terça-feira, 27 de setembro de 2022

Como travar a escalada para a guerra

 


 

Thierry Meyssan

O conflito ucraniano está em vias de se transformar numa guerra opondo o
Ocidente por um lado à Rússia, e por outro à China. Cada campo está
persuadido que o outro quer a sua perda. E o medo é mau conselheiro. A
paz só poderá ser preservada se cada campo reconhecer os seus erros. Tem
que ser uma mudança radical, já que hoje nem a narrativa ocidental, nem
os actos russos correspondem à realidade.



Nenhum dirigente político deseja uma guerra no seu território. Quando
estas acontecem, é geralmente sob o efeito do medo. Cada campo teme o
outro, com razão ou sem ela. Claro, há sempre alguns elementos que
empurram para o cataclismo, mas são fanáticos e muito minoritários.

É exactamente a situação em que nos encontramos. A Rússia está
persuadida, erradamente ou com razão, que o Ocidente quer destruí-la,
enquanto o Ocidente está igualmente convencido que a Rússia realiza uma
campanha imperialista e destruirá a prazo as suas liberdades. Na sombra,
um pequeníssimo grupo, os Straussianos, deseja o confronto.

Isso não quer dizer que a Terceira Guerra mundial seja para amanhã. Mas
se nenhum dirigente político mudar radicalmente a sua política
estrangeira, vamos caminhar directamente rumo ao desconhecido e teremos
de nos preparar para o caos absoluto.

Para dissipar os mal entendidos, devemos escutar as narrativas dos dois
campos.

Moscovo (Moscou-br) considera que o derrube do Presidente
democraticamente eleito, Viktor Yanukovych, foi um Golpe de Estado
orquestrado pelos EUA. É o primeiro ponto de divergência uma vez que
Washington interpreta os acontecimentos como uma « revolução », a do
«EuroMaidan» ou da «Dignidade». Oito anos mais tarde, inúmeros
testemunhos ocidentais atestam a implicação do Departamento de Estado
dos EUA, da CIA e da NED, da Polónia, do Canadá e por fim da OTAN.

As populações da Crimeia e do Donbass recusaram reconhecer o novo Poder
que incluía muitos « nacionalistas integralistas », sucessores dos
vencidos da Segunda Guerra Mundial.

A Crimeia, que durante a dissolução da URSS votara por referendo a sua
ligação à futura Rússia independente, meio ano antes que o resto da
República Soviética da Ucrânia declarasse a independência, votou
novamente através de um referendo. Durante quatro anos, a Crimeia foi
reivindicada quer pela Rússia, quer pela Ucrânia. Moscovo argumentou que
entre 1991 e 1995, foi ela e não Kiev que pagou as pensões e salários
dos funcionários públicos na Crimeia. De facto a Crimeia fora sempre
russa, mesmo que fosse considerada como estando ligada à Ucrânia. Foi
por fim o Presidente russo Boris Yeltsin que, atravessando uma crise
económica muito grave, decidiu abandonar a Crimeia aos cuidados de Kiev.
No entanto, a Crimeia votou então uma Constituição que lhe outorgava a
autonomia no seio da Ucrânia, o que Kiev nunca aceitou. O segundo
referendo, em 2014, proclamou de forma maciça a independência. O
Parlamento da Crimeia pediu a união do seu Estado à Federação Russa, o
que essa aceitou. Para reforçar a continuidade de seu território, a
Rússia construiu, sem consultar a Ucrânia, uma gigantesca ponte ligando
a sua metrópole à península da Crimeia através do Mar de Azov, de facto
privatizando esse pequeno mar.

Ora, a Crimeia abriga o porto de Sebastopol, indispensável à marinha
militar russa. Esta não era nada em 1990, mas voltou a ser poderosa em 2014.

Os Ocidentais reconheceram o referendo do final soviético na Ucrânia, em
1990, mas não o de 2014. Ora, o direito dos povos à autodeterminação
aplica-se inteiramente aos Crimeenses. Os Ocidentais argumentam que
muitos soldados russos estavam presentes no terreno mesmo sem usar os
uniformes. Certamente, mas os resultados dos dois referendos, de 1990 e
de 2014, foram semelhantes. Não há, pois, lugar para suspeitas de fraude.

Para marcar que não aceitavam essa « anexação », os Ocidentais aplicaram
colectivamente sanções contra a Rússia, sem autorização do Conselho de
Segurança. Estas sanções violam a Carta das Nações Unidas, a qual
confere a exclusividade desse poder ao Conselho de Segurança.

Os “oblasts” de Donetsk e de Luganks rejeitaram igualmente o governo
saído do Golpe de Estado de 2014. Eles proclamaram a sua autonomia e
assumiram-se como resistentes aos « nazis » de Kiev. Igualar os «
nacionalistas integralistas » aos «nazis» é historicamente justificado,
mas não ajuda os não-ucranianos a compreender aquilo que se passa.

O « nacionalista integralista » foi criado na Ucrânia por Dmytro Dontsov
no início do século XX. À partida, Dontsov era um filósofo de esquerda,
só de de forma progressiva é que se passou para a extrema-direita. Ele
foi um agente pago do Segundo Reich, durante a Primeira Guerra Mundial,
antes de participar no governo ucraniano de Symon Petliura, surgido
durante a Revolução Russa (bolchevique-ndT) de 1917. Participou na
Conferência de Paz de Paris e aceitou o Tratado de Versalhes. Durante o
período entre guerras, exerceu um magistério sobre a juventude ucraniana
e tornou-se um propagandista do fascismo, depois do nazismo. Também se
tornou violentamente anti-semita, pregando o massacre dos judeus muito
antes desse tema ser apoiado pelas autoridades nazis, as quais até 1942
apenas falavam de expulsão. Durante a Segunda Guerra Mundial, recusou
tomar a chefia da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN), a qual
confiou ao seu discípulo Stepan Bandera, auxiliado por Yaroslav Stetsko.
Quase todos os documentos sobre sua actividade no seio do nazismo foram
destruídos. Ignora-se o que ele fez durante a Guerra, salvo a sua
participação activa no Instituto Reinhard Heydrich, após o assassinato
deste. Os jornais deste órgão anti-semita dão-lhe o maior destaque.
Aquando da Libertação, fugiu para o Canadá, sob protecção dos Serviços
Secretos anglo-saxões, depois para os Estados Unidos. No fim da sua
vida, ele continuava virulento e tinha evoluído para uma forma de
misticismo viking, pregando o confronto final contra os «Moscovitas».
Hoje, os seus livros, em especial o seu /Nacionalismo/, são uma leitura
*obrigatória* para os milicianos, nomeadamente os do Regimento Azov.
Durante a Segunda Guerra mundial, os « nacionalistas integralistas »
ucranianos massacraram pelo menos 3 milhões dos seus concidadãos.

Washington lê esta história de forma diferente. Para ela, os «
nacionalistas integralistas » cometeram é certo erros, mas eles lutavam
pela sua independência, ao mesmo tempo face aos Nazis alemães e aos
Bolcheviques russos. A CIA tinha, pois, razão em abrigar Dmytro Donsov
nos EUA e em empregar Stepan Bandera na Rádio Free Europe. E mais ainda,
em criar a Liga Anti-comunista Mundial em torno do Primeiro-Ministro
nazi ucraniano, Yaroslav Stetsko, e do Chefe da oposição anti-comunista
chinesa, Chiang Kai-shek. Hoje em dia, ainda segundo Washington, estes
factos são já parte do passado.

Em 2014, com o Presidente Petro Poroshenko, o Governo de Kiev cortou
toda a ajuda aos « Moscovitas » do Donbass. Deixou de pagar as pensões
dos seus cidadãos e os salários dos seus funcionários. Ele proibiu a
língua russa, falada por metade dos Ucranianos, e lançou operações
militares punitivas contra esses « infra-humanos», causando 5. 600
mortos e 1,5 milhão de deslocados em 10 meses. Face a esses horrores, a
Alemanha, a França e a Rússia impuseram os Acordos de Minsk. Tratava-se
de levar o Governo de Kiev à razão e de proteger as populações do Donbass.

Constatando que os primeiros Acordos não tinham produzido efeito, a
Rússia fez consagrar o de Minsk 2 pelo Conselho de Segurança. É a
Resolução 2202, adoptada por unanimidade. Durante as declarações de
voto, os Estados Unidos desenvolveram a sua leitura sobre este período.
Para eles, os « resistentes » do Donbass não passavam de « separatistas
» apoiados militarmente por Moscovo. Especificaram, portanto, que o
Acordo de Minsk 2 (12 de Fevereiro de 2015) não substituía os Acordos de
Minsk 1 (5 e 19 de Setembro de 2014), mas que apenas a eles se
acrescentava. Assim, exigiram que a Rússia retirasse as tropas que tinha
colocado, sem uniforme, no Donbass. A Alemanha e a França fizeram juntar
uma declaração conjunta, co-assinada pela Rússia, garantindo a aplicação
« obrigatória » deste conjunto de «compromissos».

Ora, pouco tempo depois, o Presidente Poroshenko declarou que não tinha
intenção de aplicar fosse o que fosse e relançou as hostilidades; uma
posição que o Governo do Presidente Zelensky reiterou. Durante os 7 anos
que se seguiram à Resolução 2202, foram mortas 12. 000 pessoas, segundo
Kiev, ou 20. 000, segundo Moscovo.

Durante este período, Moscovo não interveio. O Presidente Vladimir Putin
não somente retirou as suas tropas, mas proibiu um oligarca de enviar
mercenários para apoiar as populações do Donbass. Estas acharam-se
abandonadas pelos garantes dos Acordos de Minsk e pelos outros membros
do Conselho de Segurança.

No modo de funcionamento político russo, espera-se estar pronto a
concretizar algo para então o anunciar. Moscovo, portanto, nada disse,
mas preparou o seguimento. Sofrendo sanções, que experimenta desde a
união da Crimeia, esperava que os Ocidentais as aumentassem assim que
interviesse para aplicar a Resolução 2202. Realizou pois contactos com
outros Estados também sob sanções, nomeadamente com o Irão, para
contornar as que a atingiam e se preparar para contornar outras. Todos
os que visitam regularmente a Rússia constataram que a Administração
Putin desenvolvia uma auto-suficiência alimentar, inclusive para a carne
e os queijos, dos quais o país estava até aí desprovido. A Rússia
aproximou-se da China em matéria bancária, o que interpretamos
erradamente como uma iniciativa contra o dólar. Tratava-se, na
realidade, de se preparar para uma exclusão do sistema SWIFT.

Quando o Presidente Putin lançou o seu Exército na Ucrânia, deixou bem
claro que não estava a declarar uma « guerra » visando anexar a Ucrânia,
mas que punha em prática uma « operação militar especial » em virtude da
Resolução 2202 e da sua « responsabilidade em proteger » as populações
civis do Donbass.

Tal como previsto, os Ocidentais reagiram com sanções económicas que
perturbaram gravemente a economia russa durante dois meses. Depois as
coisas inverteram-se e essas sanções mostraram-se proveitosas para a
Rússia, que se havia longamente preparado para elas.

Na prática, os Ocidentais fizeram chegar uma enorme quantidade de armas
ao terreno, depois colocaram conselheiros militares e algumas forças
especiais. O Exército russo, três vezes inferior em número ao Exército
ucraniano, começou a penar. Por isso, acaba de decretar uma “mobilização
parcial” para enviar novas tropas sem ter que desguarnecer o seu sistema
de defesa nacional.

A OTAN, por seu lado, elaborou um mecanismo visando mobilizar um grupo
central de Estados e um grupo alargado de seus aliados mais distantes.
Trata-se de fazer recair o esforço financeiro sobre o mais vasto número
de parceiros até ao esgotamento da Rússia.

Moscovo respondeu anunciando que se os Ocidentais dessem um passo
suplementar, usaria as suas novas armas.

Os Exércitos russo e chinês manejam os lançadores hipersónicos, do que
os Ocidentais estão desprovidos. Moscovo e Pequim podem destruir seja
qual for o objectivo, não importando o lugar do mundo, em alguns
minutos. É impossível impedi-los e este desequilíbrio durará no mínimo
até 2030, segundo os generais norte-americanos. A Rússia disse já que
atacaria prioritariamente o Ministério britânico dos Negócios
Estrangeiros (Relações Exteriores-br) que ela considera como a cabeça
pensante dos seus inimigos, e o Pentágono, que ela considera como o
braço armado. No caso de atacarem, os Exércitos russo e chinês
destruiriam previamente os satélites de comunicação estratégica dos
Estados Unidos (CS3). Estes perderiam em poucas horas a capacidade de
guiar mísseis nucleares e, portanto, de retaliar. O resultado de tal
guerra oferece poucas dúvidas.

Quando a Rússia evoca a utilização das suas armas nucleares para atacar,
ela não fala de bombas atómicas estratégicas como os Estados Unidos
utilizaram em Hiroshima e Nagasaki, mas de armas tácticas para destruir
pequenos alvos determinados (Whitehall ou o Pentágono). As
grandiloquentes declarações do Presidente Biden sobre o risco que ela
faria o mundo correr são, portanto, nulas e sem efeito.

Envolver-se num tal confronto não é impossível. Nos Estados Unidos, os
Straussianos, um grupúsculo de políticos não eleitos, estão determinados
em provocar o apocalipse. Segundo eles, os Estados Unidos já não poderão
exercer mais domínio sobre todo o mundo, mas ainda podem consegui-lo
usando seus aliados. Para isso, não devem hesitar em sacrificar uma
parte dos seus, se os seus aliados sofrerem ainda mais do que eles e se,
dessa forma, continuarem a ser os primeiros (não os melhores).

Como em todos os conflitos, os povos têm medo e alguns indivíduos
empurram-nos para a guerra.

A Rússia acaba de organizar quatro referendos de autodeterminação e de
união, ao mesmo tempo nas duas Repúblicas do Donbass e nos dois
“oblasts” da Novorossiya. O ponto de vista do G7, cujos Ministros dos
Negócios Estrangeiros participavam na Assembleia Geral da ONU em Nova
Iorque, foi de denunciar imediatamente referendos inválidos porque se
realizam em situação de guerra, o que é uma opinião discutível.
Prosseguiram, pois, denunciando uma violação da soberania e da
integridade territorial da Ucrânia e dos princípios da Carta das Nações
Unidas. Ora, estes últimos pontos são falsos. Por definição, o direito
dos Povos à autodeterminação não contraria a soberania e a integridade
territorial do Estado do qual eles podem, se o desejam, separar-se. Além
disso, todos os membros do G7 (excepto o Japão) assinaram o Acto Final
de Helsínquia, pelo qual se comprometem a defender simultaneamente todos
esses princípios.

É particularmente odioso constatar a maneira como o G7 interpreta o
Direito a seu favor, e particularmente o dos Povos à autodeterminação. A
título de exemplo, a Assembleia Geral das Nações Unidas condenou a
ocupação ilegal pelo Reino Unido do arquipélago de Chagos. Ela ordenou
que fosse restituído às ilhas Maurícias o mais tardar em 22 de Outubro
de 2019. Não somente isso não foi feito, como uma das ilhas de Chagos,
Diego Garcia, continua arrendada ilegalmente aos Estados Unidos para
abrigar a maior base militar do Oceano Índico. Ou ainda, a França
transformou ilegalmente a sua colónia de Mayotte num departamento, em
2009. Montou um referendo em violação das Resoluções 3291, 3385 e 31/4
da Assembleia Geral que afirmam a unidade das Comores e proíbem que
referendos sejam realizados quer numa, ou noutra, de suas partes apenas,
o Estado das Comores e a colónia francesa de Mayotte. Foi precisamente
para escapar à descolonização que a França organizou este referendo,
sendo sabido que aí instalara uma base militar marítima e sobretudo uma
base militar de intercepção e Inteligência.

De um ponto de vista russo, estes referendos, se fossem
internacionalmente reconhecidos, poriam fim às operações militares. Ao
recusá-los, o Ocidente faz durar o conflito. A intenção deles é ver cair
o resto da Novorossiya nas mãos da Rússia. Ora, se Odessa se tornar
russa de novo, Moscovo terá também que aceitar a adesão da Transnístria
que ficará assim contígua à Federação da Rússia. No entanto, a
Transnístria não é ucraniana, mas sim moldava, daí o seu actual nome de
República Moldava do Dniester.

A Rússia recusa-se a acolher um território moldavo que tem, é certo,
razões históricas para se proclamar independente. Mas ela não aceitou
isso, de forma alguma, com a Ossétia do Sul e a Abecásia, as quais têm
igualmente razões históricas para se proclamarem independentes, mas são
georgianas. Nem a Moldávia, nem a Geórgia cometeram crimes comparáveis
aos da Ucrânia moderna.

Chegados ao final desta exposição, constatamos que os erros são
partilhados, mas não de forma equitativa. Os Ocidentais reconheceram o
Golpe de Estado de 2014; eles tentaram parar o massacre que se seguiu,
mas finalmente deixaram os nacionalistas integralistas continuá-lo ;
eles armaram a Ucrânia em vez de a obrigar a respeitar os Acordos de
Minsk 1 e 2. A Rússia, por sua vez, construiu sem concertação uma ponte
que fecha o Mar de Azov. A paz só será preservada se ambos os campos
reconhecerem os seus erros.

Ser-se-á capaz disso ?

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Se desejarem estar à altura de pensar fora dos termos belicosos da
Agência France Presse, da Associated Press e da Thomson-Reuters, não se
limitem aos grandes média (mídia-br) que delas fazem suas fontes
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Em
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https://www.voltairenet.org/article218094.html
27/9/2022

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