domingo, 2 de abril de 2023

Socializar o laboratório

 
 


    Calvin Wu [*]



*A palavra laboratório evoca uma imagem de modernidade – que testemunha
a engenhosidade e diligência humanas em dobrar a natureza e fazer
descobertas transformadoras. No entanto, essa imagem também está envolta
em mistério. Apesar de o conhecimento produzido em laboratório resultar
em consequências históricas de longo alcance, muito permanece
inexplorado sobre como os laboratórios e a sociedade se formaram.*

Essa desconexão entre o laboratório e a sociedade é desconcertante.
Mesmo com o crescente fascínio pelo laboratório como uma curiosidade
sociológica na década de 1970 (que terminou abruptamente na década de
1990) e o seu reconhecimento como um local proeminente de conhecimento e
poder, ainda não possuímos um relato histórico coerente do laboratório.
[1] <#notas_1_10>

Este artigo oferece uma história crítica do laboratório, elucidando a
dialética entre o desenvolvimento da ciência do laboratório e as
mudanças socioeconômicas maiores, ou seja, o capitalismo, dirigido e
impulsionado pela formação e evolução do laboratório. Esta análise do
tema pode revelar por que não se divulga a historiografia de
laboratório. Por fim, essa imersão crítica é utilizada para examinar o
funcionamento interno dos laboratórios de hoje da perspectiva dos seus
trabalhadores e então apresentar ações concretas para levar o futuro dos
laboratórios e da sociedade para as mãos daqueles cujo trabalho produz
conhecimento e riqueza.

*Quando a alquimia governou o mundo*

A história da ciência moderna, seguindo a narrativa hegemônica do
Ocidente, começou com Copérnico.[2] <#notas_1_10> Consequentemente, o
primeiro laboratório foi provavelmente fruto da imaginação do sucessor
de Copérnico, Tycho Brahe, no final do século XVI. Um aristocrata, Brahe
construiu seu laboratório – mais precisamente, muitos servos de Brahe
construíram o laboratório – em uma propriedade insular na costa da
Dinamarca, onde um castelo de três andares continha um observatório de
astronomia no último andar, um estúdio no meio e um laboratório de
alquimia na parte inferior.[3] <#notas_1_10> Se a astronomia forneceu o
know-how técnico para a coroa dinamarquesa saquear colônias ultramarinas
na Islândia e nas Ilhas Faroe, a alquimia prometia produzir diretamente
a riqueza (ouro e prata) por meio de práticas empíricas.[4] <#notas_1_10>

Sem muita surpresa, a transmutação de metal nunca funcionou, mas a
alquimia estabeleceu a base para indústrias inteiras baseadas na síntese
de materiais: ácidos, corantes, perfumes, pólvora e metalurgia.[5]
<#notas_1_10> A alquimia foi legitimada em ciência da química no século
XVII. Ao contrário da narrativa popular, não foi a lei do gás ideal de
Robert Boyle ou suas engenhocas experimentais que deram origem à
química, mas o rápido crescimento da manufatura artesanal,[6]
<#notas_1_10> a comercialização de mercadorias e a crescente dependência
do trabalho produtivo que exigiu a substituição do oculto pelo
científico.[7] <#notas_1_10>

Aqui começamos a ver um padrão recorrente: o desenvolvimento da ciência
está intimamente ligado ao seu pano de fundo histórico. A expansão
colonial na era das descobertas não poderia ter existido sem a
astronomia e a tecnologia marítima, e vice-versa; assim, a origem dos
laboratórios modernos também pode ser rastreada até a grande
transformação socioeconômica em direção ao capitalismo.

*Das oficinas às universidades*

Ao longo do século XVIII, os laboratórios aumentaram de tamanho e
serviram principalmente como local de fabricação de produtos químicos
comerciais.[8] <#notas_1_10> Na Grã-Bretanha, a nascente indústria
têxtil – ela própria um resultado da conquista colonial (isto é, algodão
barato plantado por força de trabalho escravizada) – dependia de
branqueamento químico e da limpeza eficiente no processo de produção.[9]
<#notas_1_10> Os laboratórios nessa época também se dispersaram,
afastando-se das residências privadas dos aristocratas, pela simples
razão de que a química sempre foi perigosa para o trabalho.[10]
<#notas_1_10> A química tornou-se uma ciência quantitativa, à medida que
Antoine Lavoisier conduziu medições cuidadosas e a manutenção de
registros na síntese química. Lavoisier defendeu a padronização (por
exemplo, o sistema métrico) por uma razão: ele agiu em nome de
comerciantes ricos – cujos investimentos abrangendo diferentes setores
de manufatura deram origem à necessidade de precisão e coordenação – e
dele mesmo, como co-proprietário de um grande negócio de pólvora, que
iria mais tarde se tornou DuPont.

O realinhamento político seguiu então essa mudança econômica. A
revolução francesa introduziu a burguesia no centro do palco da
história, cujo interesse de classe baseado na propriedade privada, na
competição e no mercado de trabalho livre confrontou diretamente o modo
anterior de manufatura artesanal.[11] <#notas_11_20> O conflito entre
artesãos e a burguesia foi resolvido por meio dos avanços tecnológicos
durante a revolução industrial do século XIX. Os laboratórios de
manufatura química foram gradativamente substituídos por máquinas e,
assim, desvinculados da experimentação, produção e disseminação do
conhecimento técnico.[12] <#notas_11_20> Para onde, então, foi o
laboratório, onde os conhecimentos teóricos e práticos eram refinados e
ensinados?

*O desenvolvimento da ciência está intimamente ligado ao seu pano de
fundo histórico.*

A resposta, novamente, está na transformação histórica em direção ao
capitalismo e, em particular, no desenvolvimento industrial desigual
entre os Estados-Nações. No início do século XIX, a Alemanha era uma
federação descentralizada de vários pequenos reinos. Isso prejudicava os
fabricantes alemães, pois as infra-estruturas estatais muitas vezes não
conseguiam atender às suas demandas. Para compensar a desunião política,
a sociedade civil se voltou para outras instituições centralizadas:
sociedades profissionais, igrejas e universidades.[13] <#notas_11_20>

O primeiro laboratório universitário nasceu em Geissen em 1824, sob a
direção de Justus von Liebig. A visão inicial de Liebig era transformar
seu laboratório em uma empresa de fabricação de produtos químicos
orgânicos e farmacêuticos em grande escala que monopolizaria a produção.
Sem surpresa, essa iniciativa foi rápida e uniformemente derrubada pela
burguesia alemã. No entanto, Liebig foi o primeiro a estabelecer a
tradição acadêmica de um “laboratório de ensino”, onde bancadas ocupavam
os pontos centrais da sala.[14] <#notas_11_20>

Em apenas meio século, sob a chancelaria de Otto von Bismarck, uma
Alemanha unificada investiu pesadamente em empresas estatais (incluindo
universidades) para acelerar a acumulação de capital. Quando a
comunidade científica alemão ganhou proeminência no final do século XIX
– junto com sua rápida industrialização – a Grã-Bretanha e a França
perceberam o mérito do modelo alemão centralizado e aumentaram seus
próprios investimentos em laboratórios universitários. Consequentemente,
laboratórios em outras áreas científicas também começaram a florescer
nas universidades. Na Alemanha, os laboratórios de anatomia e fisiologia
recebiam os maiores financiamentos, seguidos pelos laboratórios de
química e física. A ascensão dos laboratórios de fisiologia acompanhou o
aumento do foco da Alemanha na saúde pública, enquanto a lacuna entre os
laboratórios de química e física não foi alcançada até a era do
eletromagnetismo.[15] <#notas_11_20>

*Petróleo, guerras e Keynes*

A institucionalização dos laboratórios foi concluída na virada do século
XX. Assim como algumas seções do Estado, os laboratórios também
adquiriram duas funções nascentes. A primeira residia no controle da
qualidade industrial em reação à gestão “científica” da fábrica de
Frederick Taylor. Embora o taylorismo e a aplicação generalizada de
máquinas pesadas aumentassem a produtividade por meio da intensificação
da força de trabalho, isso reduzia drasticamente a qualidade dos
produtos, pois os trabalhadores não podiam mais realizar auditorias
internamente.[16] <#notas_11_20> O declínio da qualidade foi
especialmente acentuado na área de alimentos e produtos químicos, o que
colocava em risco a saúde pública e tornava esses setores menos
competitivos no mercado global. No mesmo ano em que o livro de Upton
Sinclair /“The Jungle”/ foi publicado (1905), trazendo a situação dos
trabalhadores da indústria de carnes à atenção do público, foram criados
laboratórios governamentais para regular a produção industrial por meio
do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos e da Food and Drug
Administration.

Da mesma forma, a rápida industrialização forçou a migração em massa de
trabalhadores do campo para as cidades e produziu uma terrível
desigualdade social. O crime, tanto os pequenos delitos quanto o
organizado, tornou-se um problema de preocupação social no início do
século XX. Edmund Locard, conhecido como o Sherlock Holmes francês,
fundou o primeiro laboratório forense em Lyon em 1910. Sua ideia foi
importada pelos Estados Unidos em 1923 pelo Departamento de Polícia de
Los Angeles. Assim, a ciência do laboratório também desempenhou um papel
fundamental na solidificação do monopólio do Estado sobre a violência.

No primeiro quarto do século XX, os laboratórios ainda eram dominados
pela pesquisa química, pois as inovações no conhecimento químico eram
cruciais para que os barões-ladrões garantissem sua riqueza na era do
petróleo.[17] <#notas_11_20> Interesses privados foram perseguidos em
laboratórios corporativos e universitários com cientistas proeminentes
orbitando entre eles.[18] <#notas_11_20> Dois professores de química da
Universidade de Michigan lideraram todo o programa de pesquisa e
desenvolvimento da Dow Chemical e acumularam mais de 300 patentes para
estabelecer o monopólio da Dow no processo de refinaria. A mesma
porosidade entre laboratórios públicos e privados foi replicada na
Alemanha, quando Carl Bosch, mais tarde ganhador do Prêmio Nobel, fundou
a IG Farben.[19] <#notas_11_20>

Sob a supervisão de estados capitalistas, em competição por colônias
para extração de recursos, trabalho e mercados em uma busca ilimitada de
lucro, tanto a Dow quanto a IG Farben, antes e depois da Primeira Guerra
Mundial, criaram miséria em massa sob a forma de armas químicas, como os
gases venenosos. A cumplicidade dos laboratórios na guerra apenas se
intensificou quando o fascismo derrotou decididamente as revoluções
socialistas em todo o mundo ocidental nas décadas de 1930 e 1940.
Durante esta era cada vez mais perturbada, até mesmo a aparência de uma
luta antifascista – por exemplo, o Projeto Manhattan – apontava para a
destruição da humanidade.[20] <#notas_11_20>

*A expansão do laboratório e o acúmulo de poder e conhecimento, por um
lado, sempre correspondem ao acúmulo de miséria, por outro.*

Os laboratórios no período pós-guerra mantiveram seu caráter
keynesiano-fordista – isto é, altamente centralizados, impulsionados por
iniciativas estatais baseadas em demandas macroeconômicas – e assim
absorverem os capitais excedentes criados durante o rápido crescimento
econômico.[21] <#notas_21_30> A hegemonia militar e financeira
norte-americana, impulsionada pelo avanço tecnológico nos laboratórios,
consagrou os laboratórios como fonte de orgulho nacional a ponto de
competirem com a luta contra a “ameaça do comunista”. Isso, no entanto,
criou uma divisão na mentalidade norte-americana do pós-guerra. Embora
celebrassem as conquistas da ciência moderna ligadas ao nacionalismo e a
melhorias no padrão de vida, os norte-americanos também estavam
extremamente temerosos em relação às tecnologias sendo implantadas por
um “inimigo” onipresente.[22] <#notas_21_30> Além disso, na vida social,
os cientistas também eram uma espécie rara; na década de 1950, menos de
oito mil doutorados eram concedidos por universidades americanas a cada
ano.[23] <#notas_21_30> A maior parte dos cientistas tinha origem na
classe média alta – um grupo isolado que gozava de alto status social e
segurança no emprego por meio do sistema de estabilidade. A combinação
da mentalidade da Guerra Fria e a distinção de classe dos cientistas
efetivamente cobriu os laboratórios com um véu.

Para desmistificar um espaço tão inacessível que gera um conhecimento
indecifrável com consequências sociais, políticas e econômicas de longo
alcance, os sociólogos e antropólogos da década de 1970 buscaram com
fervor estudar o laboratório.[24] <#notas_21_30> Essa busca pode ser
exemplificada na publicação de Bruno Latour’s Laboratory Life (1979).
Latour e outros empregaram abordagens etnográficas principalmente para
descobrir a “natureza da atividade intelectual” e compreender a posição
do laboratório na sociedade.[25] <#notas_21_30> No entanto, sua
abordagem, apresentando os laboratórios “movendo o mundo com a sua
alavanca” falhou em considerar contextos econômicos maiores sob os quais
os laboratórios formaram-se, moldaram-se e reproduziram-se ao longo da
história.[26] <#notas_21_30> Uma abordagem acrítica da historiografia do
laboratório, portanto, permaneceu sem capacidade de compreensão do
laboratório à medida que a ciência e a sociedade mudavam rapidamente
durante a virada neoliberal da economia mundial. O estudo de laboratório
desapareceu após duas décadas sendo assombrado pelo próprio mistério que
eles não conseguiram desvendar.

*Laboratórios neoliberais e ciência proletarizada*

A virada neoliberal na economia mundial durou quase duas décadas,
começando em 1971 e tornando-se totalmente entrincheirada no final dos
anos 1980.[27] <#notas_21_30> Durante essa mudança de paradigma
econômico, os laboratórios desfrutaram de uma expansão sem precedentes.
A desregulamentação financeira permitiu que as empresas privadas
passassem a especular, o que atualizou a sua obsessão por lucros na
produção tecnológica. Isso, por sua vez, exigiu a formação de regimes
rígidos de direitos de propriedade intelectual e da livre circulação de
força de trabalho altamente qualificada através das fronteiras
nacionais. Enquanto a mercantilização estava em pleno vigor, o principal
motor econômico do laboratório era o Estado. Primeiro porque a
infraestrutura de laboratório existente exigia financiamento
governamental contínuo para a produção ininterrupta de conhecimento.
Segundo porque o keynesianismo continuou sendo o modo dominante de
produção e circulação de tecnologias militares. Alguns laboratórios se
metamorfosearam durante a neoliberalização, com a transformação dos
laboratórios militares na atual indústria de alta tecnologia do Vale do
Silício.[28] <#notas_21_30> Outros laboratórios – especialmente da área
de biomedicina – se apoiaram nos crescentes investimentos federais para
pesquisa e desenvolvimento para produzir conhecimento científico, que
mais tarde seria mercantilizado.[29] <#notas_21_30>

Mas, como regra prática capitalista, a expansão do laboratório e o
acúmulo de poder e conhecimento – ou mais especificamente, das
propriedades intelectuais imateriais transformadas em capital monetário
– por um lado, sempre corresponde ao acúmulo de miséria, por outro. Não
discutiremos aqui esse profundo impacto social; em vez disso, a seção
subsequente examinará o aspecto frequentemente negligenciado de como os
neoliberais proletarizaram a ciência e o laboratório.

A proletarização como processo é exemplificada pela luta de classes do
século XIX entre os artesãos e a burguesia. Antes da revolução
industrial, os artesãos protegiam e monopolizavam suas várias
habilidades, passadas de mestres para aprendizes por meio de guildas e
da reprodução social ritualizada.[30] <#notas_21_30>30 Porém, com a
mudança tecnológica e o advento das máquinas, os artesãos foram privados
de seus meios de produção. Forçados a vender sua força de trabalho para
sobreviver, muitos se tornaram trabalhadores expropriados.

Como mostra a historiografia, a ciência moderna tem suas raízes na
tradição artesanal; os laboratórios eram oficinas e os cientistas eram
artesãos com monopólios de habilidade. A proletarização sempre foi uma
tendência desde a institucionalização e privatização dos laboratórios,
mas até agora a proletarização foi impedida de destruir esta “classe
científica” por um século de intervenções estatais. No entanto, sob o
capitalismo, o artesanato deve eventualmente ser eliminado. Sob os olhos
especulativos dos capitalistas, oficinas ou laboratórios são sempre
fábricas em potencial.

Agora, sob a era neoliberal, os laboratórios se parecem cada vez mais
com as fábricas industriais. É de se admirar por que a sociologia do
laboratório deixou de existir? Apenas dois tipos de pessoas se preocupam
com o funcionamento interno das fábricas: de um lado, os proprietários e
gerentes que comandam as fábricas com o único objetivo de lucro; do
outro, nós trabalhadores explorados que buscamos nos libertar do sistema
fabril.

As fábricas, como locais de produção, não são de forma alguma
antitéticas a uma visão igualitária da sociedade, visto que podem ser
necessárias para garantir a subsistência humana. É o modo de produção
capitalista – a relação social entre proprietários, trabalhadores e seu
trabalho – que põe em perigo o “livre desenvolvimento” da
humanidade.[31] <#notas_31_40>

No laboratório, a força sistêmica e alienante do capital que dita a
força de trabalho, vis-à-vis a liberdade intelectual e criativa dos
cientistas, torna-se ainda mais contraditória. A divisão do trabalho
destila as disciplinas acadêmicas em centenas de pequenas áreas de
estudo; a polinização cruzada e a interação permanecem raras mesmo com o
avanço das disciplinas. Novos hardwares e softwares de pesquisa são
atualizados com frequência. No entanto, o objetivo não é melhorar o
rigor científico, mas sim acelerar a geração de resultados para a sua
mercantilização subsequente, eliminar pessoal altamente treinado por
técnicos com níveis básicos de baixos custos em conjunto com
dispositivos que economizam trabalho e assim acumular poder financeiro
por meio do monopólio tecnológico.

Sem situar a ciência e as práticas de laboratório dentro do processo
histórico do capitalismo, a desconexão entre a ciência e a sociedade não
pode ser resolvida, e os especialistas por trás do véu continuarão a se
perguntar por que a população em geral “não confia nas autoridades
científicas”.

O conhecimento científico pode ser objetivo da forma como é praticado
atualmente, sob um sistema coercitivo movido exclusivamente pelo lucro?
Deveria ser um mistério que os mecanismos internos idealizados pela
ciência, tais como a quantificação, a falseabilidade e revisão por
pares, falhem com tanta frequência e de forma tão espetacular?[32]
<#notas_31_40> Sem situar a ciência e as práticas dos laboratórios
dentro do processo histórico do capitalismo, a desconexão entre a
ciência e a sociedade não podem ser resolvidas, e os especialistas por
trás do véu continuarão a se perguntar por que a população em geral “não
confia nas autoridades científicas”.[33] <#notas_31_40>

E o que acontece com os cientistas proletários? Por um lado, os
cientistas não desfrutam mais da segurança no emprego que os distinguia
das outras profissões no passado. Em 1970, mais da metade dos cientistas
acadêmicos tinha estabilidade; hoje, é menos de um oitavo.[34]
<#notas_31_40> Com o setor privado em constante expansão, os
laboratórios universitários tornaram-se locais de treinamento para o
trabalho.[35] <#notas_31_40> Em 1980, cada “mestre artesão” treinava em
média dois “aprendizes, PhD” em um laboratório biomédico; hoje, o número
de aprendizes aumentou para mais de seis.[36] <#notas_31_40> Os
laboratórios também centralizaram a acumulação de capital; ainda de
acordo com os exemplos da área de biomedicina, a sua maior agência de
financiamento, o National Institutes of Health, faz doações fortemente
direcionadas a instituições de elite e laboratórios já bem
financiados.[37] <#notas_31_40> Isso significa que, mesmo que um
aprendiz se torne um mestre, as chances apontam para que ele não seja
capaz de competir com o oligopólio acadêmico entrincheirado.

Agora, alienados de seus meios de produção, os cientistas devem vender
sua força de trabalho como proletários – se tiverem a sorte de seu
“mérito” ser considerado – para trabalharem para a Novo Nordisk, a
Pfizer ou AstraZeneca. Os cientistas proletários devem ainda arcar com
um treinamento prolongado, condições de trabalho deterioradas e dívidas
estudantis.[38] <#notas_31_40> Eles são colocados uns contra os outros
pela sobrevivência no mercado de trabalho globalizado – adornado com a
narrativa de liberdade e oportunidades iguais. Eles são desenraizados de
todo o mundo, lutando contra o fardo mental e físico do racismo e do
sexismo, de laboratório em laboratório, diariamente.[39] <#notas_31_40>

*O local de trabalho, reimaginado*

Mais uma vez, é hora de contemplar o significado de lab – labor atório,
o local do labor, onde o conhecimento científico é produzido por meio do
trabalho do cientista – aquele que trata intimamente de compreender,
interagir e transformar a natureza para atender às necessidades humanas.

O capitalismo deu origem ao laboratório moderno, transformando-o de um
espaço de diversão aristocrática em um elemento indispensável do poder
de classe por meio da institucionalização, mistificação, mercantilização
e, acima de tudo, da luta de classes. Tal como estamos hoje, a riqueza
material produzida coletivamente no laboratório é expropriada pela elite
governante. Então, a questão agora deveria ser: como recuperamos o
laboratório?

É sempre difícil traçar o caminho para um futuro indeterminado. Poucas
coisas são certas: não devemos mais nos ver como jalecos brancos
apáticos, mas entre as massas populares. Temos servido para perpetuar a
opressão de classe através da produção de conhecimento e tecnologia para
a burguesia; somos artesãos sendo destituídos de uma ordem econômica
global em mudança; nos tornamos proletários, com o nosso destino ligado
a todos os trabalhadores do mundo; e nós, junto com as massas
trabalhadoras do mundo, somos os únicos agentes de mudança social que
podem emancipar a ciência do domínio do capital, tanto dentro quanto
fora do laboratório. O antigo protocolo, “educar, agitar, organizar”,
ainda se aplica.[40] <#notas_31_40>

*Esta análise crítica da história e do presente do laboratório leva a um
futuro lógico – socializar o laboratório, nosso trabalho e os meios de
produção de conhecimento.*

_Para educar_. Os cientistas costumam pensar em si mesmos como
educadores do público, mas, na verdade, somos nós que precisamos
urgentemente de mais educação sobre os contextos sociais, políticos e
econômicos nos quais nosso trabalho se desenvolve. Os cientistas devem
se unir com organizações comunitárias e movimentos sociais radicais para
definir conjuntamente o que constitui as necessidades sociais e quais
pesquisas devem ser priorizadas. Devemos resistir ao isolamento das
ciências naturais e sociais; facilitando o treinamento, comunicação e
colaboração para confrontar a cumplicidade histórica de disciplinas
acadêmicas específicas na opressão de classe. Enquanto isso, devemos
criar locais alternativos de produção de conhecimento além dos
laboratórios institucionalizados – a ciência não trata apenas de
maquinários complexos; muito pode ser feito de maneira descentralizada
pelas mentes infinitamente criativas das próprias pessoas.

_Para agitar_. A maioria dos cientistas ainda desfruta de relativamente
mais riqueza material e liberdade de pensamento do que outras categorias
de trabalhadores. A insularidade do laboratório, bem como a autonomia
dos cientistas dentro dele, podem transformar o laboratório em um espaço
para cientistas revolucionários se envolverem em rupturas e testarem os
limites dos sistemas estabelecidos. Ao lado de colegas e parceiros da
comunidade, podemos desenvolver a consciência de classe uns dos outros e
filtrar a ideologia burguesa de nossa visão de mundo, investindo em
nossa própria educação política e treinamento como cientistas ativistas.
Podemos usar nossos métodos analíticos para impulsionar os movimentos e
agitar o público para uma maior organização. Isso vira o laboratório de
pernas para o ar, de um local de treinamento para empregos e acumulação
de capital para um canal de radicalização.

_Para organizar_. Antes que qualquer uma das transformações acima possa
ocorrer, devemos primeiro capturar o poder de decisão, seja por meio da
sindicalização ou do estabelecimento de cooperativas de pesquisa.
Juntos, cientistas e outros trabalhadores de laboratórios, incluindo
toda a equipe de apoio, devem participar democraticamente das operações
diárias do laboratório: a quais projetos dedicamos nossa força de
trabalho e como delegamos e remuneramos o trabalho. Além disso, devemos
mais uma vez reconhecer os fatos simples de que o laboratório não existe
fora da sociedade e que a ciência acontece tanto fora do laboratório
como dentro dele. A implicação social do conhecimento gerado no
laboratório necessariamente nos situa nos movimentos sociais; por
exemplo, ao estudar os efeitos prejudiciais ao meio ambiente e à saúde
da mineração de urânio, os cientistas devem participar de campanhas de
desnuclearização.

Esta análise crítica da história e do presente do laboratório leva a um
futuro lógico – socializar o laboratório, nosso trabalho e os meios de
produção de conhecimento. Embora os projetos e lutas descritos acima
possam parecer assustadores, mudar a sociedade nada mais é do que um
projeto científico colaborativo. As ferramentas para a construção de um
futuro humano já estão presentes entre nós nas estruturas da ciência
aberta, cooperativas, sindicatos e espaços dos movimentos. Este é o
futuro que desejamos e este é o futuro que devemos construir.

Referências
[1] Robert E. Kohler, “Lab History: Reflections,” Isis; an International
Review Devoted to the History of Science and Its Cultural Influences 99,
no. 4 (December 1, 2008): 761–68, https://doi.org/10.1086/595769; Peter
J. T. Morris, The Matter Factory: A History of the Chemistry Laboratory
(Reaktion Books, 2015).
[2] Thomas S. Kuhn, The Copernican Revolution: Planetary Astronomy in
the Development of Western Thought (Harvard University Press, 1957).
[3] “Tycho Brahe, Laboratory Design, and the Aim of Science: Reading
Plans in Context,” Isis; an International Review Devoted to the History
of Science and Its Cultural Influences 84, no. 2 (June 1, 1993): 211–30,
https://www.jstor.org/stable/236232.
[4] David Berreby, “How Alchemy Led to the Modern Economy,” Big Think,
March 14, 2012,
https://bigthink.com/Mind-Matters/how-alchemy-led-to-the-modern-economy.
[5] Os cientistas de hoje muitas vezes zombam do grande teórico do
Iluminismo Isaac Newton por sua obsessão com a alquimia como Rei da Casa
da Moeda, mas eles falham em considerar que o papel primordial de Newton
era salvaguardar o impacto econômico real da alquimia, apesar de suas
fachadas arcaicas e secretas. A natureza secreta da alquimia, além
disso, solidificou o poder da aristocracia usando a tecnologia.
[6] A manufatura aqui se refere à produção de mercadorias em pequena
escala antes da revolução industrial, distinta da produção de máquinas e
fábricas da era subsequente.
[7] Ursula Klein and E. C. Spary, Materials and Expertise in Early
Modern Europe: Between Market and Laboratory (University of Chicago
Press, 2010).
[8] C. M. Jackson, “The Laboratory,” A Companion to the History of
Science, 2016, https://doi.org/10.1002/9781118620762.ch21.
[9] Klaus H. Wolff, “Textile Bleaching and the Birth of the Chemical
Industry,” Business History Review 48, no. 2 (1974): 143–63,
https://doi.org/10.2307/3112839.
[10] Morris, The Matter Factory.
[11] Eu sigo a definição marxista de burguesia. Traduzido do francês
como “moradores da cidade”, essa nova classe de mercadores,
proprietários de terras, advogados e banqueiros que constituíam a classe
intermediária da sociedade francesa do século 19, entre aristocratas no
topo e trabalhadores sem propriedade na base. Na sociedade de hoje, a
burguesia é a classe dominante: ela não tem mais nada de intermediária.
[12] Robert Fox and Anna Guagnini, “Laboratories, Workshops, and Sites.
Concepts and Practices of Research in Industrial Europe, 1800-1914
(Concluded),” Historical Studies in the Physical and Biological
Sciences: HSPS / Office of History of Science and Technology, University
of California, Berkeley 29, no. 2 (1999): 191–294,
https://doi.org/10.2307/27757811.
[13] Jurgen Kocka, “Capitalism and Bureaucracy in German
Industrialization before 1914,” The Economic History Review 34, no. 3
(1981): 453–68, https://www.jstor.org/stable/2595883.
[14] F. L. Holmes, “The Complementarity of Teaching and Research in
Liebig’s Laboratory,” Osiris 5 (1989): 121–64,
https://doi.org/10.1086/368685.
[15] Para garantir a competitividade e as proezas industriais da
Alemanha, Bismarck exerceu forte intervenção estatal na economia. Um
protótipo de programas modernos de bem-estar universal não apenas
suprimiu o descontentamento dos trabalhadores, mas também forneceu uma
oferta de trabalho saudável e educada para os industriais alemães.
[16] J. F. Buckman, “Quality Is Not Optional,” Transfusion, October
1994, https://doi.org/10.1046/j.1537-2995.1994.341095026967.x.
[17] Concentro-me aqui em laboratórios de química por causa do domínio
das indústrias químicas. Os laboratórios de outras disciplinas
científicas, como física e fisiologia, ainda não produziam conhecimento
comercializável à época.
[18] Charles F. Chandler, químico proeminente da Universidade de
Columbia e fundador da American Chemical Society, era um consultor muito
bem pago da Standard Oil.
[19] IG Farben foi acusada de crimes de guerra em Nuremberg em 1947
produzir o gás Zyklon B, utilizado nas câmaras de gás durante o
Holocausto, assim como por empregar trabalho escravo dos campos de
concentração. Treze executivos foram condenados com sentenças perpétuas
na cadeia; entretanto, nenhum deles cumpriu mais do que três anos e em
1951 todos já estavam soltos. Estes mesmos capitalistas tomaram controle
da BASF e da Bayer, remanescentes da dissolvida IG Farben, na
reconstrução da Alemanha Ocidental.
[20] Aqui utilizo o termo “anti-fascista” em referência ao sentimento
político comumente cientistas que participaram do Projeto Manhattan.
Muitos deles entendiam e acreditavam que o mundo estava de fato entrando
em uma era atômica, e, portanto, devotaram seus trabalhos para prevenir
que regimes fascistas declarados explorassem este conhecimento. No
entanto, para além da intenção de derrotar o fascismo, o desenvolvimento
de armas de destruição em massa no fim das contas deu origem a tragédia
do Império Norte-Americano.
[21] A era econômica de 1945-1973 é representada pela teoria e prática
de duas figuras proeminentes: o economista John Maynard Keynes e o
industrial Henry Ford. Keynes forneceu uma estrutura teórica para
entender a crise após a Grande Depressão de 1929 como caracterizada pela
demanda / superprodução insuficiente, defendendo assim o papel do estado
de intervir na gestão da demanda efetiva no ponto de consumo excedente.
Ford defendeu a criação de demanda em massa como um componente
necessário para a produção em massa (de automóveis); como tal, a empresa
Ford não apenas aumentou os salários dos trabalhadores, mas também
investiu pesadamente em instituições sociais para moldar os hábitos de
consumo dos trabalhadores como uma forma de fechar o ciclo da produção
industrial. No contexto do laboratório, o fordismo-keynesianismo molda
tanto as entradas (financiamento do governo) quanto a produção
(resultados de pesquisas que servem a iniciativas dirigidas pelo
Estado). Os laboratórios keynesianos também têm a função de absorver o
capital excedente na formação de capital fixo e no avanço das
tecnologias militares.
[22] A aura de sigilo que cerca a ciência e a tecnologia também foram
exemplificadas por operações altamente classificadas em laboratórios
nacionais.
[23] A população dos Estados Unidos aumentou 2 vezes de 1960 a 2000,
enquanto o número de doutorados aumentou 7 vezes para 42.000 em 1999.
Ver, Lori Thurgood, US Doctorates in the 20th Century: Special Report
(National Science Foundation, 2006).
[24] Bruno Latour and Steve Woolgar, Laboratory Life: The Construction
of Scientific Facts (Princeton University Press, 2013); Harry Collins,
Changing Order: Replication and Induction in Scientific Practice
(University of Chicago Press, 1992); Graeme Gooday, “Placing or
Replacing the Laboratory in the History of Science?,” Isis; an
International Review Devoted to the History of Science and Its Cultural
Influences 99, no. 4 (December 2008): 783–95,
https://doi.org/10.1086/595772.
[25] Latour and Woolgar, Laboratory Life.
[26] Bruno Latour, “Give Me a Laboratory and I Will Raise the World,”
Science Observed: Perspectives on the Social Study of Science, 1983,
141–70, https://www.jstor.org/stable/24778192.
[27] Em 1971, em resposta à queda da taxa de lucro, as elites dominantes
americanas encerraram unilateralmente o sistema de Bretton-Woods, que
desde o fim da Segunda Guerra Mundial regulava demandas efetivas nas
economias do primeiro mundo por meio de investimentos planejados. O
aprisionamento do dólar americano ao ouro e outras moedas foi liberado,
facilitando a acumulação de capital por meio da rápida financeirização.
A segunda fase da neoliberalização se estendeu por toda a década de
1980, caracterizada por aumentos nas taxas de juros como contramedidas
ao efeito colateral da inflação durante a primeira fase. Isso resultou
em desemprego em massa, enfraquecimento ainda maior dos sindicatos e na
escravidão por dívidas.
[28] Thomas Heinrich, “Cold War Armory: Military Contracting in Silicon
Valley,” Enterprise & Society 3, no. 2 (2002): 247–84,
https://doi.org/10.1093/es/3.2.247.
[29] Emily H. Jung et al., “Analysis: Large Pharma Companies Do Little
New Drug Innovation – STAT,” December 10, 2019,
https://www.statnews.com/2019/12/10/large-pharma-companies-provide-little-new-drug-development-innovation/.
[30] J. Ehmer, “Artisans and Guilds, History of,” International
Encyclopedia of the Social & Behavioral Sciences, 2001,
https://doi.org/10.1016/b0-08-043076-7/02706-6.
[31] “No lugar da velha sociedade burguesa, com suas classes e seus
antagonismos de classe, surge uma associação em que o livre
desenvolvimento de cada um é pressuposto para o livre desenvolvimento de
todos.” Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista: O
Manifesto Comunista (Expressão Popular, 2008).
[32] Udo Schüklenk, “Retraction Watch,” Bioethics 26, no. 6 (July 2012):
ii, https://doi.org/10.1111/j.1467-8519.2012.01986.x.
[33] Atul Gawande, “The Mistrust of Science,” The New Yorker, June 10,
2016, https://www.newyorker.com/news/news-desk/the-mistrust-of-science.
[34] National Science Board et al., “S&E Indicators 2016,” accessed
April 12, 2021, https://www.nsf.gov/statistics/2016/nsb20161/.
[35] Laboratórios de física controlados pelo setor privado diminuíram
desde os anos 1980 em termos de espaço e cientistas diretamente
empregados conduzindo as pesquisas. Mas o investimento e o fluxo de
capital aumentou por meio da terceirização das atividades de pesquisa
para as universidades. Isso pôde ser feito por meio de financiamentos
diretos de empresas privadas para laboratórios universitários, por meio
de contratos que negociam a propriedade de produtos de pesquisa, ou por
meio de parceria público-privada para adquirir financiamento federal
lucrativo, mantendo os direitos de patentes intelectuais.
[36] Navid Ghaffarzadegan et al., “A Note on PhD Population Growth in
Biomedical Sciences,” Systems Research and Behavioral Science 23, no. 3
(May 2015): 402–5, https://doi.org/10.1002/sres.2324.
[37] Wayne P. Wahls, “The NIH Must Reduce Disparities in Funding to
Maximize Its Return on Investments from Taxpayers,” eLife 7 (March 23,
2018), https://doi.org/10.7554/eLife.34965.
[38] Chris Woolston, “PhDs: The Tortuous Truth,” Nature 575, no. 7782
(November 2019): 403–6; Jordan Weissmann, “Ph.D. Programs Have a Dirty
Secret: Student Debt,” The Atlantic, January 16, 2014,
https://www.theatlantic.com/business/archive/2014/01/phd-programs-have-a-dirty-secret-student-debt/283126/.
[39] Naomi Oreskes, “Racism and Sexism in Science Haven’t Disappeared,”
Scientific American, October 1, 2020,
https://www.scientificamerican.com/article/racism-and-sexism-in-science-havent-disappeared/.
[40] Social-democratic federation, Socialism Made Plain, the Social and
Political Manifesto of the Democratic Federation, 1883.


        18/Novembro/2021


    [*] Da Universidade de Michigan, Deptº de Otorinolangologia


    O original encontra-se em
    magazine.scienceforthepeople.org/online/socialize-the-lab/
    <https://magazine.scienceforthepeople.org/online/socialize-the-lab/>
    e a tradução de Allan Rodrigo de Campos Silva em
    magazine.scienceforthepeople.org/portugues/socialize-the-lab-portugues/ <https://magazine.scienceforthepeople.org/portugues/socialize-the-lab-portugues/>

Em
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/varios/laboratorio_18nov21.html
18/11/2021

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