segunda-feira, 21 de março de 2022

Quando começou a guerra da Ucrânia?

 
  
    


Roger Harris

 

    /A integração pacífica da Rússia com o resto da Europa seria uma
    grande ameaça ao império dos EUA. Uma Europa unificada ou mesmo
    cordial poderia realmente anunciar o fim da hegemonia dos EUA. O
    objetivo geopolítico de longo prazo de impedir a unificação da
    Europa pode muito bem ser o objetivo fundamental da política externa
    dos EUA naquele continente./

 

 



Ver a guerra da Ucrânia como começando com a atual invasão russa leva a
conclusões muito diferentes do que se se considerar que o ponto de
partida dessa guerra foi o golpe de 2014 orquestrado pelos EUA na
Ucrânia. O golpe, que teve elementos de uma autêntica revolta popular,
tem sido utilizado por potências externas para perseguir fins geopolíticos.

 

A conceção de que a guerra começou em 24 de fevereiro deste ano é como
ver a “invasão” dos EUA e seus aliados da Normandia em junho de 1944
contra os “soberanos” e “democráticos” franceses de Vichy como o início
da Segunda Guerra Mundial. Não importa que o governo de Vichy fosse um
fantoche dos nazis; que as oportunidades de negociação tivessem sido
rejeitadas há muito tempo; que a guerra tivesse começado há anos e que a
única opção para deter os nazis fosse militar.

 

*O exército imperial dos EUA*

A NATO, deve-se entender, é um exército ao serviço do império dos EUA.
Vendo-o simplesmente como uma aliança de entidades nominalmente
soberanas, obscurece que é comandado como uma ferramenta da política
externa dos EUA na sua busca declarada de domínio mundial; isto é,
“dominância de espectro total”.Os membros da “aliança” devem integrar
totalmente as suas forças armadas sob esse comando, além de comprar
equipamentos de guerra dos EUA e oferecer seus próprios cidadãos como
tropas.

 

Após a implosão da União Soviética e o suposto fim da primeira guerra
fria, em vez da NATO ser dissolvida, ocorreu o contrário. Não houve
“dividendo da paz” nem o honrar a promessa de que a NATO não se iria
expandir mais. Em vez disso, a NATO disparou para o leste em direção às
fronteiras da Federação Russa, adicionando quatorze novos membros das
ex-repúblicas e aliados da URSS.

 

Mesmo antes do golpe de 2014, a decisão fatídica dos EUA em 2006 de
atrair a Ucrânia para a NATO representava uma ameaça existencial para a
Rússia. Em dezembro de 2021, de acordo com o estudioso de relações
internacionais da “realpolitik” John Mearsheimer, uma Ucrânia armada
pelos EUA tinha-se tornado um membro de facto da NATO, cruzando uma
linha vermelha para a Rússia. Mearsheimer conclui que “o ocidente é o
principal responsável pelo que está a acontecer hoje”.

 

*O fracasso das negociações pacíficas*

Falando perante a ONU em 2 de março, o representante venezuelano
identificou a violação dos Protocolos de Minsk, com o incentivo dos EUA,
como precursora da atual crise na Ucrânia.

Após o golpe de 2014 na Ucrânia, os Protocolos de Minsk foram uma
tentativa de um acordo pacífico por meio de “um cessar-fogo, retirada de
armas pesadas da linha de frente, libertação de prisioneiros de guerra,
reforma constitucional na Ucrânia concedendo autogoverno a certas áreas
de Donbass , e restaurar o controle da fronteira do Estado pelo governo
ucraniano.” Moscovo, Kiev e os separatistas orientais eram todos partes
nos acordos.

 

A perceção russa das negociações com a aliança ocidental no período que
antecedeu a invasão, conforme relatado pelo /New York Post//, /foi
descrita usando terminologia insensível como “como  conversa de surdos”
pelo ministro das Relações Exteriores russo Sergei Lavrov no seu
encontro com a sua contraparte britânica. (NOTA: o /NYP/, mesmo na
versão atualizada do artigo, refere-se a Lavrov como o ministro das
Relações Exteriores “soviético”, esquecendo que a URSS não existe há
mais de 30 anos.)

 

Após a última rodada de sanções “de varredura” impostas pelos EUA à
Rússia, o seu Ministério das Relações Externas anunciou que “chegámos à
linha onde começa o ponto sem retorno”. Tais sanções são uma forma de
guerra tão mortal como as bombas.

 

*As vantagens da guerra para os EUA e as desvantagens para todos os outros*

A guerra é uma grande diversão para Joe Biden, cuja popularidade vem
caindo devido a um desempenho doméstico sem brilho. O império dos EUA
tem muito a ganhar: unificar ainda mais a NATO sob o domínio dos EUA,
reduzir a concorrência económica russa no mercado de energia europeu,
justificar o aumento do orçamento de guerra dos EUA e facilitar a venda
de material de guerra aos vassalos da NATO.

 

A NATO despejou mais de um bilião de dólares em armas e instalações nos
países fronteiriços próximos da Rússia e continua até hoje a despejar
armas letais na Ucrânia. O líder do grupo neonazi  C14 da Ucrânia
gabou_-se _recentemente no YouTube (enquanto outras vozes são
censuradas): “Estamos a receber tanto armamento não porque, como alguns
dizem, 'o Ocidente está a ajudar-nos', não porque é melhor para nós, mas
realizamos as tarefas estabelecidas pelo ocidente porque... porque nos
divertimos, divertimo-nos a matar.”

 

Mais de 14 000 pessoas foram mortas na região de Donbass, no leste da
Ucrânia, numa guerra entre a etnia russa e militares ucranianos
regulares/paramilitares de direita nos oito anos a seguir ao  golpe. As
autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, enclaves
sitiados no Donbass cuja população em grande parte é constituída pela
etnia russa, separaram-se da Ucrânia e foram reconhecidas pela Rússia em
21 de fevereiro.

 

A cartilha semi-governamental (mais de 80% financiada pelo governo dos
EUA) da Rand Corporation^1 para os EUA e seus aliados diz tudo:
“pressionar as áreas económicas, políticas e militares para pressionar –
esticar e desequilibrar – a economia, as forças armadas da Rússia e as
forças de apoio político da Rússia no interior e no exterior”.

 

O conflito pode ter consequências desastrosas para a Federação Russa,
segundo fontes ocidentais e até mesmo algumas pessoas que se identificam
com a esquerda na Rússia . Como um bônus para os EUA, de acordo com Juan
S. González, diretor sénior do Conselho de Segurança Nacional dos EUA
para o Hemisfério Ocidental, as sanções contra a Rússia são feitas por
medida para prejudicar Cuba, Venezuela e Nicarágua, todos visados por
Washington para uma mudança de regime. E, claro, para ucranianos de
todas as etnias não há vitória numa guerra.

 

É difícil pensar que outras opções a Rússia tem para se defender. Talvez
existam algumas, mas certamente elas são escassas. Deve ficar claro que
os EUA têm sido continuamente o agressor, mesmo que alguns não concordem
com a resposta russa. Como argumenta Phyllis Bennis, do Institute for
Policy Studies [Instituto de Estudos Políticos (NT)], os EUA provocaram
esta guerra.

 

*Separar a Rússia da Europa*

A integração pacífica da Rússia com o resto da Europa seria uma grande
ameaça ao império dos EUA. Uma Europa unificada ou mesmo cordial poderia
realmente anunciar o fim da hegemonia dos EUA. O objetivo geopolítico de
longo prazo de impedir a unificação da Europa pode muito bem ser o
objetivo fundamental da política externa dos EUA naquele continente.

 

O que aconteceria com os “interesses estratégicos dos EUA” se a paz
surgisse na Europa e a Rússia se tornasse parceira da Alemanha, França e
Itália? Uma Europa potencialmente mais independente, incluindo a Rússia,
desafiaria o projeto atlanti_sta _dominado pelos EUA .

A extrema hostilidade que os EUA impuseram ao projeto Nord Stream 2 ,
que teria canalizado gás natural russo sob o Mar Báltico diretamente
para a Alemanha, foi além do estreito economicismo de favorecer os
fornecedores de gás natural liquefeito (GNL) dos EUA. Onde os esforços
anteriores de Washington de impor sanções económicas unilaterais ilegais
ao seu aliado da NATO falharam, o conflito atual certamente
desencorajará qualquer associação económica racional e cooperativa da
Rússia com os seus vizinhos ocidentais.

 

A separação da Rússia do resto da Europa é uma tremenda vitória para o
projeto imperial dos EUA. Este é especialmente o caso, quando houve
movimentos recentes na direção do intercâmbio económico, cultural e
político, que agora foram revertidos.

 

*Esferas de Influência e rivalidade interimperialista*

A Rússia compartilha uma fronteira de 1.426 milhas [2294.92 Km(NT)] com
a Ucrânia e considera essa região dentro do seu perímetro de segurança,
vital para a sua segurança nacional. Os EUA, que ficam a 5.705 milhas
(3693.3 Km) da Ucrânia, consideram o mundo como sua esfera de
influência. Claramente, há um conflito de interesses.

 

A dinâmica geopolítica contemporânea evoluiu da que Lenine descreveu em
1916 em /O/ /Imperialismo, o estágio supremo do capitalismo//, /que foi
então caracterizado como uma rivalidade interimperialista. Essa teoria
não é inteiramente adequada para entender o mundo de hoje dominado por
uma única superpotência (com os seus parceiros menores da União
Europeia, britânicos e japoneses)^2 .Certamente, os centros nacionais de
capital continuam a competir. Mas acima dessa competição está uma
/unipolar/ /pax americana/ imposta de maneira militante .

 

Existe apenas uma superpotência com centenas de bases militares
estrangeiras, posse da moeda de reserva mundial e controle do sistema
mundial de pagamentos e transações SWIFT [Society for Worldwide
Interbank Financial Telecommunications (NT)]^3 . Reduzir simplesmente  o
conflito a um confronto entre capitalistas obscurece o contexto do império.

 

Além disso, mesmo que se entenda a situação atual como um choque de dois
campos imperialistas, isso não impede a tomada de partido. Certamente a
Segunda Guerra Mundial foi uma guerra interimperialista, mas isso não
impediu os socialistas de se oporem ao pólo do Eixo e apoiarem os
aliados. Os EUA estão cada vez mais agressivamente a agitar as águas,
não apenas na Ucrânia, mas também em Taiwan, em África e  noutros sítios.

 

*Assimetria das Forças*

As forças são assimétricas nesta competição. A Rússia e os EUA podem ter
arsenais nucleares comparáveis, mas a Rússia não tem bases de nenhum
tipo na América do Norte em comparação com pelo menos seis bases
nucleares e muitas outras bases convencionais  dos EUA na Europa. O
orçamento militar dos EUA é 11,9 vezes maior que o da Rússia, para não
mencionar os cofres de guerra dos aliados de Washington na NATO. Da
mesma forma, a economia dos EUA é 12,5 vezes maior que a da Rússia. Das
500 maiores empresas internacionais segundo a revista Fortune , apenas
quatro são russas, em comparação com 122 dos EUA. A produtividade do
trabalho da Rússia é apenas 36% da dos EUA. Em termos de capital
financeiro, os EUA têm 11 dos 100 maiores bancos do mundo; a Rússia tem
um. Longe de ser um importante exportador de capital, a Rússia é líder
na fuga de capitais, em parte devido às sanções impostas pelos EUA e
seus aliados.

 

Como concluio analista Stansfield Smith, a Rússia “desempenha um  
papepequenol na atividade imperialista por excelência: a exportação de
capital para a periferia e a extração de lucro do trabalho e dos
recursos dos países em desenvolvimento”. A Rússia é um alvo do
imperialismo liderado pelos EUA. A Ucrânia é apanhada no fogo cruzado.

 

*Hipocrisia da “comunidade internacional”*

Se ao menos a indignação com a invasão russa tivesse algum fundamento
ético pelo que é erroneamente chamado  “comunidade internacional”!  Mas
na realidade são os EUA e os seus subalternos. A elogiada “ordem baseada
em regras” de Biden é aquela em que os EUA fazem as regras e o resto do
mundo segue as suas ordens, em contradição com a Carta da ONU e outras
leis internacionais reconhecidas.

 

De Cuba, o jornalista Ángel Guerra Cabrera lamenta: “A nossa região
assistiu a flagrantes violações  desses princípios, da parte dos EUA,
na Guatemala, Cuba, República Dominicana, Granada e Panamá, as três
últimas por meio de invasões diretas. Cuba, Venezuela e Nicarágua são
exemplos atuais de uma política dos EUA que nega categoricamente a sua
afirmação, para não mencionar Porto Rico”.

 

O especialista em direito internacional Alfred de Zayas lembra_-_nos que
a chamada “comunidade internacional parece ter aceitado violações
flagrantes do art. 2 (4) [da Carta da ONU] pelos EUA contra Cuba,
República Dominicana, Granada, Haiti, Nicarágua, Panamá, Venezuela;
pelos países da NATO contra o Afeganistão, Iraque, Líbia, Somália,
Síria, Jugoslávia; por Israel contra todos os seus vizinhos árabes,
incluindo os palestinos e libaneses; pela Arábia Saudita contra o Iémen;
pelo Azerbaijão contra o Nagorno Karabakh, pela Turquia contra Chipre, etc.”

 

*Como vai acabar esta guerra*

Independentemente de como se torne – ou não – na nova guerra fria, é
instrutivo entender o contexto do conflito. Isso é especialmente verdade
quando visões fora da narrativa dominante dos EUA, como as dos veículos
russos /Sputnik/ e /R//[ussia]//T//[oday]/, que receberam intelectuais
americanos como o jornalista vencedor do Prémio Pulitzer Chris Hedges,
estão a ser silenciadas.

Este artigo abordou a questão de como começou esta guerra. Como vai
acabar ou mesmo se vai acabar é outra história. O mundo está a entrar
numa nova guerra fria, emanando de uma região formalmente em paz sob o
socialismo.

Expressando uma visão do Sul Global, o ex-presidente brasileiro Luiz
Inácio Lula da Silva comentou : “não queremos ser inimigos de ninguém.
Não estamos interessados, nem o mundo,  numa nova guerra fria… que com
certeza está a arrastar o mundo inteiro para um conflito que pode
colocar a humanidade em perigo.” Se há uma lição a ser aprendida, é que
o fim da guerra sem fim virá com o fim do projeto imperial dos EUA que
provocou esta crise.

 

/Roger Harris faz parte da equipa da //Task Force on the Americas//, uma
organização anti-imperialista de direitos humanos com 32 anos./

/ /

^1 A *RAND Corporation *("investigação e desenvolvimento”) é uma
organização americana sem fins lucrativos de investigação de política
global, criada em 1948 pela Douglas Aircraft Company para produzir
investigação e fornecer análises às Forças Armadas dos EUA. É financiada
pelo governo dos EUA e donativos  privados, empresas, universidades e
particulares.

 

^2 Os editores discordam desta afirmação (NE)

^

^3  A Sociedade de Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais
Financial[Society for Worldwide Interbank Financial
Telecommunition](SWIFT) é uma sociedade cooperativa belga que presta
serviços relacionados com a execução de transações financeiras e
pagamentos entre bancos em todo o mundo. A sua principal função é servir
como a principal rede de mensagens através da qual os pagamentos
internacionais são iniciados. Também vende /software/ e serviços a
instituições financeiras, principalmente para uso na sua própria
"SWIFTNet" e códigos ISO 9362 de identificação de negócios (BIC),
popularmente conhecidos como "códigos SWIFT".

 

Fonte:
https://www.counterpunch.org/2022/03/10/when-did-the-ukraine-war-begin/
<https://www.counterpunch.org/2022/03/10/when-did-the-ukraine-war-begin/>, publicado e acedido em 10.03.22

Em
PELO SOCIALISMO
https://pelosocialismo.blogs.sapo.pt/quando-comecou-a-guerra-da-ucrania-189613
21/3/2022

Nenhum comentário:

Postar um comentário