alemã
(comunista de esquerda). Também, com outra perspectiva, o clássico "El
miedo a la libertad" de Erich Fromm. Na Argentina, também há uma vasta
literatura sobre o tema. Com a vantagem de ser mais crioula.
[7] Em termos grossos, pelas suas características económicas, esta rota
é mais provável em países grandes (Argentina, Brasil México) do que em
pequenos como o Chile e o Uruguai. Nestes, só teria sentido no âmbito de
fortes processos de integração económica.
[8] Não esqueçamos que a categoria povo é relativa ao período histórico
e às condições socio-económicas concretas deste ou daquele país.
[9] Tudo parece indicar, em Agosto de 2021, que o México de López
Obrador, entrou nesta rota.
[10] As agressões que vem sofrendo a Venezuela (também Cuba) por parte
dos EUA e da Europa Ocidental são ferozes e muito descaradas. Muto
difíceis de resistir, sobretudo se se trata de economias pequenas e
muito dependentes do seu sector externo. Em resumo, o avanço ao
socialismo em economias pequenas e localizadas no Terceiro Mundo
torna-se muito difícil enquanto não se integrarem e não existir um país
socialista grande e com grande força económica e militar.
[11] A falta de trabalho teórico sobre o fenómeno das classes sociais dá
lugar a muitas confusões sobre estes pontos.
[12] Convém recordar a advertência de Marx:   "una revolución social
radical se halla sujeta a determinadas condiciones históricas de
desarrollo económico; éstas son sus premisas. Por tanto, sólo puede
darse allí donde, con la producción capitalista, el proletariado
industrial ocupe, por lo menos, una posición importante dentro de la
masa del pueblo, y, para tener alguna probabilidad de triunfar, tiene
que ser, por lo menos, capaz de hacer inmediatamente por los campesinos,
mutatis mutandis, tanto como la burguesía francesa, en la revolución,
hizo por los campesinos franceses de aquel entonces." C. Marx,
"Acotaciones al libro de Bakunin, El Estado y la Anarquía", en
Marx-Engels, Obras Escog., Tomo II, pág. 435-. Progreso, Moscú, 1973. O
critério /geral / de Marx ainda é válido. Mas na sua aplicação concreta
às realidades do presente, necessita obviamente de ser modificado. Por
exemplo, em países como o Chile, Argentina, Uruguai e Venezuela, o peso
do campesinato é mínimo. E o que se destaca (em quase todos os países da
região) é o peso das camadas urbanas, tanto os marginalizados (uma
maioria esmagadora) como certos segmentos (técnicos, profissionais, etc)
denominados "modernos". O que lhes pode ser oferecido, como podem ser
incorporados num bloco social popular? Além disso, será que a classe
trabalhadora tem hoje capacidade de impulsionar um projecto socialista?
13] C. Marx, "Teorías sobre la Plusvalía", Vol. 3, p. 47, Cartago, B.
Aires, 1975. Movimentos rebeldes muito extensos como o que se verifica
no Chile há já algum tempo, com o seu tremendo pico em Outubro de 2019,
fazem lembrar bastante a pregação de Saint-Simon: denunciam mas não
compreendem as causas reais do que recusam.
[14] No Chile, por exemplo, entre a ditadura de Pinochet e a
Concertación, não pode haver qualquer dúvida. Mas daí a ficar calado
perante as capitulações da Concertación, há todo um mundo.
[15] Por vezes um exemplo é mais útil do que a menção ao conceito
abstracto. Na rebelião militar de Julho de 1924 que começou em São Paulo
(Brasil), após um bombardeamento devastador pelas forças governamentais
e encontrando-se rodeado por forças muito superiores, o comando rebelde
decidiu apelar a voluntários civis. Estes só poderiam vir dos
trabalhadores e dos pobres da cidade. Na altura, o movimento anarquista
era muito forte entre os operários. Segundo Meirelles, "o diário /A
Plebe, / porta-voz do movimento anarquista, publicou um manifesto de
apoio aos rebeldes (...). No documento propõem o estabelecimento de um
salário mínimo e de uma tabela de preços máximos, o direito de livre
associação para todas as classes trabalhadoras e a fundação de escolas,
a liberdade de imprensa para a classe operária, um limite de oito horas
para a jornada de trabalho e a revogação da lei que expulsava os
estrangeiros envolvidos em questões políticas e sociais". Além disso,
pediram "armas para a formação de batalhões verdadeiramente populares,
capazes de actuar e de levantar a classe trabalhadora na capital e no
interior, bem como criar grupos de guerrilha para atacar as tropas
federais". Cf. D. Meirelles, "As Noites das Grandes Fogueiras". Uma
historia da coluna Prestes", pp. 131-2. Record, Rio de Janeiro e São
Paulo, 1995.
[16] "Man is his own star" (W. Shakespeare).
[17] Observava também que "o céu deixaremos para os anjos e os pardais"
(em "Alemania, un cuento de invierno"). E é digno de nota: o homem de
esquerda não deve ser um tolo grave, um funcionário vestido de cinza e
macilento. Deve ser capaz de rir, dançar e amar agora, de alegrar-se se
o Flamengo se tornar campeão com "jogo bonito", se o Boca Juniors,
Peñarol, Inter de Porto Alegre ou Alianza de Lima ganharem, ou se os
"viajantes românticos" da U do Chile ganharem outro campeonato em
Santiago. Gozar com o "futebol" e um bom churrasco uruguaio não é
sinónimo de vil alienação. Que pode ser, é verdade: entre os resultados
do futebol e o consumismo abjecto dos Shopping Center repartem-se a
alienação e a idiotice (infelizmente, classes médias pobres e ridículas
do Brasil e de outros lados!), que interessam ao sistema.
[18] F. Schiller, Wallenstein.

# ***A primeira parte encontra-se aqui <https://am_latina_ago21_1.html/> .

[*] Professor de Teoria Económica, UAM, México. *

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/mexico/am_latina_ago21_2.html
13/8/2021

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