domingo, 30 de junho de 2024

A forma específica de pobreza sob o capitalismo




    Prabhat Patnaik [*]
Índice de preços de produtos alimentares da FAO.

A pobreza é considerada um fenómeno homogéneo, independentemente do modo
de produção que está a ser examinado. Mesmo economistas de renome
acreditam nesta concepção homogénea da pobreza. Na realidade, porém, a
pobreza sob o capitalismo é completamente diferente da pobreza em tempos
pré-capitalistas. Mesmo que, para finalidades /estatísticas,/ a pobreza
seja definida como a falta de acesso a um conjunto de /valores de uso/
essenciais para viver, independentemente do modo de produção, o facto é
que sob o capitalismo essa falta está enredada num conjunto de relações
sociais que são /sui generis/ e diferentes das anteriores. A pobreza no
capitalismo assume assim uma forma específica associada /à insegurança e
à indignidade/ que a torna particularmente insuportável.

A pobreza capitalista apresenta, grosso modo, quatro características
aproximadas. A primeira decorre da inviolabilidade dos contratos, o que
significa que, independentemente das suas condições, os pobres têm de
pagar o que contrataram, o que conduz a uma perda de bens ou à miséria.
Nos tempos pré-capitalistas, por exemplo, na Índia [do império] Mughal,
a exigência de receitas era uma proporção /do produzido/; isto
significava que em anos de más colheitas os direitos a receitas dos
camponeses eram /automaticamente/ reduzidos; por outras palavras, o ónus
das más colheitas era partilhado entre os produtores e os donos da
terra. Mas na Índia colonial, reflectindo o seu espírito capitalista, o
imposto passou a incidir sobre a /terra;/ o contrato entre o produtor e
o dono da terra mudou:   ao produtor seria autorizado a cultivar uma
parcela de terra desde que pagasse um determinado /montante/ de receitas
ao Estado. Isto significava que, num ano de más colheitas, o fardo da má
colheita não era partilhado e recaía exclusivamente sobre o produtor.
Por outras palavras, o contrato era celebrado para o pagamento de um
montante fixo em dinheiro e não para o pagamento de um montante
variável, como uma parte da produção ou do seu equivalente em forma
dinheiro. Daí resultou a pauperização do campesinato, ou seja, a
transferência dos ativos dos camponeses para usurários seguiu-se a isto.
Em suma, a pobreza foi associada à miséria a qual, em consequência,
tendia a ter um impacto cumulativo sobre os produtores.

Por outras palavras, a falta de acesso ao "fluxo" dos /valores de uso/
por parte dos produtores era acompanhada por um processo de privação do
seu "stock" de activos, o que significava um /aumento/ da sua
vulnerabilidade ao longo do tempo. Houve portanto uma /dinâmica/
introduzida na pobreza.

A segunda caraterística da pobreza capitalista é o facto de ser vivida
por /indivíduos,/ quer se trate de pessoas individuais ou de agregados
familiares. Numa sociedade pré-capitalista, onde as pessoas viviam em /
comunidades,/ outros membros da comunidade, quer pertencessem ao mesmo
grupo de castas ou simplesmente à mesma aldeia, vinham em auxílio dos
pobres em anos de más colheitas ou calamidades naturais. Por outras
palavras, as privações não eram sofridas de forma isolada. No
capitalismo, porém, quando as comunidades se desagregam devido à lógica
inexorável do sistema, e o indivíduo emerge como a categoria económica
primária, este indivíduo também sofre privações em isolamento.

As tradições não marxistas da teoria económica não conseguem ver esta
mudança básica porque estão desprovidas de qualquer sentido da história.
Marx acusou a economia clássica desta cegueira em relação à história:  
o indivíduo, que surgiu apenas num determinado momento da história, foi
considerado por ela como tendo existido desde sempre. A economia
neoclássica de Carl Menger e Stanley Jevons, iniciada por volta de 1870,
idolatrou o indivíduo, tomando-o como categoria eterna e ponto de
partida da análise económica. Ambas as vertentes não compreenderam,
portanto, o contraste entre a pobreza /capitalista/ e a pobreza /pré-
capitalista,/ a primeira vivida por indivíduos isolados e alienados e a
segunda referindo-se apenas à privação sofrida no seio de uma comunidade
e em consequência numa partilha da privação.

O facto de o capitalismo ser caracterizado por indivíduos alienados (até
formarem "combinações" ou sindicatos que os reúnem em lutas comuns /
contra/ o sistema) e de serem estes indivíduos que vivem a pobreza, dá à
pobreza uma dimensão adicional; não é apenas a falta de acesso a um
conjunto de valores de uso que constitui a pobreza capitalista, mas
também um trauma psicológico que acompanha esta falta de acesso.

Isto torna-se mais claro quando analisamos a terceira caraterística da
pobreza capitalista. Esta surge por duas razões:   uma são os baixos
salários daqueles trabalhadores empregados e a outra a ausência de
emprego. É o exército de reserva do trabalho que é particularmente
afligido pela pobreza. De facto, em economias como a nossa, onde o
"empregado" e os "desempregado" não são duas categorias distintas, mas
em que a maior parte dos trabalhadores, salvo uma pequena minoria, está
desempregada vários dias por semana ou várias horas por dia, o trauma
psicológico associado à pobreza, decorrente da incapacidade de encontrar
emprego, é ainda mais generalizado. A falta de emprego aparece como um
fracasso pessoal por parte do indivíduo, como algo que lhe retira auto-
estima, além de provocar a falta de acesso a um determinado conjunto de
valores de uso.

A quarta caraterística da pobreza capitalista é a opacidade para aqueles
que a sofrem dos factores que a causam. Numa sociedade pré-capitalista,
a pobreza no sentido de falta de acesso a um determinado conjunto de
valores de uso está palpavelmente enraizada na dimensão do que é
produzido e na parte que lhe é retirada pelo senhorio /(overlord)/. Na
verdade, esta é visível para todos:   uma má colheita pode reduzir a
dimensão da produção e portanto agravar a pobreza (mesmo quando a
redução da produção é partilhada); do mesmo modo, um senhorio voraz pode
arrebatar tanto aos produtores que muitos deles ficam reduzidos à
pobreza mesmo em anos de colheita normal. Mas a razão pela qual uma
pessoa permanece desempregada e portanto pobre em condições capitalistas
permanece um mistério para a própria pessoa. Do mesmo modo, a razão pela
qual os preços sobem subitamente, empurrando mais pessoas para a
pobreza, continua a ser um mistério para os afectados.

O filme de Satyajit Ray acerca da fome em Bengala em 1943 (/Distant
Thunder/ <https://en.wikipedia.org/wiki/Distant_Thunder_(1973_film)>)
[1] <#nr> mostra, no período que antecedeu a fome, os preços a subirem
em Bengala enquanto as tropas japonesas ocupavam Singapura. Atualmente,
a guerra na Ucrânia contribui certamente para o aumento mundial dos
preços dos alimentos, o que agrava a pobreza mesmo numa aldeia remota da
África ou da Índia. A aparente opacidade das raízes da pobreza
capitalista está ligada ao fenómeno da interconexão global sob o
capitalismo; isto é, ao facto de os desenvolvimentos globais,
desenvolvimentos em terras distantes, terem um impacto em toda aldeia,
por mais remota que seja.

Estas características específicas da pobreza capitalista têm implicações
importantes, das quais chamarei a atenção apenas para uma. Muitas
pessoas bem intencionadas, que gostariam de reduzir ou eliminar a
pobreza, sugerem que deveriam ser feitas transferências do orçamento do
Estado, de modo a que todos na sociedade tenham um rendimento mínimo
básico. É claro que isso não aconteceu na escala necessária em parte
alguma, de modo que a pobreza continua a ser um fenómeno social e está
mesmo a agravar-se devido à inflação mundial dos preços dos alimentos,
juntamente com a recessão causada pelo capitalismo neoliberal; mesmo as
sugestões de transferências são invariavelmente quantias um tanto
insignificantes. Mas tudo isto se refere à pobreza no sentido de um
acesso inadequado a um conjunto de /valores de uso,/ ou seja, uma
pobreza que não se refere especificamente à pobreza /capitalista./

Mesmo que se fizessem transferências suficientes e se superasse a
pobreza no sentido de falta de acesso a valores de uso, isso ainda não
superaria a pobreza capitalista, a qual implica também um trauma
psicológico, um roubo da auto-estima através do desemprego. A superação
da pobreza capitalista neste verdadeiro sentido exige, entre outras
coisas, a criação de um emprego universal. Keynes pensava que isso era
possível sob o capitalismo, mas provou-se que estava errado. Isto não
significa que não se devam efetuar transferências; mas elas são
simplesmente insuficientes, são paliativos que não vão à raiz do problema.

Na Índia, estão atualmente a ser fornecidos cinco quilos de cereais
alimentares gratuitos por cabeça e por mês a cerca de 800 milhões de
beneficiários. A quantidade de alimentos que lhes é fornecida e a
duração deste regime (que foi iniciado devido à pandemia) são questões
discutíveis. Mas quem acredita que esquemas como este constituem a
panaceia para a pobreza na Índia contemporânea está tristemente
enganado. O que é necessário é a provisão universal de emprego,
educação, cuidados de saúde, segurança na velhice /e/ alimentação, que
devolveria às pessoas a dignidade de serem cidadãos de uma sociedade
democrática – mas isto implicaria ir para além do capitalismo neoliberal.


        30/Junho/2024

Em
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/patnaik/patnaik_30jun24.html
30/6/2024

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Bolivia: el golpe no fracasó; todavía se está preparando

 






Eduardo Vasco


Lo ocurrido el 26 de junio en Bolivia aún no fue un golpe de Estado. Fue
un /putsch/ fallido dado por el comandante de las Fuerzas Armadas, Juan
José Zúñiga, de manera improvisada, creyendo que sería apoyado por los
demás golpistas.

Pero Zúñiga se adelantó.

Había declarado, dos días antes, en una entrevista, que no aceptaría una
nueva candidatura de Evo Morales a la presidencia de la República. Como
la declaración causó una enorme controversia, el presidente Luis Arce
anunció que Zúñiga sería destituido. Así, el militar se anticipó,
organizó un grupo del Regimiento Especial Challapata “Méndez Arcos” e
intentó invadir el Palacio de Gobierno.

Pero nadie más lo acompañó. No se levantaron cuarteles en ningún lugar
del país. Sin embargo, contrariamente a lo que podría pensarse, la
policía no desempeñó un papel destacado en la contención del golpe.
Aunque ella tampoco se sumó a la aventura de Zúñiga, es incluso más
reaccionaria que el ejército y estuvo al frente del golpe de 2019.

Evo y el propio Arce llamaron al pueblo a movilizarse contra el intento
golpista. Cientos de personas expulsaron a los militares de Zúñiga de la
plaza Murillo, demostrando combatividad como lo habían hecho miles en 2019.

Pero fue menos la movilización popular y más la falta de iniciativa de
los militares lo que llevó al fracaso del golpe de Zúñiga.

Bolivia vive una fuerte crisis política, tanto entre la derecha como
entre el MAS. Quienes podrían ser considerados los principales líderes
de la derecha –la expresidenta golpista Jeanine Añez, que asumió el
cargo tras el golpe de 2019, y uno de los principales autores de ese
golpe, el extremista Luis Fernando Camacho– están en la cárcel.

Uno de los objetivos anunciados por Zúñiga era liberar a Añez y Camacho,
quizás precisamente para que unificaran a la derecha golpista. Lo más
preocupante es que, en ausencia de líderes políticos, los propios
militares buscan liderar el golpe –como intentó hacer Zúñiga.

Al contrario de lo hecho por Hugo Chávez en Venezuela, el MAS no pudo
expulsar a los golpistas de las fuerzas armadas. No hubo ninguna purga
en ningún momento, ni durante los gobiernos de Evo ni durante el de
Arce. Por tanto, las fuerzas armadas bolivianas son altamente
reaccionarias y están vinculadas al imperialismo estadounidense. Los
agentes de la CIA están profundamente infiltrados dentro del ejército
boliviano.

Si, por un lado, los demás oficiales no siguieron a Zúñiga, y la OEA –
que había patrocinado el golpe de 2019– condenó esta vez el /putsch/, la
postura del gobierno de Estados Unidos es reveladora. Mientras el mundo
entero rechazó el golpe, el gobierno americano se limitó a afirmar que
estaba siguiendo la situación y pidió calma y moderación. Esta es una
señal clara de que Estados Unidos está involucrado en la organización de
un golpe de estado en Bolivia.

Parece que los oficiales bolivianos dejaron que Zúñiga se quemara para
probar las posibilidades de que un verdadero golpe tuviera éxito. Como
comandante de las Fuerzas Armadas, Zúñiga sabía que otros oficiales
tenían serias inclinaciones golpistas y por eso hizo el intento, de lo
contrario no hubiera sido tan audaz.

La crisis de la izquierda es incluso mayor que la de la derecha. El MAS
y los movimientos populares están profundamente divididos entre los alas
de Evo y Arce. En los últimos años, Morales ha dado signos de
capitulación al entregar a Cesare Battisti a Bolsonaro y al gobierno
italiano, participar en la toma de posesión del propio Bolsonaro como
presidente y aceptar que Arce fuera el candidato del MAS en las
elecciones que se llevaron a cabo debido a la presión popular, que
revirtió el golpe y destituyó a Áñez del poder.

Sin embargo, Arce es un burócrata moderado que, especialmente en la
política interna, se ha comportado como una especie de Lenin Moreno
boliviano, aunque no como de derecha. No ha escatimado esfuerzos para
sacar a Morales y sus aliados de la dirección del MAS y así apoderarse
del partido. Tanto Morales como Arce pretenden postularse para las
próximas elecciones presidenciales, y sólo uno de ellos podrá
representar al MAS. La lucha interna, que ya es extremadamente
turbulenta, tiende a intensificarse.

No hay manera de resolver la crisis del MAS y reunificar al partido. La
única solución favorable al pueblo boliviano es la separación de las
bases y la izquierda de la derecha y la formación de un nuevo partido,
obrero, socialista e independiente, que actuará hombro con hombro con la
Central Obrera de Bolivia para impedir el verdadero golpe que se
prepara, para purgar a las fuerzas armadas de sus elementos golpistas y
proimperialistas y garantizar el poder a los trabajadores y campesinos
bolivianos, que en su mayoría apoyan a Evo Morales contra Arce.

La derrota de los impulsos golpistas en Bolivia es esencial para impedir
los planes golpistas continentales del imperialismo americano <https://
strategic-culture.su/news/2024/01/23/un-golpe-continental-silencioso-
llevado-a-cabo-por-estados-unidos-esta-en-marcha/>, que ya triunfaron en
Argentina y Ecuador y que tienen a Brasil como su principal objetivo,
porque Estados Unidos no puede tolerar a Brasil con un gobierno como
este bajo Lula durante mucho tiempo. Ciertamente los militares y la
derecha boliviana mantienen vínculos con la extrema derecha de Milei y
también con la extrema derecha brasileña. Milei impuso una dictadura con
el uso y abuso de la policía y el ejército en Argentina. Noboa imitó al
argentino y poco después hizo lo mismo en Ecuador. Los generales siguen
impunes en Brasil un año y medio después del 8 de enero y el
bolsonarismo sigue fuerte.

Lamentablemente, América Latina sigue siendo hoy el “patio trasero” de
Estados Unidos. Ante la complicada situación internacional,
especialmente en Ucrania, Asia Oriental y Oriente Medio, con sucesivas
derrotas, el imperialismo estadounidense necesita asegurarse el control
del continente. Este es uno de los pocos puntos en los que Joe Biden y
Donald Trump coinciden. Por lo tanto, independientemente de lo que
suceda en las elecciones americanas, América Latina estará a partir de
ahora en el ojo de la tormenta.

(*) Jornalista especializado em política internacional.

Em
SAKERLATAM
https://sakerlatam.blog/bolivia-el-golpe-no-fracaso-todavia-se-esta-preparando/
27/6/2024

segunda-feira, 17 de junho de 2024

O socialismo heroico de Mariátegui

 
 


Nicolas Allen

O primeiro e mais original pensador marxista da América Latina nasceu em
14 de junho de 1894, no departamento de Moquegua, no sul do Peru. José
Carlos Mariátegui (1894–1930) é hoje lembrado como o mais raro dos
intelectuais radicais, latino-americanos ou não: uma figura cuja
influência não só perdura ao longo da extensa trajetória do pensamento
político do século XX, mas evolui rapidamente com os mais variados
contextos históricos. Da teoria da dependência à teologia da libertação,
da teoria decolonial à Onda Rosa Latino-Americana <https://
jacobinmag.com/issue/by-taking-power>, a história do pensamento radical
da região pode, e tem sido, lida como uma interpretação expandida dos
escritos de Mariátegui, ou o “amauta”, como ele era conhecido pelos
camaradas.

Não há melhor introdução à obra mariateguiana do que os Sete Ensaios de
Interpretação da Realidade Peruana <https://www.marxists.org/archive/
mariateg/works/7-interpretive-essays/index.htm> dele, uma obra sem
precedentes da teoria marxista latino-americana cujo nonagésimo
aniversário este ano é a desculpa perfeita para revisitar seu legado.

A vida do Amauta foi breve e intensa. Uma doença fatal manteve o jovem
peruano acamado durante grande parte da sua juventude e quase o privou
de qualquer escolaridade formal. No entanto, esses anos de convalescença
viram Mariátegui tornar-se um formidável autodidata com uma vigorosa,
alguns poderiam dizer melancólica, disposição. Ainda adolescente,
Mariátegui começou a escrever nos periódicos de Lima como forma de
sustentar a família e, em 1918, inspirado pela distante Revolução Russa
e por uma onda de greves locais, declarou-se um socialista convicto.

Os paralelos entre Mariátegui e Antonio Gramsci são tão marcantes que
poucos biógrafos conseguem escapar das comparações. Marxistas
heterodoxos, jornalistas militantes, fundadores dos respectivos partidos
comunistas dos seus países, ambos escritores foram marcados por
fragilidades físicas ao longo da vida e sofreram intensa perseguição
política. Para além destas semelhanças anedóticas, Mariátegui também
passou os seus anos de formação política como testemunha ocular do /
Biennio Rosso/ italiano, vivenciando em primeira mão os conselhos de
fábrica de Turim de 1919-1920 e, no ano seguinte, a fundação do Partido
Comunista da Itália em Livorno.

Embora não haja provas de que os caminhos dos dois revolucionários se
tenham cruzado, Mariátegui inspirou-se na sua experiência italiana de
uma forma que não pode deixar de recordar o autor dos Cadernos do
Cárcere <https://www.marxists.org/archive/gramsci/prison_notebooks/
selections.htm>. Na Itália, Mariátegui descobriu uma nação desprovida
das veneráveis ​​tradições do pensamento socialista, mais típicas da
França ou da Alemanha. Mesmo assim, uma filosofia marxista vibrante
criou raízes na península, florescendo a partir do historicismo
caracteristicamente italiano de Benedetto Croce.

Este encontro com a “filosofia da práxis” peninsular revelou-se decisivo
nas futuras formulações de Mariátegui. Por um lado, a ideia de um
marxismo vernáculo tornar-se-ia uma marca distintiva do “marxismo indo-
americano” de Mariátegui. Essa influência italiana também se traduziu na
sua compreensão voluntarista única do método marxista, concebido como a
unidade de pensamento e ação, consciência e transformação material. Na
terminologia preferida de Mariátegui, “o socialismo como criação heroica”.

Por mais tentador que seja imaginar Mariátegui como a soma de suas
influências díspares (Croce, Sorel, Marx, Surrealismo, Indigenismo, para
citar apenas algumas), seus intérpretes mais lúcidos preferem entender o
Amauta como um interlocutor visionário das possibilidades
revolucionárias emergentes à época. Daí a sua semelhança com Gramsci,
baseada mais num conjunto comum de preocupações do que em quaisquer
influências diretas.

Por exemplo, o Gramsci de “A Questão Meridional” encontra o seu
corolário no apelo de Mariátegui para “Peruanizar o Peru”. No caso de
Gramsci, a Questão Meridional gira em torno da elaboração de um programa
nacional-popular capaz de integrar politicamente os subalternos
marginalizados pelo próprio processo de formação da nação italiana. Para
Mariátegui, “Peruanizar o Peru” significava promover um nacionalismo de
baixo para cima que pudesse desafiar as imposições nacionalistas da
“oligarquia crioula” do Peru e o patriotismo chauvinista que emanava da
Europa.

Ao retornar ao Peru em 1923, Mariátegui entrou na fase madura de seu
trajeto intelectual. Além de escrever os Sete Ensaios, a década de 1920
encontrou o peruano dirigindo um empreendimento cultural único conhecido
como /Amauta/. Este jornal mensal de “doutrina, artes e literatura”
reuniu artes de vanguarda, polêmicas marxistas e política indigenista
com o propósito de liderar um renascimento cultural nacional.

Com a sua política socialista, /Amauta/ ofereceu uma visão do marxismo
como o canal privilegiado para canalizar e amalgamar as expressões e
ideias mais avançadas da época: uma cultura de vanguarda na qual o
marxismo, como adesivo comum, acabaria por se tornar sinônimo da própria
cultura.

No mesmo período, Mariátegui travou debates com companheiros de viagem
da esquerda peruana. O destaque dessas disputas ocorreu com Victor Raúl
Haya de la Torre, fundador e líder da influente Aliança Popular
Revolucionária Americana (APRA). Embora as duas figuras tivessem
partilhado um terreno político comum no início da década de 1920, em
1928 já haviam se distanciado por conta da questão revolucionária.

Haya de la Torre abandonou o seu marxismo anterior em favor de uma linha
“populista”, defendendo uma aliança de classe entre indígenas, burguesia
e proletários, a fim de superar o feudalismo e derrotar o imperialismo.
Nesta perspectiva, o marxismo era uma teoria estritamente europeia,
feita sob medida para a realidade social do velho continente, mas
inadequada para o desenvolvimento da América Latina “semifeudal”.

A resposta de Mariátegui veio logo: só o socialismo revolucionário
poderia fornecer o programa para uma posição autenticamente anti-
imperialista. Porém, no momento em que defendia a universalidade do
método marxista contra as acusações de “eurocentrismo” provenientes das
fileiras crescentes da APRA, Mariátegui enfrentava um conjunto diferente
de acusações em uma outra frente. Em 1929, o recém-formado Partido
Socialista do Peru de Mariátegui (note-se a anomalia: um partido
comunista que manteve a bandeira socialista) foi convidado a participar
na primeira Conferência Latino-Americana do Comintern. No entanto, os
enviados peruanos de Mariátegui provocaram um escândalo ao recusarem-se
a curvar-se à prescrição da Terceira Internacional para uma revolução
democrático-burguesa, o caminho “correto” para as chamadas “nações
coloniais e semicoloniais”.

Incapaz de comparecer fisicamente porque sua doença havia progredido
consideravelmente, os /Sete Ensaios Interpretativos sobre a Realidade
Peruana/ de Mariátegui foram transmitidos ao chefe do Bureau Latino-
Americano, Victorio Codovilla. O argentino Codovilla, famoso pelo seu
stalinismo linha-dura, olhou com desprezo para o volume. “Ensaios
interpretativos” e “realidades nacionais” eram matéria de diletantes
pequeno-burgueses.

À medida que a notícia do escândalo chegava a Moscovo, os /apparatchiks/
soviéticos ficaram particularmente indignados com a defesa de Mariátegui
por um “comunismo inca”: a noção de que as sementes da utopia comunista
já estavam presentes nas comunidades indígenas milenares da região,
tanto quanto o internacionalismo revolucionário da União Soviética.
Mariátegui escreve em seus /Sete Ensaios/: dado o “socialismo prático na
vida agrícola e indígena […] as comunidades representam um fator natural
para a socialização da terra.”

É claro que Mariátegui reconheceu que a transição do comunalismo
anticapitalista para a revolução socialista exigiria um sujeito
proletário, mas também aqui o seu pensamento foi contra a corrente. Ao
invés da transformação ocorrer por conta do desenvolvimento das forças
produtivas, o campesinato andino tornar-se-ia proletário através da
própria revolução socialista: a revolução como o processo de se tornar
sujeito da revolução, ou, mais poeticamente, o que Mariátegui chamou de
luta por uma “criação heroica” da sociedade socialista (note-se aqui os
ecos do socialismo voluntarista e humanista em Che Guevara, delineado no
seu “/Homem e Socialismo/”).

Denunciado como “populista” pela intelectualidade do Comintern, o
“anticapitalismo romântico” de Mariátegui se tornaria mais tarde uma
pedra angular no pensamento do filósofo marxista franco-brasileiro
Michael Löwy. Na categoria de “marxismo romântico”, Löwy colocou
Mariátegui no centro de um panteão intelectual que inclui Benjamin,
Gramsci e Bloch. Cada um deles, à sua maneira, compreendeu que, para
cada revés histórico, impasse revolucionário ou derrota popular, ainda
havia fragmentos utópicos entre as ruínas do passado que poderiam ser
transformados em linhas de resistência e rotas alternativas para o futuro.

A crítica romântico-revolucionária do capitalismo, particularmente na
sua variante radical tipificada por Mariátegui, insiste não em um
regresso literal ao passado (em nenhum lugar da obra de Mariátegui há um
desejo nostálgico de recriar o Império Inca), mas sim na recuperação de
referências históricas capazes de lançar luz sobre a natureza do nosso
presente capitalista e a ressuscitação do próprio potencial
emancipatório que a modernidade possui e renega.

Como o próprio Löwy reconhece no seu /O marxismo na América Latina/, a
cena dramática com o Comintern marcou um dos capítulos finais da era de
ouro da criatividade teórica do marxismo latino-americano (Juan Antonio
Mella, o fundador do partido comunista cubano, pertence a esta época
também). As décadas seguintes de esterilidade intelectual e alinhamento
aos soviéticos começam, fortuitamente, em 1930, ano da morte de Mariátegui.

O legado do Peruano desfrutaria de um renascimento significativo entre a
Nova Esquerda Latino-Americana nas décadas de 1960-70. Até então, o
projeto intelectual de Mariátegui permaneceu durante décadas como a
tentativa mais ousada de resgatar um marxismo vital da polarização que
atormentava as tendências de esquerda da região. De acordo com Löwy,
estas são: uma tentação nativista de rejeitar como estrangeiras
quaisquer teorias que aspirem à universalidade – o marxismo,
principalmente – e, por outro lado, a tentação de aceitar acriticamente
a universalidade e ignorar as particularidades locais.

Em nenhum lugar o ato de equilíbrio de Mariátegui entre o universal e o
particular foi exibido de forma mais lúcida do que em seus /Sete Ensaios
de Interpretação/, onde uma análise marxista rigorosa iluminou as
formações socioeconômicas e culturais concretas da sociedade peruana de
uma maneira dialética que lembra o /Dezoito Brumário/ de Marx ou o /
Desenvolvimento do capitalismo na Rússia/ de Lênin. Conversamos com Löwy
por ocasião do nonagésimo aniversário dos /Sete Ensaios de
Interpretação/, para relembrar o legado do peruano e perguntar sobre sua
relevância no presente.

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NA

*Gostaria de começar perguntando sobre o trabalho que você apresentou em
Lima por ocasião do nonagésimo aniversário dos Sete Ensaios
Interpretativos. Você faz uma comparação entre Walter Benjamin e José
Carlos Mariátegui. Onde você enxerga os pontos em comum deles?*

ML

Apesar de pertencerem a universos culturais muito diferentes — América
Andina e Europa Central — Benjamin e Mariátegui têm muito em comum: não
apenas a sua adesão heterodoxa ao comunismo e as suas visões simpáticas
de Leon Trotsky, mas também o seu interesse pelo pensamento de Georges
Sorel, sua paixão pelo surrealismo e sua visão “religiosa” do
socialismo. O mais importante de tudo é que ambos os pensadores
partilharam uma crítica romântica da civilização moderna que é
inseparável da sua hostilidade ao positivismo e à ideologia do
“progresso”. As afinidades entre os dois são tão marcantes que é de
admirar que os dois não estivessem familiarizados com o trabalho um do
outro.

NA

*E, para Mariátegui, como é uma revolução sem progresso?*

ML

Como afirmou Benjamin em /Passagens/ (/Das Passagen-Werk/), seu objetivo
era desenvolver uma forma de materialismo histórico que rompesse com a
ideologia do progresso. Mariátegui fez o mesmo. Em “/Duas Concepções de
Vida/” (/Dos Concepciones de la Vida/), ele rejeitou, nas suas palavras,
“o respeito supersticioso pela ideia de Progresso”, uma “filosofia chata
e acomodada”, como a chamou. Para Mariátegui, a revolução nunca é o
produto do “progresso”, mas sim a recuperação do passado comunista pré-
colombiano.

NA

*Você pode elaborar esse último ponto? Um “passado comunista pré-
colombiano” parece muito com o que Marx e Engels chamaram de “comunismo
primitivo”. Estaria Mariátegui defendendo um regresso a um passado
comunalista?*

ML

Na verdade, há uma semelhança com o comunismo primitivo tal como foi
definido pela tradição marxista. Vale a pena notar que Rosa Luxemburgo
usou a expressão “comunismo inca” ao discutir as várias formas de
comunismo primitivo em seu /Introdução à Economia Política/. No Peru,
isto se refere aos ayllu, as comunidades camponesas que eram a base
social do Império Inca, que existia na região andina antes de Colombo
“descobrir” as Américas e os colonialistas espanhóis a conquistarem. É
claro que Mariátegui não defende um regresso ao passado pré-colonial,
mas vê nas tradições coletivistas das comunidades indígenas uma base
poderosa para o desenvolvimento do movimento comunista moderno entre o
campesinato.

NA

*Você pode dizer algumas palavras sobre a perspectiva teórica específica
que permitiria a Mariátegui identificar o campesinato e os indígenas
como protagonistas do movimento comunista?*

ML

Como tentei explicar, Mariátegui viu nas tradições coletivistas do
campesinato indígena um importante impulso para sua filiação no
movimento comunista. Além disso, na sua luta pela terra, as massas
camponesas entram necessariamente em conflito com a oligarquia
capitalista e proprietária de terras, podendo ser conquistadas para uma
vanguarda socialista-comunista, uma vez que esta seria a única força
política que luta por uma reforma agrária radical.

NA

*As pessoas falam de Mariátegui como o “primeiro marxista” da América
Latina, enquanto outros vão mais longe e chamam-no de criador de um
marxismo tipicamente latino-americano. Que sentido há em falar de um
marxismo especificamente latino-americano, em oposição, por exemplo, a
um “marxismo periférico”? Dito de outra forma, por que se preocupar com
a distinção quando o próprio objeto de análise do marxismo, o
capitalismo, é ele próprio universal?*

ML

Acho que no caso de Mariátegui as três perspectivas não são mutuamente
exclusivas. Mariátegui é de fato o primeiro marxista da América Latina.
É verdade que houve outros autores que fizeram referência a Marx em
escritos anteriores, como Juan B. Justo, o tradutor argentino d’/O
Capital/. Mas, Justo nunca entendeu Marx. Seu pensamento estava
fundamentado muito mais na filosofia positivista da época do que em Marx.

<https://autonomialiteraria.com.br/>

Com efeito, Mariátegui é o primeiro pensador a propor uma análise
marxista das formações sociais latino-americanas, nomeadamente, nos
seus /Sete Ensaios Interpretativos sobre a Realidade Peruana/. Apesar da
sua adesão ao comunismo, Mariátegui nunca aceitou a doutrina estalinista
oficial do Comintern – a necessidade de passar por uma “fase democrática
burguesa” na América Latina. Para ele, a única alternativa à dominação
imperialista seria o que chamou de “Socialismo Indo-Americano”.

Também faz todo o sentido falar de “marxismo latino-americano”, e não
apenas porque o pensamento de Mariátegui se dedica principalmente ao
Peru e à América Latina. O seu ponto de vista estava profundamente
enraizado na cultura e na história do continente. Da mesma forma, também
se poderia falar de um marxismo periférico, uma vez que Mariátegui
partilhava com outros – da América Latina, Ásia e África – uma visão do
capitalismo situado às margens do sistema.

Mas considero importante sublinhar que o marxismo de Mariátegui é
universal. Esta universalidade está presente não apenas nos seus
escritos sobre o capitalismo, mas também nas suas reflexões sobre uma
série de outros assuntos: o método marxista; a ética revolucionária; a
visão mística do socialismo, da cultura e das artes; para não falar da
sua polêmica em defesa de uma filosofia antipositivista e da sua crítica
do progresso como uma ilusão.

Estas representam contribuições profundamente inovadoras para o marxismo
como tal. Penso que seria um erro deixar que a reputação de Mariátegui
dependesse apenas dos seus brilhantes ensaios sobre a realidade peruana.
Seu pensamento “universal” está no mesmo nível de seus pares
intelectuais das décadas de 1920 e 1930: Walter Benjamin, Antonio
Gramsci ou Ernst Bloch. Falando francamente, Mariátegui é um dos maiores
pensadores marxistas da primeira metade do século XX.

NA

*E quanto à acusação de “eurocentrismo”? Não poderíamos pegar essa
acusação e, no caso de Mariátegui, invertê-la e dizer que o peruano é um
exemplo da universalidade do marxismo, a evidência viva da capacidade da
teoria de “evoluir” através do seu encontro com formações sociais
periféricas que estava além do escopo das formulações originais de Marx?*

ML

Mariátegui não era eurocêntrico e nem antieuropeu. Sua grande conquista
foi oferecer uma síntese dialética entre a singularidade latino-
americana e a universalidade do método marxista. É claro que ele
reinterpretou o método marxista com a ajuda de certas figuras,
particularmente Georges Sorel e Miguel Unamuno, desenvolvendo uma
autêntica vertente romântico-revolucionária do marxismo.

NA

*Um marxista mais ortodoxo poderia questionar, à luz de tal ecletismo,
se Mariátegui era mesmo marxista. O que você diria em resposta?*

ML

Existe um “Marxômetro” que possa medir se as pessoas que afirmam ser
marxistas são ou não “verdadeiros marxistas”? José Carlos Mariátegui
considerava-se marxista, um dos seus livros chama-se /Defesa do
Marxismo/ (1930) e aderiu à Internacional Comunista em 1928. Não vejo
como se poderia negar-lhe a identidade marxista! Na verdade, o marxismo
é uma categoria muito heterogênea: André Tosel, um conhecido marxista
francês (gramsciano), escreveu que existem “mil marxismos”. Pode-se
criticar alguns deles, ou argumentar que compreenderam Marx
completamente mal, mas não é muito útil discutir sobre “quem é um
verdadeiro marxista”.

NA

*A questão da ortodoxia ou heterodoxia de Mariátegui parece ser
relevante pelo menos no que diz respeito à compreensão da sua recepção.
Marginalizado pela Terceira Internacional, foi mais tarde redescoberto
pela Nova Esquerda Latino-Americana na década de 1970 e, mais
recentemente, comemorado pela Onda Rosa da América do Sul. Que
relevância você acha que Mariátegui tem atualmente? Que novas leituras
podem ser realizadas à luz da conjuntura atual?*

ML

Cada época, com seus respectivos e únicos arranjos políticos, terá uma
leitura própria de Mariátegui. No que diz respeito ao momento presente,
sinto que a sua visão de um tipo de socialismo que “não é cópia nem
reprodução” de outras experiências históricas, mas sim uma “criação
heroica” dos povos latino-americanos, uma criação baseada na sua
cultura, sua história e tradições. Esta me parece uma ideia extremamente
relevante para a época atual.

A sua ênfase nas raízes indo-americanas do comunismo, expressa ao longo
dos seus escritos, também pode ser aplicada às lutas dos povos afro-
americanos. A visão de Mariátegui é frequentemente mencionada em relação
ao “multiculturalismo” ou instituições “plurinacionais”, mas tem a ver
principalmente com tradições comunitárias que estão em conflito aberto
com o capitalismo e que carregam dentro de si um potencial radicalmente
subversivo.

Durante demasiado tempo, a esquerda latino-americana tem “reproduzido e
copiado” outros socialismos, particularmente o modelo soviético. Talvez
tenha chegado o momento de redescobrir – mais uma vez – a provocação de
Mariátegui para encontrar um novo caminho que esteja enraizado nas
culturas e práticas das classes populares latino-americanas.

NA

*E você vê alguma força política no continente que, explicitamente ou
não, esteja seguindo esse tipo de caminho? Sei que João Pedro Stédile,
líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra do Brasil, é um grande
admirador de Mariátegui.*

ML

Claro, houve grandes pensadores peruanos como Aníbal Quijano e Alberto
Flores Galindo que seguiram seu exemplo. Depois temos líderes políticos
indígenas, como Hugo Blanco, que foram influenciados pelo pensamento de
Mariátegui. Mais recentemente, podemos encontrar exemplos do seu impacto
em figuras como Hugo Chávez ou em movimentos camponeses como o MST que
você menciona. No entanto, penso que o movimento revolucionário atual
que melhor encarna a visão geral de Mariátegui – e não necessariamente
porque segue os seus escritos – pode ser encontrado na experiência
zapatista em Chiapas.

NA

*O senhor enfatizou que o conceito de revolução tem um significado
particular para Mariátegui. Como você sugeriu, é uma constante em seus
escritos que às vezes se assemelha a uma fé religiosa, como se a
revolução fosse uma força imbuída de poderes redentores divinos. Não
será isto algo de anacronismo na nossa situação atual, caracterizada
como é por ambições políticas mais modestas, ou mesmo por horizontes
contrarrevolucionários se considerarmos o contexto latino-americano?*

ML

Sem dúvida, o presente político na América Latina mostra todos os sinais
de uma poderosa contrarrevolução. Logo, a questão seria: diante deste
cenário, não será ainda mais necessário reafirmar o horizonte
revolucionário? Como podemos começar a imaginar tirar o calcanhar de
ferro da oligarquia das nossas costas – com o tipo reacionário,
autoritário e repressivo do neoliberalismo que vemos agora – sem também
prosseguir a transformação radical das estruturas econômicas, sociais e
políticas subjacentes? É claro que os processos revolucionários muitas
vezes começam com os tipos de lutas que poderíamos chamar de “modestas”,
baseadas em exigências concretas e formas circunscritas de confronto.

Além disso, a maioria dos acontecimentos revolucionários na América
Latina, pelo menos nos últimos cinquenta anos, estiveram ligados a
alguma forma de “fé religiosa ou força redentora”, como você a chama.
Isto é, Cristianismo da Libertação ou Teologia da Libertação. Sem ter em
conta este componente, é impossível compreender os processos
revolucionários que tiveram lugar na América Central entre as décadas de
1970 e 1990, ou, aliás, a Revolta em Chiapas em 1994. O potencial
emancipatório desta tradição continental continua a ser extremamente
vital e está longe da exaustão.

Mas, para além da dimensão estritamente religiosa do fenômeno que
descrevemos, é impossível imaginar realmente um movimento em grande
escala que resista, combata e lute por uma mudança social radical sem
recorrer também a uma certa “fé, paixão, vontade e misticismo” como
dizia Mariátegui. [A citação completa diz: “A força dos revolucionários
não reside na sua ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua
vontade. É uma força religiosa, espiritual e mística.”]

NA

*Você está aludindo às tão discutidas ideias de Mariátegui sobre o mito
revolucionário. Pode ser interessante revisitar esse conceito hoje à luz
dos mitos reacionários prevalentes que estão em circulação. Poderá
Mariátegui, que testemunhou a ascensão do fascismo em Itália e escreveu
muito sobre o assunto, oferecer alguma visão sobre a atual viragem da
extrema-direita na América Latina?*

ML

O mito reacionário nasce do seu confronto com o mito revolucionário. O
mito contrarrevolucionário fascista, como sabemos, foi erguido contra a
maré crescente do bolchevismo. O que o mito fascista procura fazer é
monopolizar o patriotismo. Como escreveu Mariátegui, o fascismo “espalha
a sua bandeira patriótica para encobrir todos os seus contrabandos, os
seus equívocos doutrinários e programáticos”. Estas palavras, escritas
sobre o fascismo italiano em 1925 e publicadas em /A Cena Contemporânea/
de Mariátegui, são extremamente relevantes hoje em dia na América Latina.

NA

*Alguns dos seus trabalhos mais recentes exploram as possibilidades de
uma perspectiva ecossocialista. A visão mais ampla de Mariátegui do
socialismo é como uma alternativa civilizacional ao capitalismo. Isto
não poderia fornecer alguma inspiração ou orientação para uma política
ecossocialista emergente?*

ML

Mariátegui não pode nos fornecer respostas prontas para todos os
problemas de hoje, tal como Marx ou Lênin não podem. Mariátegui nunca
manifestou qualquer tipo de preocupação ambiental, o que é mais do que
compreensível tendo em conta que os problemas ambientais da sua época
não se assemelhavam em nada à crise que vivemos atualmente.

Mas, para além disso, ao encarar a sua crítica radical do sistema
capitalista como uma crítica de todo um sistema civilizacional – isto é,
não apenas a crítica da extração de mais-valia – ou a sua rejeição da
ideologia burguesa do progresso, ou a sua exaltação das tradições
comunitárias indígenas, se levarmos em conta todos estes fatores, o seu
trabalho representa de fato uma contribuição muito significativa para o
desenvolvimento do pensamento ecossocialista.

Por todo o continente americano, do Canadá à Patagônia, os povos
indígenas estão na vanguarda da resistência contra a destruição
capitalista da natureza. São os mais resolutos defensores dos rios, das
árvores e da terra, os que lutam contra a cruel devastação ecológica
perpetrada pelas multinacionais petrolíferas e mineiras, pela agroindústria.

Esta é uma oposição enraizada nas condições materiais de vida das
comunidades indígenas, na sua própria sobrevivência. Mas é também um
conflito entre uma espiritualidade indígena e o espírito do capitalismo.
O que Mariátegui fez foi nos fornecer uma chave importante para
compreender as comunidades indígenas como protagonistas das lutas
socioecológicas atuais.

Como gostava de dizer um dos maiores admiradores de Mariátegui, o líder
indígena e camponês peruano Hugo Blanco: “Nós, índios, praticamos o
ecossocialismo há cinco séculos”.


          Michael Löwy <https://jacobin.com.br/author/michaellowy/>

é diretor de pesquisa emeritus do Centro Nacional de Pesquisa
Científica, em Paris.

Em
JACOBINA
https://jacobin.com.br/2024/06/o-socialismo-heroico-de-mariategui/
16/6/2024

quarta-feira, 12 de junho de 2024

O esforço de Lula é inútil: o sonho das classes dominantes é destruir o PT - Revista Opera

 

 

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Uma das características distintivas do Brasil é o fato de ter se
desenvolvido, por mais de quatro séculos, sob um esquema de baixíssima
intensidade de participação política. A escravidão, o analfabetismo, a
imensidão do País, o caráter dependente de seu desenvolvimento – e,
portanto, o fato de ter sua produção primarizada e voltada para fora –,
a repressão direta e indireta à participação política e o projeto de
deseducação de seu povo são todos temas que se ligam a esse fato, que
poderia ser traduzido numa frase: na longa trajetória histórica, o povo
brasileiro teve sua organização restringida, e daí decorreu um País cujo
espírito não pôde se manifestar na arena política – ou, de outra forma;
um País cujo espírito foi a negação dos anseios de seu povo.

Essa baixa participação política, no entanto, não pode ser entendida
simplesmente como uma “deformação natural” ou uma “deficiência” do
processo civilizatório brasileiro. Como Darcy Ribeiro bem resumiu em
seu /Sobre o óbvio/ <http://www.biolinguagem.com/ling_cog_cult/
ribeiro_1986_sobreoobvio.pdf>, tratou-se de uma façanha espetacular de
nossas classes dominantes, que fundaram “um sistema social perfeito para
os que estão do lado de cima da vida”. Diz ele: “[…] Já não há como
negar dois fatos que ficaram ululantemente óbvios. Primeiro, que não é
nas qualidades ou defeitos do povo que está a razão do nosso atraso, mas
nas características de nossas classes dominantes, no seu setor dirigente
e, inclusive, no seu segmento intelectual. Segundo, que nossa velha
classe tem sido altamente capaz na formulação e na execução de projeto
de sociedade que melhor corresponde a seus interesses. Só que este
projeto, para ser implantado e mantido, precisa de um povo faminto,
chucro e feio. Nunca se viu, em outra parte, ricos tão capacitados para
gerar e desfrutar riquezas, e para subjugar o povo faminto no trabalho,
como os nossos senhores empresários, doutores e comandantes. Quase
sempre cordiais uns para com os outros, sempre duros e implacáveis para
com subalternos […]”.

Houve, certamente, luta. Darcy mesmo conta 50 mil mortos na repressão a
revoltas anteriores e posteriores à Independência. Mas o surgimento de
organizações políticas de monta, num País como o Brasil – com largo
território, povos de origens diversas, e uma organização geoestratégica
fundada no domínio da terra por vários felizardos individuais que tudo
controlavam em “seus” espaços – dependeria de que nossas classes
dominantes fizessem um esforço concentrado para estimulá-las, quando, de
fato, fizeram um esforço sobrehumano no sentido contrário.

No Brasil, o surgimento de partidos nacionais, onde seu povo pudesse se
organizar e mobilizar, dependeria, já de antemão, da abolição do
escravismo; da ampla alfabetização do povo; de um surgimento mais livre
de jornais e livros (estes foram obsessivamente controlados e
proibidos); de uma ampliação da mobilidade dentro do País. Mas o sistema
ferroviário brasileiro em 1889 só cobria 0,1% do País (9.583 km de
ferrovias <https://www.repositorio.ufal.br/bitstream/riufal/6756/1/
Ferrovias%20em%20Alagoas%20no%20s%C3%A9culo%20XIX%20e%20nas%20primeiras%20d%C3%A9cadas%20do%20s%C3%A9culo%20XX.pdf>em uma extensão territorial de 8,3 milhões de km²); o sistema telegráfico era de 2 mil km² em 1870; o primeiro jornal, invenção de 59 a.C, só surgiria aqui em 1808, a censura prévia sobre a impressão só seria abolida em 1821, assim como o monopólio do governo sobre a impressão – medidas que não tinham tampouco efeito tão extenso, haja em vista que o analfabetismo era amplo; na época da Independência, era de 99%; em 1900, ainda atingia 65% da população, e a alfabetização de mais da metade da população só seria atingida nos anos 1950 (enquanto o direito ao voto do analfabeto só seria garantido a partir de 1985, após ser abolido em 1881); por fim, como é conhecido, a abolição só viria em 1888.

Estes dados todos ajudam a explicar porquê o nascimento de um partido
político regular com vocação verdadeiramente nacional no Brasil só viria
em 25 de março de 1922, com a fundação do Partido Comunista. Regular
porque, antes disso, havia o Exército; o primeiro com vocação
verdadeiramente nacional porque, excluindo-se o Partido Fardado, a
organização partidária vigente até então era fundamentalmente regional,
estadual, e, ainda, restrita às oligarquias agrárias, a setores da
burguesia emergente e à burocracia.

É importante notar que o Partido Comunista viveria a maior parte de sua
trajetória na ilegalidade, sendo continuamente reprimido. Por outro
lado, o segundo partido de massas e nacional surgido no Brasil, a Ação
Integralista Brasileira (AIB), teria o seu caminho franqueado pela
legalidade, podendo aumentar consideravelmente seu contingente de
membros, em franco conflito com o Partido Comunista, até ser finalmente
extinto em 1938, em função das intentonas integralistas de março e maio.

Assim, só é possível falar de partidos nacionais institucionalizados no
Brasil a partir de 1945: ainda assim, dos 32 partidos constituídos à
época, só eram efetivamente nacionais a conservadora UDN, de alguma
forma de massas, reunindo as classes médias, os militares e setores da
burguesia nacional, e com projeto associado ao imperialismo norte-
americano; o PTB, reunindo a herança mais progressista do varguismo, as
massas trabalhadoras e setores da pequeno-burguesia e burguesia
nacionais; e o PSD, também descendente do varguismo, mas de corte mais
liberal, com baixa inserção de massas, formado por burocratas ligados às
intervenções pós-Revolução de 30, e representante acima de tudo de
setores industriais da burguesia nacional.

É importante notar que toda essa surgente organização partidária é
destruída com o golpe militar de 1964. Com a impossibilidade de fazer
frente ao varguismo no âmbito partidário-eleitoral, as classes
dominantes decidem por outra estratégia: o golpismo. Os líderes
partidários derrotados pelo varguismo (em suas duas faces, o PSD e o
PTB) desde 1945, por sua vez, vêem no movimento a oportunidade de
“limpar o campo” para si. Acabam sendo também limpados do campo: nem o
PTB e PSD, nem a UDN, se recuperariam do golpe.

Logo se vê, portanto, a razão de Darcy: mesmo superada a etapa colonial
e monárquica, já sob a República e em meio à modernização industrial, as
classes dominantes no Brasil só permitiriam que os partidos nacionais e
de massa se desenvolvessem pelos breves 19 anos que vão de 1945 a 1964.

Na saída da ditadura, há uma proliferação de novas organizações. Somente
entre 1979, ano da Lei Orgânica dos Partidos, e 1990, 20 organizações
surgem no Brasil. Mas a fragmentação partidária tampouco foi um
acidente; tratou-se uma estratégia do regime militar, sob quem a nova
organização partidária brasileira surgira, para garantir uma transição
segura.

Do início da Nova República até os dias de hoje, as características de
longa duração da organização partidária brasileira se manteriam na maior
parte dos partidos: 1 – baixa inserção nas massas; 2 – baixo nível de
identificação partidário-ideológica no povo em geral e até entre seus
membros; 3 – escassa inserção nacional; 4 – alto comprometimento
pragmático-institucional, pouco comprometimento ideológico; 5 – alta
dependência de figuras individuais.

Dos partidos ali surgidos até tempos recentes, o único que escapará
dessa conformação é o Partido dos Trabalhadores. Trata-se do segundo
maior partido em número de filiados, o mais pujante em termos de
identificação partidário-ideológica, o mais avançado em termos de
inserção nacional: o único grande partido surgido na Nova República que,
do Oiapoque ao Chuí, conta com uma ampla base militante, comprometida e
identificada com o partido, mais ou menos identificada com um programa
mínimo (embora este seja constantemente rebaixado).

Tão poderosa é essa organização na trajetória brasileira que, assim como
o PTB varguista, sua tentativa de destruição levou não só à sua derrota
(no caso do PT, momentânea), mas também à destruição da oposição que a
organizara: no pós-golpe de 2016, o PSDB desapareceu (foi de 54
deputados em 2014 para 29 em 2018, chegando a 13 hoje), e o MDB encolheu
(66 assentos em 2014; 34 em 2018; 42 hoje). Também tal qual no passado,
sua tentativa de destruição trouxe de volta à cena política o primeiro
partido nacional brasileiro – o irregular Partido Fardado.

O PT, no entanto, não foi capaz de superar a dependência da organização
de uma figura individual (Lula), e nos últimos anos, na medida em que
avança no seu comprometimento pragmático-institucional, borra e
enfraquece o seu engajamento ideológico.

A inovação da atual fase histórica, com o bolsonarismo, não é que haja
um movimento de extrema-direita de massas no Brasil – isso o
integralismo foi – mas sim que este tenha, ao mesmo tempo, uma forte
inserção institucional, e que seja suficientemente descentralizado e
amplo para abarcar diversos partidos ou candidatos individuais,
impactando o cenário político como um todo sem se comprometer com as
limitações que a organização partidária impõem. O bolsonarismo é mais
massivo do que foi a UDN, mas muito mais flexível do que foi a AIB;
efetivamente, trata-se de um movimento que disputa hegemonia num sentido
gramsciano, tal qual fizera o PT nos anos 80 – em outras palavras, é um
movimento com constante inserção em grupos sociais diversos, com a
capacidade de pô-los em movimento, organizando-os como uma força mais ou
menos homogênea, sem no entanto comprometê-los com uma hierarquia rígida.

Estas considerações todas são fundamentais na conjuntura atual: capaz de
resistir à sua tentativa de destruição, o petismo reemergiu em 2022, com
a missão declarada de reconstituir o ideário da Nova República <https://
revistaopera.operamundi.uol.com.br/2023/01/05/o-homem-da-nova-republica-
forca-e-hegemonia-no-governo-lula/>. Sua estratégia foi tentar recompor
com as forças características daquele período político por meio da
frente ampla, sem se dar conta de importantes diferenças conjunturas e
de alguns problemas que a estratégia impõe: primeiro, que a própria
conjuntura do início da Nova República, e as organizações políticas nela
inscritas, estavam influenciadas pela disputa hegemônica das esquerdas,
capazes então não só de mobilizar o consenso, como também sua força – é
notável, por exemplo, que no mesmo ano que o Brasil elegia Collor,
também criava o SUS, por meio de uma longa trajetória de lutas (hoje o
Brasil elege Lula e avança na privatização e precarização da saúde);
segundo, que hoje há a extrema-direita a mobilizar o binômio gramsciano,
influenciando, portanto, todas as outras forças políticas, tanto mais
quando não limitada pela forma partido – isto é, há anos as ruas e a
disputa ideológica nas bases deixaram de ser monopólio das esquerdas;
terceiro, que a hegemonia novo-republicana, do ponto de vista das
classes dominantes, não era a composição por elas /desejada/, mas a /
possível/naquele período histórico, e que o objetivo dessas classes
dominantes sempre foi superá-la, em especial no que toca aos aspectos
sociais da Constituição de 1988; quarto, que desde o período colonial
até a ditadura, conter o surgimento de partidos nacionais massivos
sempre foi o sonho das classes dominantes. Assim prosseguem elas, “quase
sempre cordiais uns para com os outros, sempre duros e implacáveis para
com subalternos”.

No afã de barrar o bolsonarismo, o governo Lula III parece ter se
inaugurado sob a infantil crença de que as classes dominantes também se
preocupam com a democracia. Só faltou questionar-se qual democracia “os
nossos senhores empresários, doutores e comandantes” pretendiam
defender, e se mesmo o PT cabe nela.

Já está evidente: não cabe. No que tange à economia, o governo Lula até
aqui não arranha sequer no verniz o modelo neoliberal, mediando cada boa
nova ao povo com uma chuva de boas notícias ao capital (Desenrola, Minha
Casa Minha Vida, Novo PAC) e em muitos casos só diferenciando sua agenda
da Ponte para o Futuro de Temer no que se refere a uma maior efetividade
do governo petista em aplicá-lo (Arcabouço Fiscal, Plano Safra recorde).
As medidas mais corajosas foram interromper o processo de privatização
de oito importantes estatais, ainda em janeiro de 2023, sem no entanto
tocar no que foi privatizado; a breve pressão sobre a taxa de juros no
início do governo; a aprovação da taxação dos fundos exclusivos
(cinicamente propagandeada pelo governo como uma “taxação dos super-
ricos”). A tão comemorada Reforma Tributária só mirou, até agora, a
simplificação, sem tocar na injustiça tributária que sobretaxa os pobres
via consumo. Ainda assim, nas colunas econômicas dos jornais, a sensação
alardeada é que trata-se de um governo demasiadamente esquerdista e
gastão, às portas de levar o Brasil ao caos econômico.

Não sendo essas entregas suficientes para acalmar as classes dominantes,
o governo concede também na arena política. Além da amplíssima frente
estabelecida já na posse, efetivamente foi o governo, em especial por
meio do ministro Múcio, que avançou a /anistia política/às Forças
Armadas, que, tal como planejaram <https://
revistaopera.operamundi.uol.com.br/2023/03/04/expressas-comando-militar-
virou-jornal/>, limparam suas fardas da lama e do sangue por sua
associação ao governo Bolsonaro e por seu golpismo latente (manifestado
antes, durante e depois de Bolsonaro, vale recordar). O 7 de setembro
não foi mais que um evento de relações públicas a favor dessa limpeza
<https://revistaopera.operamundi.uol.com.br/2023/09/09/jogo-de-cena-
militar/>(o lema: “Democracia, soberania e união”); o governo, depois de
insistir que não faria GLO, fez uma GLO que “não é bem uma GLO <https://
revistaopera.operamundi.uol.com.br/2023/12/06/ano-termina-com-militares-
impondo-sua-realidade-concreta-ao-governo/>”; e Lula pessoalmente se
envolveu no negacionismo militar <https://
blogdaboitempo.com.br/2021/04/15/negacionismo-de-esquerda-militares-e-
genocidio/>, ao vetar cerimônias sobre o 60º aniversário do golpe e
declarar que “não vai ficar remoendo” a história. No Congresso, dobra-se
completamente ao Centrão, sem mediar as necessárias concessões com
pautas de seu interesse e chamamentos à pressão popular – pelo
contrário, no geral concede para aprovar medidas de ortodoxia econômica,
e agora se fala até em só tratar dessas pautas, para evitar derrotas
como a imposta no tema das “saidinhas” de presos. Na comunicação,
reserva as maiores verbas a quem o fustiga <https://
www1.folha.uol.com.br/poder/2024/03/jornal-nacional-lidera-verba-de-
publicidade-em-primeiro-ano-de-
lula-3.shtml#:~:text=O%20presidente%20Lula%20em%202024&text=R%C3%A1dios%20recebem%2012%25%20da%20verba,mais%20receberam%20verba%20do%20governo.>e chama o silêncio e a covardia de republicanismo: em nenhuma das quatro ocasiões em que falou em Rede Nacional (1 de Maio  de 2023, 7 de setembro de 2023, Natal de 2023, e Dia das Mães de 2024) comprou qualquer enfrentamento ou fez qualquer conclamação por mobilização; em todas elas, o tom foi o de propaganda de margarina. Isso apesar das oportunidades que a intentona de 8 de janeiro, as revelações sobre a participação de militares no golpismo e a tragédia no Rio Grande do Sul ofereceram.


       Leia também – 1964: cinco lições do golpe militar para o
      presente  <https://
      revistaopera.operamundi.uol.com.br/2024/04/01/1964-cinco-licoes-
      do-golpe-militar-para-o-presente/>

A extrema-direita já fala em impeachment; a “direita tradicional” já
busca sua sempre desejada terceira via, em fórmulas esdrúxulas como
“bolsonarismo moderado”. Convém lembrar que mesmo quando a disputa ficou
entre o hoje aplaudido ministro da Economia, Fernando Haddad, e o
capitão Bolsonaro, a opção das classes dominantes – ainda que
reconhecendo-a como uma “escolha muito difícil” – foi pelo segundo.

Na história brasileira, Lula III é um governo de transição: não é
improvável que seja o último com Lula à frente. Não trata só do País
durante este quatro anos; carrega também o futuro do PT, e com isso o
destino do único grande partido nacional e de massas do Brasil. Tudo
constante, as classes dominantes manterão boas opções para cumprir o
objetivo histórico de destruí-lo: o mais arriscado e draconiano
impeachment, improvável mas não impossível; a imposição do
parlamentarismo, sonho molhado dos ricos efetivado em 1961 e derrotado
um ano antes do golpe de 1964; ou simplesmente a eterna aposta na
“terceira via”, hoje abarcando até governadores sanguinolentos como
Tarcísio – nossos ricos não têm restrições democráticas quanto às
execuções sumárias na Baixada Santista ou sobre a militarização do
ensino público, embora tanto esforço façamos para incluí-los em nossas
“frentes pela democracia”.

Com o que vem apresentando até aqui, o governo Lula não só deixa estes
três caminhos bem abertos à preferência das elites; também as assegura
de que acabará sem meios para enfrentar qualquer um deles.

/*(*) Pedro Marin* é editor-chefe da Revista Opera. É autor de
“Aproximações sucessivas – o Partido Fardado nos governos Bolsonaro e
Lula III (Escritos: 2019-2023)” <https://baionetaeditora.com.br/produto/
aproximacoes-sucessivas-o-partido-fardado-no-governo-bolsonaro-e-lula-
iii-escritos-2019-2023/>./

Em
OPERA MUNDI
https://revistaopera.operamundi.uol.com.br/2024/06/11/o-esforco-de-lula-e-inutil-o-sonho-das-classes-dominantes-e-destruir-o-pt/
11/6/2024

quinta-feira, 6 de junho de 2024

No México, o Ocidente enfrenta seu maior medo: supermaiorias de esquerda

 


Ramin Mazaheri – 04 de junho de 2024

O "México" não é o que o Ocidente insiste que é: um Estado falido. Reportagem da Cidade do México

A vida do mexicano médio não é definida por imigração, refugiados ou transeuntes – esse é um problema principalmente dos estados fronteiriços. Como pode um país de 130 milhões de pessoas – o maior país de língua espanhola do mundo – ser definido por algumas centenas de milhares de solicitantes de asilo?

A vida do mexicano médio não é dominada pela insegurança – esse é um problema principalmente para o punhado dos chamados “narcoestados”. É como supor que o centro de Cabul já esteve cheio de campos de papoula e guardas armados…

A história do “México” – ou seja, de toda a nação – é a de uma unidade política e de um otimismo que, em 2024, é estatística e culturalmente incrível. A OCDE observou isso antes da votação: Os mexicanos têm mais otimismo econômico em relação ao futuro do que qualquer outra grande economia do mundo (eles estão empatados com a Costa Rica e são superados apenas pela Dinamarca).

E então você tem os resultados das eleições… que história.

Os resultados aproximados dizem que os esquerdistas varreram tudo – a presidência, essencialmente uma supermaioria de 2/3 em ambas as casas do Congresso, 9 dos 11 cargos de governador em disputa, eles têm supermaiorias em 2/3 das legislaturas estaduais – e qualquer pessoa que examine qualquer coisa nesses anos após a histeria divisiva da Covid, este é o ângulo que qualquer repórter deve adotar, não?

É certamente um prazer informar. Sim, a reunião da noite da eleição da presidente eleita Claudia Sheinbaum na central e impressionante praça Zocalo/Plaza de la Constitución foi um tanto desprovida de emoção, mas isso é o que acontece quando você derrota seu principal oponente por uma margem de mais de 2 para 1. Não sou um jornalista viciado em adrenalina que está morrendo de vontade de cobrir uma eleição disputada no México – eles estão felizes, eu estou feliz.

A maior parte das minhas reportagens nos EUA e na Europa é sobre cidadãos que lutam com unhas e dentes por ideias com as quais não se importam e que nem mesmo os afetam – esse é totalmente o objetivo da grande mídia. As ideias mais amplas que eles precisam e querem para rejuvenescer suas vidas e sociedades estão totalmente fora de cogitação. Olhar para as eleições mexicanas e não ver essa enorme onda da “maré rosa” latino-americana de 20 anos – mas, em vez disso, apenas violência e domínio de gangues – seria mais um exemplo desse ocidente falando sobre nada em um sentido político.

Portanto, é lamentável que, no que diz respeito ao México, a história ocidental seja a mesma desde que a “ditadura camuflada” de sete décadas do partido PRI e o governo de 18 anos e três ciclos dos conservadores terminaram com Andrés Manuel Lopez Obrador há seis anos: o crime das drogas e os refugiados são a prova de que o México é um “estado falido”.

Tem sido um momento de “ligar os pontos” quando menciono essa teoria a jornalistas mexicanos: Assim que o esquerdista AMLO entrou em cena, o México foi reduzido a essas duas questões, assim como o Irã foi reduzido ao xale e à proibição do álcool. O Ocidente não fará uma reportagem positiva – ou mesmo objetiva – sobre qualquer nação onde esteja ocorrendo uma política verdadeiramente progressista, e isso não mudará em junho de 2024.

Mas que mudança impressionante: a unidade política nacional genuína e de base de qualquer tipo é tão rara hoje em dia, não? E somente um trotskista ranzinza poderia se recusar a admirar o esquerdismo do Partido Morena de AMLO (“Morena” lembra intencionalmente a amada Nossa Senhora de Guadalupe).

Há um motivo simples para esse “jornalismo de distração”: os esquerdistas mexicanos conquistaram um enorme controle político devido aos esforços de redistribuição econômica e aos programas sociais aos quais o México resistiu por muitas décadas. Os mexicanos viram o quanto essas reformas – em oposição às deformações liberais pró-1% – podem ajudar um país em que 70% dos trabalhadores (com muitos trabalhem informalmente) ganham menos de US$ 900 por mês, o que representa algumas centenas a menos do que a linha de pobreza para uma família de quatro pessoas.

(Curiosamente, para mim: o símbolo do dólar americano foi, na verdade, retirado dos mexicanos! Os mexicanos não estão dispostos a abrir mão de seu símbolo monetário, portanto, devo deixar claro que me referi a 900 dólares americanos por mês, e não a pesos mexicanos. É incrível que esses dois países persistam no que deve causar muitos problemas banais…)

O peso está forte, a economia está forte, o salário mínimo foi dobrado enquanto o resto de nós está perdendo muito poder de compra com a inflação, a confiança dos mexicanos no governo nacional dobrou de forma impressionante nos últimos 6 anos, AMLO foi talvez o político mais popular do mundo, a taxa de homicídios diminuiu um pouco após o abandono da fracassada guerra total contra os cartéis em favor de uma política verdadeiramente rotulada como “Abraços, não balas”, programas de bem-estar social que deram a dezenas de milhões de mexicanos pobres, estudantes, idosos, deficientes e outras classes precárias salários mais altos, pensões ou alguma forma de estabilidade econômica – precisa de mais motivos para os esquerdistas vencerem de forma tão convincente? Não poderia ser mais simples, como repórter.

Precisa de mais motivos para que o Ocidente só fale de guerra de gangues e refugiados? Cuba, Venezuela, China, Irã – onde quer que os esforços de redistribuição econômica de inspiração esquerdista tenham sido instalados democraticamente, a função do jornalista ocidental é distrair, ignorar e ofuscar – por isso a política editorial singular de “insegurança mexicana”.

Também não está sendo discutida a iminente guerra financeira contra o novo governo mexicano. Enormes saídas de capital, guerra contra o peso mexicano (queda imediata de 3% no dia seguinte à surpreendente vitória esmagadora, embora os resultados só sejam divulgados oficialmente em 8 de junho) e propaganda interminável sobre o que o México não é – é isso que o Ocidente faz quando qualquer governo de esquerda chega ao poder.

As saídas de capital já começaram, pois lembremos que 5 das 6 maiores economias latino-americanas são atualmente administradas por esquerdistas, sendo a Argentina dirigida pelo libertário [libertário no sentido de neoliberal – nota do tradutor ] Javier Milei. Nas cinco maiores economias latino-americanas, US$ 137 bilhões de dólares americanos foram retirados em 2022 por pessoas e empresas, segundo a Bloomberg. Esse é o maior valor desde 2010, e é simplesmente assim que os ricos criam problemas financeiros para os governos de esquerda: o dinheiro ganho no país foge, a economia sofre, a inflação aumenta e a agitação se intensifica, e é assim que o ciclo de governos de esquerda de curta duração é criado em todo o mundo. Talvez você não fosse nascido, mas em 1981 a França elegeu democraticamente provavelmente a plataforma mais esquerdista da história do Ocidente – a guerra econômica das altas finanças levou à infame reviravolta de Mitterrand em 1983.

Com relação à insegurança, os americanos basicamente me disseram que eu precisava de um guarda armado para sair do aeroporto sem ser sequestrado, quando o que aconteceu foi totalmente o oposto. Um colega que mora aqui há anos disse que, na verdade, se sente mais seguro na Cidade do México do que em Paris; acho que eu poderia andar pela pior “zona proibida” de Paris, alegada pela Fox News, em um terno feito de dinheiro e ficar bem, então acho que essa pessoa está dizendo muita coisa.

Ao contrário, na última vez em que estive nos EUA, uma discussão entre dois carros a menos de 5 metros atrás de mim passou de uma briga por causa de uma buzina para alguém que levou uma dúzia de tiros (a pessoa estava em estado crítico no hospital, pela última vez que verifiquei). Uma bala perdida poderia ter me matado facilmente. Isso ocorreu em um bairro muito bom – eu estava voltando da cobertura de uma manifestação pró-Gaza no bairro “Gold Coast” de Chicago.

Há partes ruins na Cidade do México? Sim, mas o absurdo da cobertura dos EUA é que eles agem como se não houvesse bairros perigosos nos Estados Unidos! Os Estados Unidos têm muitos problemas e a insegurança é um deles – outro problema definitivamente é a NÃO instalação de políticas econômicas socialistas.

Por que a enorme vitória da esquerda e o igualmente enorme gemido do imperialismo ocidental/das altas finanças? Os programas sociais liderados pelo Partido Morena mudaram radicalmente o México para melhor, foram amplamente adotados como uma revelação de estabilidade econômica e progresso social, e a reeleição política dos programas sociais foi tão enfática que a opinião da supermaioria mexicana agora tem esses programas prontos para serem consagrados na constituição, tornando efetivamente o México um país novo, progressista e inspirado pela esquerda de muitas maneiras bem reais.

Essa é a história, objetivamente – quem poderia errar? 

Em

SAKERLATAM

 https://sakerlatam.blog/no-mexico-o-ocidente-enfrenta-seu-maior-medo-supermaiorias-de-esquerda/

6/6/2024

 


terça-feira, 4 de junho de 2024

O legado de Raúl Castro

 


Tradução
Mauro Costa Assis

O ex-guerrilheiro e revolucionário cubano Raúl Castro nasceu neste dia em 1931. Ao longo de sua carreira, dois estereótipos enganosos distorceram nossa visão sobre ele, que não era nem uma sombra pálida de seu irmão, nem um ideólogo pró-soviético, mas uma importante figura histórica que desempenhou um papel fundamental na formação do sistema cubano para, em seguida, reformá-lo.

Em 19 de abril de 2021, o Oitavo Congresso do Partido Comunista Cubano finalmente encerrou a era política dos Castros ao eleger Miguel Díaz-Canel Bermúdez, presidente nacional desde 2018, como o novo primeiro secretário do partido. Essa mudança ocorreu após a confirmação de Raúl Castro, em 16 de abril, de que ele se retiraria após dois mandatos consecutivos, conforme havia prometido em 2011.

Embora não tenha sido nenhuma surpresa que Raúl tenha cumprido sua promessa, já tendo feito o mesmo com a presidência cubana em 2018, sua saída teve importância simbólica, encerrando a “geração histórica” de ex-guerrilheiros rebeldes em posições de autoridade. Então, neste momento de transição, o que devemos pensar dos anos de Raúl no poder e de sua importância geral na trajetória e no formato da Revolução Cubana de 1959 em diante?

Lendas dinásticas

As reações da mídia mundial à mudança do partido eram previsíveis, principalmente descartando Raúl como o irmão mais novo de Fidel e a sombra, e vendo sua liderança dentro da estrutura enganosa de uma dinastia Castro ao estilo da Coréia do Norte. De fato, em 2008, quando a Assembleia Nacional elegeu Raúl como presidente, a noção de “dinastia” era apenas a mais recente de uma longa linha de estereótipos que se acumulou a partir do início dos anos 1960 sobre a Revolução Cubana e sua liderança.

Esses estereótipos tendiam então a ver a revolução como uma tomada popular do poder por um caudilho supostamente típico e carismático da América Latina – começando cinco décadas de foco obsessivo na pessoa de Fidel – ou como um igualmente típico satélite comunista soviético ligado ao marxismo-leninismo. Ambos os conjuntos de suposições ressurgiram no período de 2006-8, quando Fidel adoeceu e “entregou” o poder a seu irmão, e novamente em abril de 2021.

Aqueles que fizeram essas primeiras suposições não perceberam que a revolução como um processo havia começado em 1959, encerrando a rebelião anterior contra o governo de Fulgencio Batista. Foi uma iniciativa amplamente popular para iniciar um processo de construção da nação para um estado que, depois de suportar o domínio colonial espanhol por cerca de oitenta anos a mais do que o resto da América espanhola, se tornou uma neocolônia formal dos Estados Unidos.

Os Estados Unidos condicionaram a independência cubana formal em 1902 à inclusão na Constituição cubana da Emenda Platt, que restringia sua soberania como Estado-nação por pelo menos trinta anos. Washington então supervisionou mais vinte e cinco anos de hegemonia econômica e política. Em 1959, a construção da nação ainda era algo a ser alcançado, e a maioria dos cubanos sabia disso – os rebeldes certamente sabiam. A única pergunta era “como?”

Em última análise, a resposta veio das próprias tradições de dissidência radical de Cuba – como visto na fusão de nacionalismo e socialismo que podia ser encontrada na negligenciada Constituição de 1940 do país – e do discurso prevalecente de anticolonialismo no mundo descolonizante: a saber, através de alguma forma de socialismo. No entanto, isso ainda deixava a questão de que tipo de socialismo deveria ser.

A emergência de Raúl

Foi aí que Raúl Castro entrou em cena, como uma das figuras-chave na adoção pela liderança cubana de um modelo socialista próximo à abordagem soviética. Esse foi um papel que em parte deu origem aos estereótipos sobre ele.

Em 1958, antes da vitória dos rebeldes do Movimento 26 de julho, Raúl era relativamente desconhecido em Cuba. Embora tenha seguido a trajetória acadêmica de seu irmão na Faculdade de Direito da Universidade de Havana, sua trajetória política foi diferente. Como um ativista estudantil em 1952-1953, ele gravitou em torno do comunista Partido Socialista Popular (PSP). Ele se juntou à delegação cubana que viajava para um Congresso da Juventude organizado por Moscou em 1953 na Europa Oriental, e à ala jovem do PSP, Juventude Socialista (JS).

Em seu retorno a Cuba, Fidel disse a Raúl sobre o plano iminente de atacar a guarnição de Moncada de Santiago de Cuba em 26 de julho de 1953. As pessoas que traçaram o plano eram um pequeno grupo pertencente ao Partido Ortodoxo de esquerda nacionalista – formalmente conhecido como o Partido do Povo Cubano. O golpe de Batista em março de 1952 negou ao partido a vitória amplamente esperada nas eleições que aconteceriam em junho, com Fidel como um de seus candidatos ao Congresso.

Apesar das origens deste projecto no Ortodoxo, Raúl concordou imediatamente em aderir. Esta foi uma postura que logo o distanciou do PSP, que condenaria veementemente o ataque de Moncada. O PSP também condenou a expedição de dezembro de 1956 lançada por Fidel do México e a campanha de guerrilha que se seguiu, até que a pressão interna obrigou o partido a aceitar o inevitável e se juntar à aliança rebelde em meados de 1958.

Raúl deixou o JS logo após Moncada. Preso na prisão da Ilha de Pines até junho de 1955, ele se politizou com os outros rebeldes. Ele os acompanhou ao México após sua libertação, a fim de se preparar para o lançamento de uma rebelião guerrilheira.

Esse link para o PSP atraiu a atenção da seção de inteligência da embaixada dos Estados Unidos em 1956. Tentando adivinhar a forma de uma futura Cuba sob o Movimento 26 de julho, eles procuraram o vermelho debaixo da cama ao estilo característico da Guerra Fria.

Junto com Che Guevara – sobre cujas interpretações não convencionais do marxismo eles nada sabiam – eles identificaram Raúl como o candidato mais provável para esse papel. Daí em diante, ele se tornou seu vermelho estatutário, um “ideólogo endurecido” pró-soviético. Essa definição contradizia estranhamente a narrativa da dominação total de Fidel ao retratar Raúl como o gênio do mal que supostamente planejava uma mudança para colocar Cuba sob o controle soviético.

Àquela altura, porém, um Raúl diferente estava surgindo. Embora ele tivesse sido apenas um soldado de infantaria no ataque de Moncada, ele subiu nas fileiras rebeldes à medida que suas qualidades se tornaram claras e sua importância cresceu. Foi ele quem apresentou Che Guevara ao grupo no México, estabelecendo assim a estreita e duradoura camaradagem ideológica entre Fidel e Che.

Nos treinamentos, Raúl mostrou-se líder e habilidoso estagiário, o que lhe valeu a capitania na eventual expedição no iate Granma. Depois que as tropas de Batista dispersaram violentamente a força rebelde três dias após o desembarque, ele liderou um pequeno grupo de sobreviventes para se juntar ao grupo igualmente diminuto de Fidel. Junto com os homens de Che, eles criaram a base do Exército Rebelde na Sierra Maestra oriental.

Em meados de 1958, sua liderança, nous política e habilidades militares lhe renderam o comando de uma frente de guerrilha separada na vizinha Sierra del Cristal. Nessa função, ele demonstrou as mesmas habilidades de liderança, mas também uma eficiência administrativa que ficaria evidente nos anos posteriores.

Mais importante ainda, embora tivesse rompido com o PSP, o seu marxismo – já mais profundo que o do irmão – deu-lhe a noção clara de que as pessoas sob o seu comando deviam receber uma educação política. Ele também viu a importância da colaboração com os quadros locais do PSP.

Institucionalizando a revolução

Essa vontade de colaborar continuou depois de janeiro de 1959. O PSP agora oferecia o apoio incondicional de seus membros – as estimativas variam de seis a dez mil – e tornou-se parte da emergente aliança rebelde tripartite. Isso gerou alarme e ressentimento no Movimento 26 de Julho, mas Raúl e Che viram o valor da inclusão do PSP e de laços mais estreitos com a União Soviética. Isso inevitavelmente reforçou as suposições sobre Raúl como um ideólogo comprometido.

Em 1960, essas suposições se tornaram mais fortes, quando Raúl, um dos três principais líderes da revolução cubana, recebeu o comando e o controle ministerial sobre as novas Forças Armadas Revolucionárias (FAR). Na verdade, seu papel no FAR o tornou central em grande parte de todo o processo, defendendo a revolução contra ameaças externas. Esse papel também alimentou em parte seu entusiasmo por ligações com Moscou, por meio de um relacionamento crescente com os militares soviéticos. No entanto, sua estratégia preferida para defender Cuba, por meio de uma “guerra de todo o povo” ao estilo guerrilheiro, diferia de suas recomendações.

Havia também outra dimensão para a admiração de Raúl pela URSS, já vislumbrada na Serra: sua crença na organização eficaz e na estabilidade econômica. Como muitos outros, Raúl percebeu que ambos estavam presentes na URSS, ignorando quaisquer dúvidas que ele pudesse ter nutrido sobre a falta de responsabilidade nas estruturas soviéticas. Sua crença na necessidade de um partido único eficaz, responsável e internamente democrático permaneceu consistente ao longo das décadas, refletindo sua preferência por incentivos materiais (em vez dos morais enfatizados por Che), responsabilidade constante e debate efetivo.

Essa preferência o fez saudar o período menos frenético e menos emocionante de “institucionalização” que se desenrolou em Cuba a partir de 1975. Durante este período, muitas vezes erroneamente referido como de “sovietização”, estruturas de estilo soviético substituíram a mobilização e a liderança cubana declarou que a revolução de seu país estava empenhada em uma transição para o socialismo, ao invés do objetivo de alcançar o comunismo rapidamente estabelecido por Che na década de 1960.

Raúl saudou a perspectiva de maior estabilidade e uma relação mais próxima com Moscou – as relações cubano-soviéticas tinham azedado danificamente desde a época da crise dos mísseis em outubro de 1962, atingindo o ponto mais baixo em 1968. Ele também acolheu a ideia de um Partido Comunista Cubano que se reuniu no congresso no ciclo programado de cinco anos: enquanto o primeiro congresso do partido, originalmente previsto para ser realizado em 1970, foi adiado por mais cinco anos, o segundo começou no prazo em 1980.

No entanto, seria errado ver quaisquer diferenças políticas ou ideológicas importantes entre Fidel e Raúl. Ambos acreditavam no mesmo projeto, aquele que haviam concebido em 1953 e moldado de forma mais concreta entre 1956 e 1959: a construção da nação pelo socialismo. Eles diferiam apenas em suas preferências sobre os meios de chegar ao socialismo e a velocidade desse processo.

Fidel concordou muito mais com a noção de Che das condições subjetivas para o socialismo – compromisso ideológico e conciencia sob a liderança de uma vanguarda comprometida – que poderia superar as barreiras objetivas. O ex-PSP e os líderes soviéticos argumentaram que o socialismo era impossível em Cuba, quanto mais o comunismo, por causa desses obstáculos objetivos.

Embora não concordasse totalmente com o PSP e Moscou, Raúl sempre favoreceu um impulso mais comedido em direção ao socialismo, com responsabilidade estruturada e recompensas materiais apropriadas – mas limitadas, mas sempre com um etos claramente socialista e moral por trás de tudo. A abordagem de Fidel ditou uma confiança na mobilização e “paixão”, enquanto Raúl enfatizou a estrutura e a viabilidade pragmática, mas eles trabalharam em conjunto. Ambos viam a meta como o processo de construção da nação que ainda faltava a Cuba em 1959.

Atualizando o sistema

Essa ainda era a meta de Raúl quando, em 2008, ele tranquilizou os duvidosos de que suas propostas de reforma não o tornariam Mikhail Gorbachev de Cuba. Não foi eleito, disse, para “destruir a Revolução”, como alguns temiam, mas como alguém que necessariamente “atualizava” o socialismo cubano para se adequar a um novo mundo, garantindo sua sobrevivência.

A Constituição de Cuba de 2019 mais tarde descreveria isso como um processo “em transição para o socialismo”. Como tal, ela poderia e deveria ser alcançada por meio de estruturas que funcionassem adequadamente com total responsabilidade e comunicação interna, não por meio de um partido ao qual as pessoas se unissem para o autopromoção, como Raúl observara no bloco socialista liderado pelos soviéticos pré-1989. Tão moralista quanto Fidel, ele abominava a corrupção como algo que solapava a consciência socialista.

A partir de 1986, Cuba adotou uma estratégia conhecida como “Retificação” (“dos erros do passado e das tendências negativas”). O papel de liderança de Raúl nessa estratégia tornou absurda a simplificação comum de que constituía um retorno aos anos 1960. Enquanto a ascensão de Gorbachev ao poder na URSS teve muitas implicações para Cuba, o foco de Raúl estava na mensagem subjacente para a economia cubana: o relacionamento benéfico com a URSS iria acabar, e os cubanos precisavam se preparar para isso por meio de racionalização econômica.

O colapso da URSS e do bloco socialista em 1989-91 ultrapassou esse processo de racionalização, desencadeando a crise mais profunda da revolução, momento em que Raúl veio à tona. Desmentindo sua imagem de ideólogo rígido e de linha dura, ele liderou o impulso urgente de reformas sem precedentes para “salvar a revolução”. Mostrou-se um negociador paciente mas determinado, que teve o cuidado de trazer consigo os dirigentes que duvidavam do alcance das reformas. A recuperação da economia cubana deveu-se em grande parte à presença de sua mão no leme, que acabou com a rígida centralização e restaurou o trabalho autônomo privado abolido em 1968.

Os acontecimentos no período de 2006-8, quando Raúl foi eleito para suceder Fidel, estimularam a noção de uma “dinastia” castrista entre os observadores externos. Muitos dos que acalentavam essa ideia esqueceram que Raúl devia seu título de vice-presidente sênior, não a qualquer relação familiar com o Comandante, mas a sua condição de único dos três líderes que restaram ao lado de Fidel. Ele, portanto, gozava de uma legitimidade histórica que já havia lhe dado autoridade suficiente para assumir o controle efetivo em meados de 2007, tendo em vista a condição crônica de saúde de Fidel.

Ele usou a mesma legitimidade para lançar a crítica mais feroz e abrangente à revolução que havia sido ouvida dentro de Cuba em 26 de julho, de uma forma que muitos acharam chocante, e para decretar a abertura de um debate nacional prolongado e público, via as Organizações de Massa e o Partido, para levar essa crítica adiante. Foi uma estratégia brilhante, usando o feedback daqueles que amplamente acolheram suas críticas e propostas como munição para desafiar a resistência antecipada da hierarquia do partido.

Embora essa resistência tenha durado três anos, em 2011, Raúl forçou o partido a convocar seu Sexto Congresso – que deveria ter sido retido em 2002 – embora com compromissos. Eleito primeiro secretário, passou a ter plena autoridade para reformar, sin prisa pero sin pausa (sem pressa, mas também sem pausa).

Novas direções

O que se seguiu pareceu transformar Cuba. Houve um anúncio surpresa de reconhecimento total dos EUA em 2014-15, embora o embargo permanecesse firme em vigor, aplicado pelo Tesouro dos EUA. As reformas que Raúl iniciou em 1992-93 foram ainda mais longe em áreas como trabalho autônomo e liberdade de viagem.

Nesse ínterim, no entanto, duas outras coisas mudaram. Em primeiro lugar, estava claro em 2006 que a liderança cubana havia discretamente reduzido a “Batalha de Idéias” que Fidel lançou seis anos antes, com o objetivo de revigorar a juventude cubana ideologicamente por meio da cultura, educação e mobilização. Isso refletia a preferência de Raúl por estabilidade produtiva em vez da custosa “paixão”.

Em segundo lugar, houve mudanças dentro do partido no poder. Antes de se tornar líder, Raúl já havia iniciado um processo de renovação em nível provincial, trazendo líderes mais jovens. Depois de 2008, ele continuou esse trabalho no governo, eliminando gradualmente a geração histórica e fortalecendo a autoridade da Assembleia Nacional.

Ao cumprir sua promessa de se aposentar como presidente de Cuba após dois mandatos, Raúl usou seus três anos restantes como líder do partido para continuar o esforço de renovação, distanciando o partido de uma participação ativa no governo, ao mesmo tempo que esclareceu seu papel como fonte de orientação ideológica. Em 2019, Díaz-Canel pediu-lhe para liderar a comissão para a nova constituição de Cuba. Raúl sabia que essa carta atualizada era necessária para legitimar a Cuba emergente e atualizar suas estruturas de legalidade.

O documento trazia a marca de Raúl. Ele manteve muitos aspectos da primeira constituição da revolução de 1976, que parecia seguir os modelos soviéticos, mas mudou sutilmente suas definições ideológicas. No lugar do compromisso com o marxismo-leninismo – sempre uma abreviatura de comunismo de estilo soviético – havia referências sem hifenização ao “marxismo, leninismo” como fontes de inspiração política, junto com as ideias de José Martí e Fidel Castro.

A Constituição de 2019 também começou a estabelecer uma separação de poderes, refletindo as dúvidas conhecidas de Raúl sobre a concentração de poder antes de 2008. Ela compartilhava a responsabilidade pelo governo entre quatro centros potenciais: o presidente nacional de Cuba, que ainda era eleito indiretamente; um primeiro-ministro para o governo do dia-a-dia; o presidente do reformado Conselho de Estado e Assembleia Nacional; e o líder do partido.

A combinação da presidência de Donald Trump com a pandemia de COVID-19 transformou o contexto externo em que essas alterações estavam sendo feitas. Primeiro, Trump impôs um pacote de duzentas e quarenta medidas para endurecer o embargo, depois a pandemia teve um impacto drástico na receita do turismo. A combinação produziu uma profunda crise econômica.

Essa crise acelerou a implementação de uma política que estava muito atrasada: a abolição do sistema de moeda dupla confuso e corrosivo de Cuba. Criado em 1993 como um conserto de curto prazo, já estava causando distorções econômicas e sociais no final daquela década, mas ninguém – incluindo o governo cubano – parecia saber como ou quando poderia ser encerrado. A COVID-19 forneceu a oportunidade de fazê-lo por necessidade.

Em dezembro de 2020, o povo da ilha ouviu um anúncio chocante de que seu governo fundiria as duas moedas a partir de 1º de janeiro de 2021. A mudança ameaçava causar desafios reais para muitos cubanos, mas provavelmente traria benefícios de longo prazo para a maioria . Embora a mudança tenha vindo de Díaz-Canel, ele nunca a teria proposto sem a aprovação ideológica de Raúl.

No geral, os estereótipos dominantes de Raúl sempre estiveram longe do alvo. Ele não era um irmão mais novo irrelevante, nem um gênio do mal, nem um ideólogo de linha dura, nem um chato “homem de sistemas”, mas sim o último dos três líderes históricos da revolução cubana, um dos que planejaram embarcar em um projeto de construção da nação por meio de alguma forma de socialismo.

Depois de suceder Fidel em 2006-8, ele herdou um processo que precisava urgentemente de ajuste. Ele se propôs a reformar, atualizar, reestruturar e agilizar o máximo que pudesse, precisamente para preservar a essência e o objetivo original da revolução. O futuro do sistema que ele ajudou a construir e transformar agora está nas mãos de uma nova geração.

Sobre os autores

é professor de história da América Latina no Centro de Pesquisa sobre Cuba da Universidade de Nottingham. Seu livros são: "Leadership in the Cuban Revolution: The Unseen Story", "A Short History of Revolutionary Cuba: Revolution, Power, Authority" e "The State from 1959 to the Present Day and Cuba in Revolution: A History Since the Fifties".

 
Em
JACOBINA
O legado de Raúl Castro
https://jacobin.com.br/2024/06/o-legado-de-raul-castro/
4/6/2024