quinta-feira, 16 de março de 2023

O Médio-Oriente liberta-se do Ocidente, Thierry Meyssan

 
 
Thierry Meyssan, Rede Voltaire

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É um acontecimento capital cuja importância não é percebida fora do
Médio-Oriente : a Arábia Saudita e o Irão se reconciliaram... na China.
Três assinaturas na parte inferior de um documento que baralham todas as
cartas desta região.

Desde o século XIX, o Mundo árabe viu.se dominado primeiro pelo Reino
Unido e pela França sobre as ruínas do Império Otomano, depois pelos
Estados Unidos. Estas potências trouxeram tanto a liberdade como a
opressão. O Reino Unido salientou-se a dividir os actores da região,
manipulando-os uns contra os outros de forma a explorar as riquezas da
região implicando-se militarmente o menos possível. A França,
entretanto, dividiu-se entre os colonizadores da pior espécie e os
“descolonizadores” esclarecidos. Os Estados Unidos sempre tiveram uma
visão imperial da região, à excepção de alguns anos no fim da Segunda
Guerra Mundial em que apoiaram os nacionalistas.

Este período acaba de terminar com a chegada da China. Como sempre, esta
durante longo tempo observou e depois lentamente agiu, com uma
perseverança sem falha.

Estes acordos foram precedidos por longas negociações levadas a cabo
primeiro no Iraque e depois em Omã. O Iraque tem uma população muçulmana
composta por um terço de sunitas e dois terços de xiitas. Durante a
guerra contra o Irão, os xiitas iraquianos lutaram incansavelmente
contra os xiitas iranianos. Hoje, o líder xiita Muqtada al-Sadr acabou
por ir a Riade para mostrar aos seus compatriotas sunitas que não está
enfeudado ao Irão. O Iraque, mais do que ninguém, necessita dessa paz
para sobreviver. Omã, pelo contrário, não é propriamente falando nem
xiita, nem sunita. O Sultanato diz-se de uma terceira corrente, o
ibadismo. Ele pode, pois, legitimamente reivindicar uma posição de
mediador entre sunitas e xiitas.

Durante a sua viagem a Riade, em Dezembro de 2022, o Presidente chinês,
Xi Jinping, não procurou elogiar os seus interlocutores para obter deles
preços preferenciais de petróleo. Pelo contrário, ele gentilmente chamou
os bois pelo nome : enquanto a região fosse palco de confrontos
incessantes, não seria possível construir aí as Rotas da Seda e
desenvolver o comércio. Tampouco procurou defender os interesses mal
compreendidos dos seus aliados iranianos. Enquanto estes reivindicam as
ilhotas no Golfo Pérsico e no Estreito de Ormuz, a Pequena e a Grande
Tunb, bem como Abu Musa, o Presidente Xi expressou o seu apoio aos
Emirados Árabes Unidos no comunicado conjunto que assinou com o Conselho
de Cooperação do Golfo [1 <#nb1>]. Foi esta autoridade que lhe permitiu
garantir que velaria para que o Irão nunca se dotasse da Bomba Atómica.
Os Chineses são aliados do Irão desde há milénios. Estátuas chinesas são
visíveis na antiga cidade de Persépolis e na antiga Rota da Seda, não se
falava mandarim, mas sim o farsi (persa). Pequim, que participou nas
negociações 4+1 sobre a energia nuclear iraniana, sabe, com certeza, que
as acusações ocidentais sobre as ambições nucleares iranianas são falsas.

Todos, neste momento, puderam constatar que Pequim não se posicionava
segundo os seus interesses ou os dos seus aliados, mas de acordo com os
seus princípios. A China emergiu como um parceiro fiável, ou pelo menos
mais confiável do que os Ocidentais.

Há um certo orgulho da China em reconciliar os muçulmanos uns com os
outros, quando os Ocidentais a acusam de martirizar a sua minoria
muçulmana do Xinjang, indo ao ponto de afirmar que ela aprisiona 1,5
milhões de Uígures. No entanto, tal como o Presidente Xi lembrou na
semana passada, perante o seu Parlamento, cerca de 150 milhões de
turistas puderam circular livremente pelo país e constatar que nele o
Islão é uma religião praticada como as outras e que não há
infraestruturas permitindo aprisionar tanta gente.

No fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos assinaram o Pacto do
USS Quincy com o rei Ibn Saud, fundador do Estado que leva seu nome, a
Arábia Saudita. Este documento, cujo texto exacto jamais foi publicado,
garantia a Washington receber petróleo saudita para os seus exércitos
(não para a sua economia civil) em troca do compromisso em proteger a
dinastia dos Saud. Ele foi renovado em 2005, pelo Presidente George W. Bush.

Posteriormente, os Ocidentais, seguindo o Presidente norte-americano,
Jimmy Carter, consideraram que o acesso ao petróleo do Médio-Oriente era
uma questão relevante, não da soberania dos Estados produtores, mas da
sua « Segurança Nacional » [2 <#nb2>]. O que implicava que os árabes e
os persas deveriam se submeter a uma presença militar estrangeira. Para
o conseguir, Washington instaurou, em 1983, um comando regional, o
CentCom, e abriu inúmeras bases militares na região. O « vice-rei »
regional, segundo a expressão em vigor no Pentágono, poderia destruir
qualquer Estado que recusasse vender-lhe os seus hidrocarbonetos. Além
disso, os árabes e os persas não se opuseram uma vez que também os
Estados Unidos pagavam melhor do que os Britânicos e os Franceses.

*O General Michael Kurilla, Comandante do Central Command (CentCom),
dito « vice-rei » do Médio-Oriente Alargado. Participou pessoalmente na
invasão norte-americana do Iraque, do Afeganistão e da Síria. A partir
da Florida, ele dirige dezenas de milhar de soldados, a mais de 10. 000
quilómetros do seu tranquilo gabinete, que matam pela manutenção do «
Império americano », do Egipto ao Quirguistão . *

Desde o início, esta dominação significou a desgraça das populações.
Decepcionada pela obstinação anti-imperialista do Aiatola Ruhollah
Khomeini, que havia ajudado a derrubar o Xá Reza Pahlevi, Washington
empurrou um dos seus agentes, o Presidente Saddam Hussein, para lançar
uma guerra contra o Irão. Durante oito anos (1980-88), os Ocidentais,
apoiando ambos os campos ao mesmo tempo, sangraram-nos num milhão de vidas.

Em 1987, violentos confrontos opõem peregrinos iranianos à polícia
saudita em Meca. Assim, o Irão rompe uma primeira vez as suas relações
diplomáticas, até 1991.

Não se tratava à época, para Washington, de opor os sunitas aos xiitas,
mas os árabes aos persas. Desaparecida a URSS, o Pentágono montou a
guerra da Bósnia-Herzegovina (1992-95), um Estado muçulmano europeu.
Tratava-se para os estrategas dos EUA de testar a possibilidade de
particionar um país (a Jugoslávia) e de mobilizar os seus aliados contra
as populações de cultura russa (os Sérvios, os Montenegrinos e os
Macedónios). Eles confiaram a organização das tropas muçulmanas a um
outro dos seus agentes, Osama bin Laden, que se tornou Conselheiro
militar do Presidente Alija Izetbegović. Ele coordenou no campo de
batalha as Forças de projecção sauditas e os Guardiões da Revolução
iranianos [3 <#nb3>].

Os personagens que fazem a História raramente são motivados por
subtilezas teológicas. Eles defendem aquilo que pensam ser os interesses
do seu povo. O facto de, durante três anos, as Forças armadas sauditas e
iranianas se terem batido, não uma contra a outra, mas lado a lado, não
impede que os seus teólogos se continuem a invectivar. É preciso
distinguir a política do papel dos clérigos. Não falo aqui de religiões,
mas de clérigos, e de não os sobrestimar-mos.

Em 2011, quando o Foreign Office (Ministério dos Negócios Estrangeiros
inglês -ndT) lança a Operação das chamadas “Primaveras Árabes, no modelo
da « Grande Revolta Árabe » de 1916-1918 (a de Lawrence da Arábia),
trata-se para Londres de derrubar os governos sobre os quais não exerce
influência, mas, entretanto, os povos tentam verdadeiramente libertar-se
e as revoltas espalham-se por todo o lado, mais do que previsto. Entre
os revolucionários, vários seguem o exemplo do Imã Khomeini. Uma
revolução eclode no Barém, onde o povo, maioritariamente xiita, tenta
derrubar a família reinante, sunita. Assustada, a Arábia Saudita envia
os seus tanques e sufoca a rebelião. O Irão apoia os revolucionários
xiitas face aos tanques sauditas. É nesse momento, e não antes no que
respeita à história recente, que o Próximo-Oriente se cinde entre
sunitas e xiitas.

Esta divisão irá aprofundar-se cada vez mais durante toda a guerra da
Síria. Os Ocidentais apoiam a Confraria dos Irmãos Muçulmanos com o
Pentágono tentando destruir tudo e espalhar o caos geral (doutrina
Rumsfeld/Cebrowski), enquanto o Eixo da Resistência (em volta do Irão)
lhe resiste.

No entanto, duas coisas atrapalham o plano :
– De um lado a aliança entre Síria e Irão, que não tem qualquer relação
com os acontecimentos. Ela data da época em que o Xá do Irão se via como
o gendarme da região. Os Estados Unidos pediram-lhe para se aliar com a
Síria (que não era ainda baathista) a fim de contrabalançar Israel. –
Por outro, a partir de 2015, quando a Síria começou a enfraquecer e o
Irão já não tinha meios suficientes para a ajudar, a Rússia interveio
militarmente para apoiar a República árabe Síria contra os jiadistas.



Entretanto, os acontecimentos aceleram. Uma novo tumulto ocorre, em
2015, durante a peregrinação a Meca, matando, entre outros, Iranianos
sem que a polícia saudita intervenha. No Iémene, o Irão apoia os
Partidários de Deus (Ansarallah) contra os Sauditas que tentam controlar
o país, juntos com Israel, para explorar as suas riquezas
petrolíferas [4 <#nb4>]. Finalmente, em 2016, Riade executa o líder da
sua oposição interna, o Xeque xiita Nimr al-Nimr, ao mesmo tempo que
vários jiadistas [5 <#nb5>]. O Irão reage a esta provocação e põe fim às
suas relações diplomáticas com a Arábia Saudita.

Desde há 7 anos, o Médio-Oriente Médio está paralisado. Nenhum conflito
pode resolver-se já que ele sempre opõe as duas faces do Islão. Era
precisamente o que os Ocidentais queriam e que Israel sempre encorajou.
Não é, pois, de espantar que as únicas personalidades que se mostraram
indignadas com a paz saudita-iraniana sejam Israelitas.

O acordo que acaba de ser assinado foi negociado pela China na base da
na não-ingerência nos assuntos internos. Os Iranianos poderiam temer que
os xiitas sauditas pagassem os custos disso, como há seis anos o Xeque
Nimr al-Nimr. Mas Teerão compreendeu que os tempos mudaram. Riade
respeitará a sua minoria xiita, já que também tem interesse na paz. O
que não impede que os preconceitos discriminatórios dos sunitas sauditas
permaneçam longo tempo enraizados nos seus comportamentos.

A concepção de relações internacionais que Pequim e Moscovo promovem são
baseadas no respeito mútuo e de forma alguma no confronto. À divisão e
às guerras ocidentais, eles opõem os intercâmbios, o comércio e a
colaboração.

Em
REDE VOLTAIRE
https://www.voltairenet.org/article219013.html
14/3/2023

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