domingo, 1 de agosto de 2021

Três décadas de liberalização económica

 


    – Uma análise indiana que pode ser estendida ao resto do mundo

*por Prabhat Patnaik [*]
Museu do neoliberalismo, em Londres. Fazem trinta anos desde a adopção
pela Índia das políticas neoliberais, em 1991 – embora alguns datem a
sua introdução ainda mais cedo, em 1985. Os jornais estão cheios de
avaliações dos impactos destas políticas sobre a economia e muitos
liberalizadores, desde Manmohan Singh
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Manmohan_Singh> até por aí abaixo,
subitamente tornaram-se visíveis a louvarem a sua obra. Na melhor das
hipóteses eles lamentam que os benefícios da liberalização tenham sido
desigualmente distribuídos. Manmohan Singh disse recentemente que "uma
vida saudável e dignificada para todos os indianos deve ser priorizada".
Alguém pode perguntar o que é que o impediu de fazer isso quando estava
ao leme do Estado.

Uma tal avaliação, de que a liberalização promoveu muito a taxa de
crescimento do PIB e portanto melhorou a vida de quase todo indiano,
levantando vastas massas das garras da pobreza absoluta, apesar de ter
aumentado a desigualdade de rendimento e riqueza no país, seria aceite
habitualmente não só pelos devotos da liberalização como também pelos
seus críticos, incluindo mesmo alguns na esquerda. As diferenças,
aparentemente, referem-se apenas ao peso que cada um dá à igualdade em
relação ao crescimento. Os liberalizadores argumentariam mesmo que os
malefícios da desigualdade desapareceriam se a taxa de crescimento na
economia reanimasse e aumentasse, pois os "espíritos animais" dos
capitalistas que determinam quanto investimento fazem têm de ser
promovidos. E o governo Modi afirmaria que promover os "espíritos
animais" dos capitalistas é precisamente o que está a fazer através das
suas políticas anti-laborais e anti-campesinato, algumas das quais o
Congresso, apesar de não ter uma análise diferente, curiosamente se
opõe. Assim, a alegação das instituições de Bretton Woods de que existe
um amplo "consenso" sobre as políticas neoliberais entre os principais
partidos políticos parece também estender-se à avaliação dos seus
efeitos na economia ao longo das últimas três décadas.

Contudo, toda esta percepção é errada devido a pelo menos duas razões. A
primeira, vê o sector capitalista da economia como sendo mais ou menos
independente, destacado do resto da economia, cujo principal efeito
sobre o seu ambiente circundante é simplesmente atrair cada vez mais
trabalho do mesmo – e o lamento é que não tenha feito isso
suficientemente. Na realidade, contudo, a acumulação dentro do sector
capitalista invariavelmente choca-se com mundo exterior existente de
múltiplas formas. Ele atrai não só trabalho do mundo ao mundo exterior a
si, o que numa economia com reservas maciça de trabalho é uma coisa boa,
como também terra e outros recursos incluindo recursos orçamentais
(exemplo: subsídios a capitalistas para promoverem os seus "espíritos
animais" ocorrem a expensas de subsídios para a agricultura camponesa
que tradicionalmente tem contribuído para a sua viabilidade). E o
crescimento do sector capitalista também puxa a procura para longe dos
sectores tradicionais.

Portanto, a acumulação de capital invariavelmente mina a economia de
pequena produção circundante (um processo a que Marx chamou de
"acumulação primitiva de capital"), mesmo quando retira pouco trabalho
da mesma. Ao contrário do que diz a teoria económica burguesa
convencional, nomeadamente que uma taxa rápida de acumulação de capital
simplesmente absorverá as reservas de trabalho, reduzindo dessa forma o
desemprego e a pobreza (e se assim não fizer então a panaceia está numa
taxa de acumulação de capital ainda mais rápida), tal acumulação mina a
economia circundante de pequenos produtores sem absorver muito trabalho.
Isto significa um aumento do desemprego e da pobreza. E se a taxa de
acumulação de capital for aumentada, então isso apenas piora esta
tendência ao invés de aliviá-la.

Isto é de facto exactamente o que tem acontecido, reflectindo-se mesmo
nas próprias estatísticas do governo. O enfraquecimento da agricultura
camponesa sob o regime neoliberal, o qual lhe retirou toda a protecção
dada durante o período dirigista anterior, é óbvio. Manifesta-se na
queda da lucratividade da agricultura camponesa; manifesta-se também no
facto de entre os censos de 1991 e 2011, o número de "cultivadores" (tal
como definido pelo censo) ter diminuído em 15 milhões; e é dolorosamente
evidente pelos suicídios de mais de 300 mil agricultores durante as
últimas três décadas.

Não surpreendentemente, a magnitude da pobreza, no sentido mais
elementar do acesso às calorias, e não apenas da desigualdade, aumentou
desde o início das reformas neoliberais. A percentagem de pessoas com
acesso a menos de 2200 calorias por pessoa por dia na Índia rural (que
era a referência oficial original para a pobreza rural), aumentou de 58
em 1993-94 para 68 em 2011-12 (ambos os anos do inquérito de grandes
amostras do NSS <http://www.mospi.nic.in/national-sample-survey-nss> ).
Os números correspondentes para a Índia urbana, onde a referência
original era de 2100 calorias por pessoa por dia, são respectivamente 57
e 65.

As questões tornaram-se ainda piores desde 2011-12. O inquérito por
amostragem de 2017-18 do NSS revelou números tão surpreendentes que o
governo Modi decidiu suprimi-los por completo e também descontinuar
estes inquéritos na sua forma antiga. No entanto, algumas informações
escaparam antes de os resultados serem suprimidos e estes mostram que
entre 2011-12 e 2017-18, a despesa de consumo per capita em todos os
itens em termos reais caiu 9% na Índia rural. Nada como isto havia
alguma vez acontecido em tempos normais (ou seja, exceptuando grandes
falhas nas colheitas) na Índia independente.

O assalto à agricultura camponesa sob o neoliberalismo está realmente a
intensificar-se. A sua manifestação mais recente, sob a forma de três
leis agrícolas destinadas a promover os interesses do grande capital à
custa dos camponeses, é tão prejudicial que trouxe grandes massas
camponesas dos estados vizinhos para Deli, exigindo a sua retirada.

Deixem-me agora passar à segunda falha na percepção neoliberal. O
investimento dos capitalistas não depende apenas de alguma coisa
intangível chamada "espíritos animais", mas está enraizado em cálculos
tangíveis que fazem sobre as perspectivas de crescimento nos mercados. É
verdade que a resposta a tais cálculos dentro de limites pode depender
do seu estado de optimismo ou pessimismo (o qual é captado pela
expressão "espíritos animais"), mas claramente se o mercado não estiver
a crescer ou se o crescimento abrandar, então o investimento dos
capitalistas sofre, não importa quantos subsídios lhes sejam concedidos.

Agora, o neoliberalismo ampliou a desigualdade de rendimentos por toda a
parte, incluindo a Índia: de acordo com Piketty e Chancel, a percentagem
dos 1% de topo da população no rendimento nacional total era de apenas
6% em 1982, mas aumentou para 22% em 2013-14 (o valor mais alto desde há
quase um século). Como os trabalhadores consomem mais dos seus
rendimentos do que os ricos, uma ampliação da desigualdade de
rendimentos equivale a uma transferência de rendimentos do primeiro para
o últimos, o que tem o efeito de reduzir o consumo e, consequentemente,
a procura agregada, a qual por sua vez reduz o investimento e o
crescimento. Em suma, o neoliberalismo é afligido por uma tendência
estagnacionista, a qual, para o mundo capitalista como um todo, havia
sido mantida sob controle por "bolhas" na economia dos EUA, primeiro a
"bolha dotcom" nos anos 90 e depois a "bolha habitacional" na primeira
década deste século. Com o colapso da "bolha habitacional", a economia
mundial entrou numa crise prolongada que não tem solução sob o
neoliberalismo (que se opõe à intervenção do Estado na "gestão da
procura").

Isto afectou também a economia indiana onde, mesmo antes da pandemia, a
taxa de desemprego em 2019 era a mais alta já verificada durante 45
anos. Istto tem duas espécies de efeitos sobre o povo: uma, que agravou
consideravelmente as condições de vida dos trabalhadores, mesmo antes da
pandemia, os quais já estavam a ser prejudicados pelo perseguição do
neoliberalismo. A recente queda drástica do emprego e do consumo
sublinha este facto.

Em segundo lugar, a crise levou ao cimentar de uma aliança entre o
grande capital e grupos fascistas Hindutva, os quais apoiam o governo
Modi. Uma tal aliança não é específica da Índia. Em períodos de crise, o
grande capital promove e financia a ascensão política de grupos
fascistas com os quais forma uma aliança. Ele assim o faz como um meio
de alterar o discurso, destinado a difamar o "outro", a fim de distrair
o povo da sua difícil situação económica. Se bem que tais grupos no
poder cumpram as ordens do grande capital, eles derivam a sua força
política não de qualquer solução económica para a crise que ofereçam mas
sim de afastar a atenção para longe do âmbito económico.

O neoliberalismo, em suma, embora esmagasse os trabalhadores mesmo
quando experimentava um crescimento elevado, quando entrou em crise
aumentou o esmagamento e anunciou um arranjo que é inimigo das premissas
básicas da constituição indiana, tais como democracia, laicidade e
igualdade social.

Os devotos da liberalização não percebem que, embora possa ter aumentado
a taxa de crescimento do PIB, ela tem piorado as condições dos
trabalhadores e minado os princípios fundadores sobre os quais uma nação
indiana moderna pode ser construída.

01/Agosto/2021

*[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
<http://en.wikipedia.org/wiki/Prabhat_Patnaik>

O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2021/0801_pd/three-decades-economic-liberalisation
<https://peoplesdemocracy.in/2021/0801_pd/three-decades-economic-liberalisation>

Tradução de JF. *

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/patnaik/patnaik_01ago21.html
1/8/2021

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