segunda-feira, 23 de junho de 2014

Capitalismo, violência e decadência sistémica.

Capitalismo, violência e decadência sistémica. Do fim do começo ao começo do
fim


por Jorge Beinstein [*]

Da Líbia à Venezuela, passando pela Síria, México, Ucrânia, Afeganistão
ou Iraque, no que já decorreu da década actual presenciámos o
desdobramento planetário permanente da violência directa ou indirecta
(terciarizada) dos Estados Unidos e dos seus sócios-vassalos da NATO. Toda
a periferia foi convertida no seu mega objectivo militar. A onda agressiva
não se acalma, em alguns casos combina-se com pressões e negociações mas a
experiência indica que o Império não agride para se posicionar melhor em
futuras negociações e sim que negoceia, pressiona, com o fim de conseguir
melhores condições para a agressão.

Estas intervenções quando têm "êxito", como na Líbia ou no Iraque, não
concluem com a instauração de regimes coloniais "pacificados", controlados
por estruturas estáveis, como ocorria nas velhas conquistas periféricas do
Ocidente, e sim com espaços caóticos dilacerados por guerras internas.
Trata-se da emergência induzida de sociedades-em-dissolução, da
configuração de desastres sociais como forma concreta de submetimento, o
que coloca a dúvida acerca de se nos encontramos diante de uma diabólica
planificação racional que pretende "governar o caos", submergir as
populações numa espécie de indefensão absoluta convertendo-as em
não-sociedades para assim saquear seus recursos naturais e/ou anular
inimigos ou competidores... ou, ao contrário, trata-se de um resultado não
necessariamente buscado pelos agressores, expressão do seu fracasso como
amos coloniais, da sua alta capacidade destrutiva associada à sua
incapacidade para instaurar uma ordem colonial ("incapacidade" decorrente
da sua decadência económica, cultural, institucional, militar).
Provavelmente encontramo-nos diante da combinação de ambas as situações.

Também é possível supor que o Império, na sua decadência, se encontra
prisioneiro de um emaranhado de interesses políticos, financeiros,
mafiosos... conformando uma dinâmica auto-destrutiva imparável que o
obriga a desenvolver operações irracionais se observamos o fenómeno com um
certo distanciamento histórico, mas completamente racionais se reduzimos a
observação ao espaço da razão instrumental directa dos conspiradores, ao
seu micromundo psicológico (a razão da loucura como razão de estado ou
astúcia mafiosa impondo-se à racionalidade no seu sentido mais amplo,
superior).

Ainda que esses desastres não representem necessariamente acções de
verdugos impiedosos a destruírem paraísos periféricos, o capitalismo é uma
totalidade global e o que aparece como a decadência do centro imperial é a
manifestação decisiva mas parcial de um fenómeno planetário que inclui a
periferia presa na armadilha da sobredeterminação burguesa universal
(decadente) das suas sociedades. A operação de destruição da Líbia
lançando sobre o seu território ondas de mercenários e bombardeamentos
pôde triunfar graças à degradação do regime kadafista; o golpe neonazi de
Fevereiro de 2014 na Ucrânia capturou o governo de uma "república"
resultante do desastre soviético que a havia submergido num gigantesco
apodrecimento seguido pela instauração de um capitalismo mafioso; a
desestabilização da Venezuela orquestrada pelos Estados Unidos apoia-se em
sectores das classes médias conduzidos pela velha burguesia local que não
foi eliminada depois de quinze anos de "revolução" ("bolivariana"
autoproclamada "socialista") eternamente a meio caminho... essas elites
não foram varridas do cenário ainda que fossem irritadas, enfurecidas pela
ascensão social das classes baixas.

Tudo isto nos conduz à necessidade de estabelecer o momento da história do
capitalismo em que nos encontramos. Trata-se do bordel sangrento global
prelúdio de uma nova acumulação primitiva berço de um futuro
super-capitalismo ou dos golpes finais, desesperados, de uma civilização
que entrou no ocaso?

Proponho responder a essa pergunta utilizando aquela velha e tão repetida
frase de Churchill em plena Segunda Guerra Mundial quando, ao terminar a
batalha de El Alamein, assinalou que esse facto era não "o começo do fim
(da guerra) e sim o fim do começo" de um processo muito mais importante,
decisivo. Encontramo-nos actualmente na presença do fim do começo , vai-se
concluindo a etapa preparatória do declínio ocidental que se prolongou
durante várias décadas e começa a emergir o começo do fim , o
desmoronamento do capitalismo como civilização que, como outras
civilizações em declínio, provavelmente percorrerá uma trajectória
temporal complexa de duração indeterminável de antemão.

Ainda que não possa deixar de assinalar diferenças decisivas com as
civilizações anteriores, como seu carácter planetário (não limitado a uma
região), a massa de população incluída no processo (actualmente umas sete
mil milhões de pessoas e não apenas umas poucas dezenas ou centenas de
milhões) e o descomunal desenvolvimento das suas forças produtivas, com
capacidade industrial e militar para destruir totalmente a vida no
planeta. O que coloca de maneira radicalmente distinta o opção que
enfrentaram todas as decadências de civilizações: superação ou afundamento
num longo desastre do qual emergia mais adiante uma nova civilização no
espaço anterior ou imposta por uma força externa. Isto não é a decadência
da Babilónia devastada pelos pântanos difusores de malária gerados pelo
seu próprio desenvolvimento, nem da Roma imperial esmagada pelo
parasitismo e a hipertrofia militar, resultado da sua dinâmica
imperialista marchando em direcção ao abismo enquanto boa parte do resto
da humanidade ignorava esses factos. [1]

Violência e decadência sistémica

O fenómeno sobredeterminante é a decadência, demonstrada por numerosos
indicadores como o declínio a longo prazo (desde os anos 1970) da taxa de
crescimento económico global activada pelo arrefecimento tendencial do
crescimento dos países centrais e a seguir pelo acompanhamento desta
tendência por um processo de hipertrofia financeira que se articula com um
aparelho parasitário sem precedentes: consumista, militar e burocrático.

Encontramo-nos diante de sociedades imperiais tão decadentes que já não
podem mobilizar militarmente a sua juventude como no século XX, ainda que
a sua capacidade financeira e os seus avanços tecnológicos lhe permitam
contratar mercenários em substituição das forças operativas tradicionais
(a oferta de lumpens proveniente de todos os continentes é directamente
proporcional ao progresso da decadência), utilizar armas como os drones e
outros artefactos mortíferos super refinados que estabelecem um fosso
técnico descomunal entre agressores e agredidos e, finalmente, esmagar com
manipulações mediáticas suas vítimas directas e o resto do mundo.

Estas "vantagens" são ao mesmo tempo expressões de poder e de fraqueza, de
capacidade destrutiva mas também de descontrole ideológico das suas
próprias sociedades, da ilegitimidade interna das suas operações, o que
somado à sua deterioração económica impede-os de passar da destruição à
reconstrução colonial dos territórios conquistados.

As transformações burguesas das sociedades europeias haviam gerado, desde
os fins do século XVIII, a possibilidade de integrar o conjunto da
população às suas diferentes aventuras militares. Desse modo, o
cidadão-soldado e a guerra de massas substituíram o mercenário e os
exércitos das aristocracias. Os assassinos a soldo cederam lugar aos
assassinos voluntários ou forçados que entregavam a sua vida não por
dinheiro e sim pela defesa da "pátria", da "liberdade", etc.

Mas a decadência do capitalismo e a sua transformação, depois do
aggiornamento burguês da China e do derrube da URSS, em sistema único (ou
seja, em dominação planetária, visivelmente amoral das elites
parasitárias) deitou abaixo os mitos, as legitimações que permitiam aos
estados fabricar causas nobres para enviar à morte o cidadão comum.

A perda de legitimidade do aparelho militar ocidental surge como um traço
decisivo da decadência, mas a reprodução imperialista continua e o
exercício da violência contra a periferia retoma a velha tradição dos
exércitos mercenários.

Agora a propaganda do poder junto às suas populações não tem como
objectivo arrastá-las ao campo de batalha (operação inviável) e sim,
antes, obter a sua aprovação passiva ou diluir a sua recusa diante de
aventuras fisicamente distantes apresentadas como fenómeno virtual, como
um elemento mais do entretenimento brindado pela televisão e outros meios
de comunicação.

O desdobramento bélico foi teorizado pela chamada Guerra de Quarta Geração
, resultado das reflexões no alto nível militar dos Estados Unidos
posteriores à derrota do Vietname, visualizada como "guerra assimétrica"
onde a força inimiga com baixo nível tecnológico e reduzida potência de
fogo, mas bem integrada à população, pôde derrotar o exército imperial
possuidor de um elevado nível tecnológico e um gigantesco poder de fogo.

A nova doutrina militar aponta não para a simples destruição da força
militar inimiga e sim, principalmente, para o conjunto da sociedade que a
sustenta. A desintegração social (económica, moral, cultural,
institucional) passa a ser o objectivo procurado e esse processo pode-se
dar ou não com intervenções directas e sim, antes, com combinações
variáveis de intervenções externas (militares, mediáticas, económicas,
etc) e acções de desestabilização interna.

Estabelece-se assim uma ampla variedade de cenários de agressão. Num
extremo podemos localizar as guerras do Afeganistão e Iraque, numa zona
intermédia a Líbia, a Síria ou a Jugoslávia e, no outro extremo, as
chamadas intervenções suaves ou revoluções coloridas como no Paraguai,
Honduras ou Ucrânia. Todas elas implicam o desenvolvimento intenso de
acções violentas no começo da operação, em algum momento da mesma ou como
resultado da vitória imperialista. Mas estas guerras de configuração
variável não resolvem o problema da dominação colonial da periferia, o
caos instalado entorpece, encarece ou por vezes torna impossíveis os
saqueios sistemáticos.

O atalho da Guerra de Quarta Geração aparece como o que realmente é: o
máximo possível de agressão num contexto de debilidade estratégica do
agressor cujo resultado é não só a caotização periférica como também a
degradação interna. As operações mafiosas em direcção ao exterior acabam
por consolidar práticas mafiosas dentro do aparelho dominante do Império,
onde se propagam as camarilhas parasitárias, as tendências irracionais, as
loucuras elitistas, as rupturas das regras de jogo institucionais.

Começo do fim: o mundo depois de 2008-2013

O sexénio 2008-2013 marca a transição entre o declínio relativamente suave
e controlado do sistema, iniciado no princípio dos anos 1970, e a sua
degradação geral de que estamos a presenciar os primeiros passos.

A crise desencadeada entre fins dos anos 1960 e princípios dos anos 1970
não foi superada como as anteriores, através de uma grande onda depressiva
destruidora de empregos e empresas que, reduzindo salários e concentrando
a produção e a procura solvente, disparava um novo ciclo ascendente da
economia. A era das "crises cíclicas", descritas por Marx, havia
concluído. Ainda que Marx explicasse que essas crises recorrentes iriam
acumulando desordem no sistema – até que as forças entrópicas adquirissem
uma dimensão tal que já nenhuma reconstrução capitalista seria possível.
Ficava assim prognosticada a crise geral do capitalismo, o esquema teórico
decorrente da lógica da sua dinâmica de acumulação O que de modo algum
podia ser prognosticado era o seu desenvolvimento histórico concreto, seus
tempos, seus protagonistas de carne e osso, os atalhos e inovações sociais
que permitiram adiar ou precipitar o desenlace.

A avaliação prospectiva de Marx era um cenário muito geral que dava
cabimento a uma ampla gama de futuros possíveis. Não se tratava de uma
profecia apocalíptica na qual se estabelece uma data ou como calculá-la,
descrições precisas de actores e coreografia, etc. Mas esse esquema
teórico permitia a Marx e Engels explicar, por exemplo, que "dado um certo
nível de desenvolvimento das forças produtiva, surgem forças de produção e
de meios de produção tais que nas condições existentes provocam
catástrofes, já não são mais forças de produção e sim e destruição" [2] ,
o que abria a reflexão acerca do carácter auto-destrutivo da civilização
burguesa na sua etapa decadente mais avançada.

E isso começou a ser inegável em torno de 2008-2013, ainda que muito antes
desse período fossem aparecendo sinais de alerta a respeito – quase sempre
ignorados pelos grandes meios de comunicação e pelas ciências sociais.
Quando se referiam a possíveis desastres ambientais, sanitários ou
políticos atribuíam-nos a manejos irracionais corrigíveis no interior do
sistema. A isso apegaram-se "a partir da esquerda" alguns adoradores
masoquistas do capitalismo, propondo uma espécie de eternização dos seus
ciclos, tentando destacar na crise em curso os sinais da próxima
recuperação do sistema. Mas esses sinais eram puras fantasias ou então
ladainhas conservadoras baseadas em que "sempre" o capitalismo havia
conseguido superar suas crises, naturalmente à custa dos trabalhadores – o
que normalmente entristecia o auditório (e não muito o orador).

Dentre os variados factores da decadência destacam-se dois que são
decisivos: a degradação (e hipertrofia) financeira e a degradação (e
hipertrofia) militar.

A partir de 1990 (aproximadamente), enquanto o Produto Mundial Bruto vinha
decrescendo suavemente em progressão aritmética (desde os anos 1970), a
massa financeira começou a crescer em progressão geométrica. Os produtos
financeiros derivados, sua espinha dorsal, que nos fins dos anos 1990
representavam umas duas vezes o PBM, em 2008 passaram a representar umas
12 vezes o PBM – mas a partir daí a expansão estancou e tendeu a decrescer
pouco a pouco.

Durante a sua ascensão a especulação financeira foi a muleta parasitária
que permitiu aos consumidores, empresas e estados do Primeiro Mundo
continuarem a gastar e investir apesar de os rendimentos marginais da
avalanche financeira serem decrescentes em termos de crescimento do
produto bruto dos países centrais. Cada vez era precisa mais droga
financeira para obter cada vez menos expansão económica – até que
finalmente, em 2008, o mecanismo quebrou: o peso financeiro tornou-se
insustentável e desencadeou-se um rodopio de auxílios estatais ao sistema
financeiro a fim de impedir a sua derrocada.

Mas estes auxílios não reactivavam a economia. Apenas travavam a derrocada
financeira, fazendo aumentar as dívidas públicas até o ponto de o estado
norte-americano ter estado duas vezes à beira do incumprimento (default),
enquanto as dívidas públicas mais as privadas do Japão chegaram em 2013 a
520% do PIB, a 510% na Grã-Bretanha, etc. A partir daí, os auxílios
esgotaram-se e o Primeiro Mundo entrou no que, no melhor dos casos para
ele, poderia ser descrito como um longo período de estancamento, recessões
e crescimentos anémicos que não devem ser pensados como um planalto de
arrefecimento estável da produção, do consumo e do emprego e sim como um
tobogã descendente.

O crescimento zero ou o declínio, ainda que suave, significam o aumento
tendencial do desemprego e em consequência a entrada num complexo fenómeno
de desintegração social.

Por sua vez, a militarização dos Estados Unidos não terminou com o fim da
guerra fria. Após um breve estancamento em fins dos anos 1990 recomeçou a
expansão das despesas militares. Foi de tal modo que em 2012 o seu volume
real (somando todas as verbas com finalidade militar do estado, não apenas
as do Departamento da Defesa) chegou a um número equivalente a cerca de 9%
do Produto Interno Bruto [3] . Aquilo que poderíamos considerar como área
militar e de segurança deslizou do passado "clássico", povoado por
militares e agentes profissionais de tipo tradicional adstritos
directamente à administração pública, para uma nova etapa com participação
crescente de mercenários, estruturas privadas contratadas pelo estado e
uma multidão de organizações públicas e privadas informais oscilando entre
a legalidade e a ilegalidade, misturadas com negócios clandestinos
(drogas, prostituição, tráfico de armas, etc). Guerra de Quarta Geração,
lumpen-burguesia financeira e lumpen-militarismo converteram-se no núcleo
duro ideológico físico de uma elite imperial degradada que alguns autores
assinalam como lumpen-imperialista [4] .

Mas assim como a mega bolha financeira primeiro escorou o funcionamento do
sistema e a seguir converteu-se num salva-vidas de chumbo, a degeneração
militarista-mafiosa e sua doutrina nova surgiram como a tábua de salvação
de estruturas militares e de inteligência ineficazes diante de uma
periferia aparentemente pronta a ser devorada mas que lhes escapava das
mãos. Contudo, essas esperanças eram ilusórias. A única coisa que
conseguiram foi destruir países, fracassar na tentativa ou ambas as coisas
ao mesmo tempo, acumulando despesas e défices fiscais: a criminalidade
converge com a estupidez.

A "transição 2008-2013" significou uma mudança fundamental nas formas da
guerra (sua degradação radical) que deixou a descoberto o carácter da
mutação em curso do conjunto do capitalismo. Em meados dos anos 1950 e
fazendo referência à então recente prática bélica nazi, Johan Huizinga
assinalava que historicamente a guerra sempre havia feito parte das
civilizações ou culturas "uma vez que uma comunidade (em guerra)
reconhecia a outra (contra a qual fazia a guerra) como humana... e
separava claramente e de maneira expressa a guerra da paz, por um lado, e
da violência criminosa, por outro. A teoria da guerra total – destacava o
historiador – renunciou ao último resto lúdico da guerra (ou seja, a toda
regra de jogo) e com isso à cultura, ao direito e à humanidade em geral"
[5] .

No meu entender, a ruptura hitleriana em relação à prática e à teoria da
guerra, ou seja, a "guerra total" e seus genocídios, foi uma antecipação,
um primeiro ensaio em plena crise capitalista do que actualmente surge
como Guerra de Quarta Geração. No primeiro caso tratou-se de uma
monstruosidade precoce, pioneirismo "alemão" mas com antecedentes na
cultura mais reaccionária dos Estados Unidos. Autores como Domenico
Losurdo estabeleceram de maneira rigorosa as evidentes raízes ideológicas
estado-unidenses do nazismo [6] . Esse desastre exprimia a doença de uma
civilização que ainda dispunha de reservas sistémicas (morais, produtivas,
institucionais, etc) para recompor-se e que ainda não havia sofrido uma
metástase geral. O tumor hitleriano foi extirpado parcialmente e o mal
pôde sobreviver ocultando-se nas sombras à espera de uma nova
oportunidade. Nos julgamentos de Nuremberga, os crimes de guerra (a
violação das regras do jogo da guerra moderna) foram condenados
selectivamente da maneira difusamente contida.

Em fins dos anos 1930 Hermann Rauschning escreveu uma obra essencial para
entender o funcionamento do fenómeno: "La revolución del nihilismo". O
autor acertou ao assinalar que "a essência da dominação nazi é o
niilismo", a negação simultaneamente criminosa e suicida da realidade
humana, mas equivocou-se completamente quando prognosticou que "esse
fanatismo produzido e difundido pela maquinaria do poder é tão vazio, tão
artificial e inautêntico que todo esse gigantesco aparelho poderia ruir de
um dia para o outro por causa de um só acontecimento sem deixar qualquer
rastro de vida autónoma" [7] . Rauschning não soube (ou não quis)
aprofundar o bisturi até o fundo, se o fizesse teria sido obrigado a
colocar no banco dos réus o conservadorismo burguês no seu conjunto e, a
partir daí, os aspectos destrutivos (e auto-destrutivos) da civilização
ocidental à qual se orgulhava de pertencer.

Agora, quando vemos o cancro fascista propagar-se tranquilamente por toda
a Europa ao ritmo da crise, desde o avanço irresistível da Frente Nacional
em França até a vitória neonazi na Ucrânia, passando pela Holanda,
Bélgica, Croácia, Hungria, os países bálticos, Grécia, etc, não podemos
deixar de constatar o enraizamento profundo do mesmo não só na tragédia
dos anos 1920-1930-1950 como também em histórias muito mais antigas, em
fanatismos religiosos, em genocídios coloniais e outras práticas sociais
de grande crueldade (o nazismo clássico não era superficial nem
inautêntico, fundia suas raízes na longa trajectória criminal do
Ocidente).

Mas o mais significativo e terrível foi a reinstalação sem maiores
escândalos da doutrina hitleriana da guerra total, rebaptizada Guerra de
Quarta Geração e por vezes adocicada como "golpes gentis" ou "suaves" ou
sob a delirante apresentação de guerras ou bombardeamentos "humanitários".
Agora já não se trata de uma experiência pioneira e em certo sentido menos
surpreendente, "anormal", e sim de um vale-tudo aceite pelo conjunto das
elites imperialistas. O facto de que a forma capitalista de fazer a guerra
haja sofrido tal transformação está estreitamente vinculado à (faz parte
da) transformação do capitalismo num sistema destruidor de forças
produtivas estendendo-se ao contexto ambiental com suas terras, mares,
montanhas, animais, etc a apontarem para a aniquilação de todo o
património histórico da humanidade, de toda a acumulação de civilizações.

Retorno à origem?

Poderíamos estabelecer paralelos entre a conjuntura actual e as origens da
modernidade. Robert Kurz pôs em evidência as origens militares do
capitalismo. Por volta do século XVI, segundo Kurz, "não foi a força
produtiva e sim, pelo contrário, uma contundente força destrutiva que
abriu o caminho à modernização, a saber, a invenção das armas de fogo. A
produção e mobilização dos novos sistemas de armas não eram possíveis no
plano de estruturas locais e descentralizadas que até então haviam marcado
a reprodução social, requeriam sim, em diversos planos, uma organização
completamente nova da sociedade. As armas de fogo, sobretudo os grandes
canhões, já não podiam ser produzidas em pequenas oficinas, como as
pré-modernas armas de ponta e gume. Por isso desenvolveu-se uma indústria
de armamentos específica, que produzia canhões e mosquetes em grandes
fábricas" [8] .

Um bom exemplo disso é a presença em pleno século XVI do célebre Arsenal
de Veneza , fábrica militar muito admirada na sua época, provavelmente a
primeira indústria moderna, que inspirou muitos empreendimentos militares
e civis posteriores e cuja organização produtiva baseada numa divisão
eficaz de tarefas esboçava o modelo que vários séculos depois, no início
da revolução industrial, foi descrito por Adam Smith.

Foi efectivamente em torno dos desenvolvimentos militares que se foram
gerando redes comerciais e financeiras que permitiam aos príncipes e
demais senhores da guerra lançarem suas aventuras.

As mesmas estavam destinadas às lutas intestinas das aristocracias e à
repressão das massas camponesas. Contudo, o seu objectivo principal era a
pilhagem da periferia, o que disparou decisivamente e alimentou durante
séculos a emergência e consolidação do capitalismo, seus mercados
centrais, sua ciência, sua arte e sua expansão industrial e tecnológica
(existe, por exemplo, uma abundante literatura quanto à incidência da
inundação de ouro e prata proveniente das colónias americanas na
transformação burguesa da Europa) [9] .

Foi a aliança militar-parasitária, entremeada de mercenários, aristocracia
militarizada, comerciantes-bandidos, usurários de alto nível, etc que
constituiu a plataforma de lançamento da conquista da periferia,
permitindo que uma relativamente pequena economia guerreira realizasse uma
pilhagem desmesurada em relação à sua dimensão inicial. No século XVI o
produto bruto do Ocidente apenas superava os 10% do que poderíamos
considerar como produto bruto mundial, contra 23%-24% para a China ou
27%-28% para a Índia [10] .

Houve uma primeira tentativa: as Cruzadas, quando aproximadamente nos
séculos XII e XIII os ocidentais lançaram uma sucessão de invasões ao rico
Oriente Próximo, ocupando parte do seu território [11] .

Mas essa colonização fracassou apesar da enorme crueldade aplicada. Os
povos invadidos dispunham de uma capacidade militar que lhes permitiu
expulsar o invasor por meio do que poderíamos chamar guerra de longa
duração. A disparidade militar entre invasores e invadidos não foi
suficientemente grande para garantir a derrota definitiva das vítimas.

A situação foi-se alterando a partir do século XV e experimentou uma
grande viragem no século XVI, quando o Ocidente adquiriu uma superioridade
técnico-militar decisiva sobre o resto do mundo.

A batalha de Lepanto (1571) provou a superioridade técnica ocidental
sobre o Império Otomano. A eficácia do Arsenal de Veneza esteve por trás
dessa vitória [12] . Meio século antes os espanhóis haviam utilizado sua
esmagadora superioridade técnica para arrasar o Império Asteca, que não
conhecia a pólvora nem as armas metálicas.

Essa superioridade militar do Ocidente não foi produto do acaso, apoiou-se
no vertiginoso desenvolvimento da sua ciência militar. Durante os séculos
XV e XVI, a engenharia militar esteve no centro no Renascimento europeu,
herdava a engenharia militar medieval que por sua vez mantinha vínculos
com a ciência militar da antiguidade greco-romana. Bertrand Gille relata
que "quando em 1328 Felipe V de Valois concebeu o projecto de partir para
as cruzadas, Guy de Vigevano converteu-se no seu conselheiro militar e
escreveu para o rei um tratado sobre máquinas de guerra ... que pode ser
considerado como um dos principais antecedentes da ciência militar
posterior". Gille destaca que "certas ilustrações do tratado apresentam
analogias surpreendentes com algumas imagens de antigos manuscritos gregos
e romanos" que, junto com outros desenvolvimentos medievais, demonstram
segundo o autor uma clara continuidade científico-técnica no tema militar
desde a Grécia e Roma até chegar aos séculos XV e XVI [13] .

A continuidade histórica da "procura" (o militarismo) para essa ciência
remonta primeiro à Idade Média europeia. Uma das suas características
principais foi o sobredimensionamento dos seus dispositivos bélicos, a
excessiva proliferação de organizações militares conduzidas por príncipes
aspirantes a imperadores e titulares de "impérios" como Carlos Magno,
passando por senhores da guerra de toda dimensão, bandos de mercenários,
etc. Militarismo feudal entrelaçado historicamente com a Antiguidade
europeia guerreira e imperialista, constatemos só que, como observa James
O'Donnell em relação ao império romano já em decadência: "depois de
chegar ao trono no ano 284 o imperador Diocleciano e seus sucessores
puderam restaurar as fronteiras romanas e a ordem romana multiplicando por
cinco ou dez o número de soldados e funcionários. Diocleciano aumentou o
número de soldados para 400 mil e mais tarde chegou a alcançar os 650 mil"
[14] .

No seu livro "Matança e cultura" [15] Victor Hanson desenvolve a longa
trajectória belicista do Ocidente e, ao referir-se às suas vitórias
militares do século XVI, assinala que "o dinamismo militar europeu era um
contínuo da Antiguidade clássica, não uma consequência casual da idade da
pólvora e do descobrimento do Novo Mundo... desde a Grécia até o
presente... as afinidades demonstradas pelas sociedades ocidentais na sua
forma de fazer a guerra tornam-se assombrosamente duradouras" e acrescenta
a seguir: "as falanges macedónias, tal como o exército de Cortes, a
frota cristã que combateu em Lepanto e a companhia de fuzileiros
britânicos que defendeu Rorque's Drift (1879, África, as tropas coloniais
foram derrotadas pelos zulus) dispunham de um armamento muito superior ao
dos seus adversários".

Não se trata só de superioridade técnica e sim da extrema crueldade na sua
"forma de fazer a guerra", o que leva o autor (apesar da sua admiração
para com o Ocidente) a assinalar que: "alguns estudiosos equiparam
Alexandre Magno a César... ou a Napoleão, com os quais compartilhava sua
vontade de ferro, seu génio militar inato e a busca de um império mais
poderoso do que os recursos naturais da sua terra nativa permitia.
Alexandre, com efeito, mantém afinidades com eles, mas com ninguém se
parece mais que com Adolf Hitler". O paralelo inevitável entre as falanges
gregas, as legiões romanas, os cruzados, as tropas coloniais espanholas,
inglesas, francesas e os exércitos hitlerianos estabelece o fio condutor
"ocidental" de uma longa sucessão de guerras, conquistas e matanças.

A acumulação primitiva do capitalismo baseou-se, com êxito, no saqueio
desmesurado da periferia e com recursos naturais gigantescos,
relativamente "infinitos" dado o nível técnico e a capacidade de rapina
dos imperialistas europeus daquele tempo. Mas essa desmesura é impossível
actualmente, o planeta é demasiado pequeno para as necessidades do que
seria um novo processo de acumulação capaz de potenciar o parasitismo
ocidental até gerar uma espécie de super-capitalismo global.

As potências centrais são suficientemente grandes para destruir o planeta
(o que significaria sua auto-destruição) e é por isso, por causa do seu
gigantismo, que não se podem salvar, iniciar um novo ciclo ascendente
devorando recursos humanos e naturais, ainda que para sobreviver como
império precisem alimentar-se das suas vítimas. Isto assinala uma
diferença qualitativa essencial com o que ocorreu há cinco séculos. Agora
a violência imperialista não é a de um monstro vigoroso, na sua infância
ou juventude, e sim a de um monstro velho e obeso.

Ocidente

É preciso associar conceitos artificialmente dissociados como "civilização
ocidental", "civilização burguesa", "Império" (ocidental) e "capitalismo".
O capitalismo surge como um fenómeno histórico com raízes geográficas
ocidentais bem delimitadas que carregavam uma pesada herança cultural
específica. O Ocidente emergiu como um empreendimento imperialista
colectivo, agrupando vários estados, expandindo-os globalmente e ao mesmo
tempo envolvidos em ferozes disputas intestinas. A unificação chegou, após
um longo percurso de muitos séculos, no final da Segunda Guerra Mundial
sob o comando de uma super-potência não europeia: os Estados Unidos.

O irromper da guerra de 1914, mas especialmente a ruptura russa de 1917,
assinalou o início do declínio ocidental – ainda que a tendência tenha
parecido reverter-se nos anos 1990 com o derrube da URSS e em certo
sentido, antes, a partir da reconversão capitalista da China. Mas não foi
assim, da desintegração soviética após uma década de desastres surgiu a
Rússia como potência militar-energética cada vez mais autónoma ainda que
mantendo laços comerciais e financeiros estreitos com o Ocidente e do
aburguesamente chinês não nasceu um país subdesenvolvido dócil aos
interesses norte-americanos como a Índia ou o México e sim uma potência
periférica também com importantes margens de autonomia.

A deterioração geral da dominação ocidental, da sua hierarquia
imperialista, ou seja, do capitalismo como sistema mundial, engendrou o
fenómeno da despolarização, do descontrole periférico. A China e a Rússia
mas também o Irão, e os jogos mais ou menos independentes de alguns
estados "progressistas" da América Latina ilustram o processo. Os bárbaros
do século XXI organizam-se sem tutela romana ou a negociarem com a Roma
moderna já não como simples vassalos, mas essa Roma não pode reproduzir-se
como tal, seu parasitismo não pode sobreviver sem os tributos crescentes
dos seus súbditos periféricos, necessita cada vez mais sangue das suas
vítimas (petróleo barato, lítio, ouro, cobre, salários miseráveis, maiores
vantagens comerciais, mega-transferências financeiras, etc) enquanto as
vítimas vão encontrando caminhos para reduzir a pilhagem graças
precisamente ao enfraquecimento do parasita (o que não impede em certos
casos que bárbaros pilhem-se entre si).

Algumas precisões podem nos ajudar a entender melhor o que está a ocorrer.


Em primeiro lugar, o facto de que a consolidação dos estados burgueses
centrais tem estado (e continua a estar) estreitamente associada à
expansão e consolidação colonial, à extracção maciça de riquezas da
periferia, permitiu e continua a permitir a integração das sociedades
centrais e a permanência do seu guardião estatal-militar. O fim ou o
enfraquecimento grave da referida exploração assinalaria o eclipse desses
estados e das suas bases sociais.

Em segundo lugar, a comprovação de que o capitalismo é um sistema baseado
num encadeamento de hierarquias fortemente autoritárias, desde a empresa
em ascensão até chegar ao centro do poder mundial através de uma complexa
articulação de estados, grupos económicos, instituições internacionais,
meios de comunicação, etc. A hierarquia imperialista do capitalismo é
inerente ao mesmo, é a sua forma histórica, concreta, de reprodução. Nunca
foi uma articulação pacífica e sim um conjunto violento e instável onde a
autoridade é ganha e conservada com guerra, pressões, armadilhas, etc. Mas
até ao fim da Segunda Guerra Mundial essa hierarquia jamais pôde
estruturar-se em torno de um único centro estatal, super-imperialista, de
poder. Desde o início da modernização e sua sombra colonial encontramo-nos
perante sucessivas rivalidades e guerras inter-imperialistas.

A fantasia da globalização regida por uma só potência mundial, apesar de
insinuar concretizar-se nos longínquos anos 1990, foi-se desvanecendo na
década seguinte. A submissão da Europa e do Japão à chefia estado-unidense
continua a basear-se na degradação de ambos os sócios menores; factos
recentes como os da Líbia, Síria e Ucrânia são bons exemplos disso. Mas
acontece que o chefe imperial também se degrada, o que introduz a
incerteza quanto ao futuro dessa convergência central. Pelo seu lado, a
periferia vai-se descontrolando precisamente quando mais necessário é o
seu controle (super-exploração) para a reprodução do parasita. Em
consequência o império enfurece-se, desespera-se, resgata toda a sua
memória racista não só para expulsar ou reduzir à escravidão os intrusos
periféricos que se instalam nos territórios imperiais como também para
converter seus países de origem em zonas de caça livre.

Esta última etapa ilumina toda a história anterior do sistema, destrói
seus mitos decisivos, deixa a descoberto sua falsidade essencial.
Sobretudo o mito do capitalismo como progresso, como etapa superior na
sucessão de civilizações, ou seja, como a mais potente negação da
barbárie.

Boa parte das ideologias anti-capitalistas dos séculos XIX e XX
apresentavam a superação do capitalismo como uma espécie de continuidade a
um nível superior, de negação inicial, revolucionária, apoiada nos êxitos
"positivos" do velho mundo (o projecto de ruptura albergava
condicionamentos culturais que asseguravam a reprodução de aspectos
decisivos da civilização burguesa).

Mas a degeneração em curso desse sistema retira o véu ideológico e mostra
o seu verdadeiro rosto. Os feitos aparentemente positivos da sua
tecnologia (em que o capítulo militar é decisivo) surgem inscritos num
contexto de conquistas coloniais com centenas de milhões de assassinatos,
com liquidações de criações culturais, qualificadas com desprezo como
atraso ou subdesenvolvimento, depredando até à extinção uma ampla
variedade de recursos naturais.

Podemos incluir um pequeno acrescento entre parênteses à célebre expressão
de Voltaire para afirmar que a civilização (burguesa) não suprimiu a
barbárie e sim que a aperfeiçoou. O capitalismo não deve ser assumido como
uma etapa em última instância positiva na marcha do progresso humano e sim
como uma desgraça, como um desastre, uma degeneração cuja não existência
teria evitado numerosas tragédias. O balanço histórico da sua evolução é
globalmente negativo, muitos dos seus progressos científicos e
tecnológicos teriam sido obtidos seguindo provavelmente outros ritmos e
caminhos mas em contextos sociais menos terríveis.

Hegel, nas suas lições de filosofia da história, estabelecia que o
desenvolvimento da liberdade, componente da marcha da Civilização
entendida como encadeamento de civilizações, como a evolução do progresso
universal, nascia penosamente no Oriente (ou seja, na periferia) para
realizar-se integralmente no Ocidente com a vitória mundial da sua
civilização, da modernidade burguesa [16] . A soberba eurocêntrica
impedia-o de perceber que a liberdade periférica (embrionária, em
desenvolvimento) havia sido arrasada, abortada, liquidada por um Ocidente
parasitário e depredador concretizando a maior matança da história humana
e sua civilização sanguinária só podia afirmar-se repetidamente por meio
da força bruta, dos seus dispositivos militares contra os povos oprimidos
da periferia (e quando foi necessário também contra suas próprias
populações como o demonstrou o fascismo europeu do século XX, agora em
pleno renascimento).

A subestimação, o desprezo ocidental, sua visão desumanizante das culturas
periféricas, constitui uma peça chave da sua ideologia imperial
estruturada durante muitos séculos de saqueio. A animalização da imagem do
homem do "resto do mundo" fez parte da construção psicológica que
facilitou ao colonizador do Ocidente a realização dos grandes genocídios
legitimados como obra civilizadora. A ignorância ou desprezo das riquezas
culturais da periferia, da criatividade das suas bases sociais, do
potencial de autonomia das suas comunidades camponesas não só armadilhou o
cérebros das elites ocidentais como também uma boa parte dos seus inimigos
internos. Foi assim que Gramsci pôde chegar a afirmar que na velha
periferia pré capitalista "o Estado era tudo, a sociedade civil era
primitiva e gelatinosa" ao passo que no Ocidente existia uma robusta
sociedade civil [17] o que não permite explicar como fizeram, por exemplo,
as populações andinas da América para sobreviver culturalmente ao
genocídio inicial da conquista seguido por mais de cinco séculos de
opressão e pilhagem ocidental, ou outras proezas culturais dos periféricos
da Ásia e da África.

É necessário entender que o declínio em curso do mundo ocidental se
converte em degeneração do seu tecido ideológico e económico planetário,
ou seja, do capitalismo como totalidade universal. Desde os anos 1970
sucederam-se as ilusões quanto às emergências capitalistas não ocidentais,
desde o milagre japonês, passando pelos tigres e dragões da Ásia (Coreia
do Sul, Formosa, etc) até chegar à China. Em todos esses casos era
evidente que as expansões industriais exportadoras que lideravam os
desenvolvimentos "milagrosos" se apoiavam nas necessidades dos mercados
ocidentais ou de mercados periféricos fortemente dependentes dessas
procuras. Em consequência, a deterioração dos referidos mercado golpeia os
capitalismos não ocidentais. Além disso, factos como a hipertrofia
globalizada das redes financeiras estabeleciam um só espaço mundial
estreitamente intercomunicado. Portanto, a impossível desfinanciarização
do capitalismo constitui um bloqueio comum do qual não podem escapar nem o
centro nem a periferia. Esta última, além disso, quando embarca na
prosperidade burguesa fica submetida ao modelo consumista, às pautas
ideológicas ocidentais que têm efeito destrutivo devastador (familiar,
comunitário, ambiental).

Em meados de 2008, em plena explosão financeira, Richard Haass ,
presidente do Council on Foreign Relations dos Estados Unidos, publicou um
artigo onde lançava o sinal de alarme: a unipolaridade estava condenada à
morte e não tendia a ser substituída pela multipolaridade, estava
começando a emergir um mundo não polarizado que o autor carregava de
imagens caóticas [18] . Haass percebia que o fim da hierarquia
imperialista, unipolar desde 1991 e multipolar em toda a história anterior
do sistema (incluído o período de auge do império britânico) podia chegar
a ser uma espécie de "fim do mundo", de ruir da "civilização", ou seja, de
desarticulação do capitalismo como cultura universal e naturalmente
adiantava algumas medidas correctivas que permitiriam atenuar o suposto
desastre.

Haass tinha razão quando advertia que a não polaridade albergava o
fantasma do fim da "civilização" (burguesa). George W. Bush e depois
Barack Obama tentaram impedir esse futuro introduzindo correctivos
militares que acabaram por agravar a enfermidade do império propagando o
caos onde lhes foi possível.

Por sua vez, potências periféricas como a Rússia e a China não estão em
condições de reordenar, no sentido burguês do termo, a desordem causada
pela decadência ocidental através do desenvolvimento de novos espaços
capitalistas hierarquizado em substituição dos velhos espaços agonizantes.
Não são forças negentrópicas do sistema e sim zonas capitalistas
resistentes submersas, também elas, na decadência global. Tentam travar as
bofetadas do império contra os seus interesses, mas ao resistir, revidar
ou avançar sobre os flancos débeis do adversário contribuem para a
"desordem" geral, bloqueiam as tentativas de recomposição do domínio
ocidental do mundo e desse modo agravam a degeneração global do
capitalismo.

A insurgência global como necessidade histórica

As elites dominantes da China e da Rússia, também as do Brasil, Índia ou
Irão, acreditam na possibilidade de desenvolverem seus capitalismos
nacionais, fazem o que podem para não afundarem no desastre ao qual o
Ocidente as quer condenar. Mas o carácter global, profundamente
inter-relacionado do sistema de que fazem parte, condiciona suas astúcias.


Todos esses tropeções e empurrões entre o centro e a periferia contribuem
para criar um panorama global rarefeito que a qualquer momento pode
redundar em guerras e situações pré bélicas a nível regional, ameaçando
por vezes transformar-se em confrontações mundiais como ocorreu em 2013
devido à situação síria e em 2014 com a ucraniana.

Karl Polanyi descrevia a longa "pax europea" (salpicada de conflictos
menores) que vigorou desde o fim das guerras napoleónicas até 1914,
resultado segundo ele do papel harmonizador, apaziguador de conflitos,
cumprido por alguns factores ocultos dentre os quais destacava a "haute
finance", os círculos financeiros europeus mais elevados que, pondo-se
acima dos interesses políticos e nacionais, amarravam compromissos,
negócios atravessando países e consequentemente acalmando as disputas
inter-imperialistas [19] .

Mas Polanyi só olhava a superfície do fenómeno. Na realidade os negócios
da "haute finance" fundavam-se na vertiginosa acumulação de capitais
proveniente principalmente da rapina imperialista do mundo, um de cujos
pilares essenciais era a acção dos estados ocidentais, o desenvolvimento
dos seus aparelhos militares (fonte decisiva de negócios) e da
consequentes megalomanias "patrióticas" das respectivas burguesias
nacionais rivais. Polanyi assinala que "os Rothschild não estavam sujeitos
a um governo; como uma família, incorporavam o princípio abstracto do
internacionalismo; sua lealdade era entregue a uma firma, cujo crédito se
havia convertido na única conexão supranacional entre o governo político e
o esforço industrial numa economia mundial que crescia com rapidez" [20] .
Na realidade o papel "pacificador" dos Rothschild fazia parte de um jogo
duplo perigoso mas muito rentável. Por um lado excitavam as bestas
alentando suas ambições (e de imediato entregavam-lhes a conta) e por
outro acalmavam-nos quando ameaçavam fazer um desastre. Mas essa sucessão
de excitantes e calmantes aplicadas a bestas que absorviam drogas cada vez
mais fortes terminou como tinha que terminar: com uma gigantesca explosão
(Agosto de 1914).

Transferindo-nos para o mundo actual é necessário afirmar que a
globalização dos negócios não estabelece um manto transnacional
pacificador e sim exactamente o contrário, sobretudo nos centros globais
de poder político-militar incentivando megalomanias criminosas.

É no interior do sistema global decadente que se desenvolvem as ilusões,
esperanças e rebeldias da periferia. A ilusão de assegurar capitalismos
autónomos sob as bandeiras da restauração da "identidade russa" ou do
"socialismo de mercado" chinês ou de um socialismo a meias como na
Venezuela ou de uma sociedade baseada no islão como no Irão ou de
capitalismos "progressistas" como no Brasil, Argentina ou Equador. Mas
também a resistência ao invasor no Afeganistão ou na Líbia até chegar à
guerra prolongada pelo socialismo das FARC na Colômbia, aos protestos
sociais na Europa, etc. Esse grande quebra-cabeças não constitui uma
insurgência global nem muito menos um movimento em vias de articulação e
sim um processo sumamente heterogéneo onde se apresentam erupções
efémeras, ciclos de longa duração, tentativas de desenvolvimento
capitalista relativamente autónomo, rebeliões anti-capitalistas, etc que
podem ser vistos de diferentes maneiras. Uma delas é a de uma grande
turbulência periférica que se vai expandindo em meio a contradições de
todo tipo a anunciarem ao mesmo tempo cenários futuros de insurgência
popular contra o sistema e o seu contrário: o afundamento em degradações
prolongadas.

É nesse espaço complexo no qual as potências ocidentais tentam arrasar,
isolar, demonizar, triturar, que se reproduz um gigantesco proletariado
universal, vários milhares de milhões de camponeses, operários, marginais,
comerciantes miseráveis, etc condenados à morte ou à sobrevivência
infra-humana pela dinâmica decadente do sistema. Constituem uma realidade
plural que se opõe naturalmente à homogeneização escravizante do Ocidente
tentando preservar e/ou construir identidades, espaços de liberdade,
sobreviver, viver dignamente.

Os próximos anos dirão se a partir dessa massa proletária irrompe a
insurgência global que desdobrando-se na sua pluralidade irá convergindo
na segunda ofensiva contra o império. A primeira ocorreu no século XX a
partir da Revolução Russa, convertendo-se numa rebelião global que se
prolongou durante cerca de seis décadas abarcando desde a China até Cuba,
passando pela Argélia, Vietname, Nicarágua.

Há meio século estavam na moda na Europa ocidental autores que
denunciavam a perda de hegemonia da região, superada por superpotências
extra-regionais como a URSS, os Estados Unidos ou o Japão. Um desses
textos, de grande êxito editorial, foi "El rapto de Europa" [21] de Luis
Diez del Corral. Sua tese era que nações extra europeias estavam a roubar
à Europa, ou já haviam roubado, sua maior criação cultural: a
modernidade.

Deslumbrado pelo mito grego, o autor não reflectiu o suficiente acerca do
seu significado histórico: Zeus rapta Europa, princesa do Oriente Próximo
enganada pelo deus que mimetizado como touro a induz a montá-lo, do que se
aproveita para sequestrá-la e levá-la à sua ilha. A origem do Ocidente
histórico é o engano e o roubo. Seu próprio nome, Europa, é o de troféu,
produto do roubo. Em última instância, se o mundo não ocidental se
apropriasse da modernidade ocidental não estaria a fazer outra coisa senão
recuperar o capital mais os juros das riquezas que o ladrão lhe havia
sacado durante séculos: ouro, prata, petróleo, cereais, centenas de
milhões de vidas humanas. Na realidade, o planeta hoje está completamente
modernizado. Para uns (o centro do mundo) isso significa desenvolvimento
capitalista, poder, privilégios, ao passo que para o resto do mundo quer
dizer subdesenvolvimento capitalista, miséria, frustrações.

De qualquer forma, a "apropriação periférica da modernidade" é um anzol
envenenado, é a ilusão de reproduzir os supostos êxitos culturais da
civilização burguesa de modo independente ou a enfrentar o Ocidente.
Quando o escravo imita o amo ou pretende regenerar sua comunidade
adoptado-adaptando seus fundamentos ideológicos, o que consegue é bloquear
a criatividade revolucionária da sua base social. Como o demonstra a
experiência histórica do século XX [22] , quando acredita ter encontrado o
fio de Ariadne que lhe permitirá sair do labirinto, aferra-se ao mesmo e
marcha triunfalmente rumo à saída... Na realidade agarrou a cauda do diabo
o qual, astutamente, o conduz rumo a paragens ainda mais sinistras.

Mas a modernidade entrou no estado de decrepitude e a libertação das suas
vítimas centrais e periféricas só pode ser alcançada por meio da negação
absoluta do capitalismo, sua completa destruição, para a partir das suas
cinzas construir um mundo novo. Nada autoriza a supor que essa proeza – a
maior da história humana – seja inevitável. A regeneração pós capitalista
é historicamente necessária ainda que não constitua um fenómeno inexorável
imposto por supostas leis da história. Trata-se de uma tarefa que exige um
gigantesco esforço voluntarista animado por ideias resultantes de práticas
insurgentes, rebeldias mais ou menos radicalizadas, ensaios, erros,
fracassos, êxitos efémeros ou duradouros.
Notas

[1] As decadências de civilizações anteriores e as reflexões
contemporâneas sobre as mesmas, na medida em que conseguiam uma visão de
certa amplitude associavam as referidas decadências com futuras renovações
ou instalações de novas civilizações no mesmo território. A nível mundial,
enquanto uma civilização decaía outras permaneciam ou emergiam. Agora,
dado o potencial auto-destrutivo do capitalismo global, surge a
possibilidade histórica do "fim da história" não no sentido idílico
(sinistro) do mundo liberal feliz que Francis Fukuyama nos propunha há
algumas décadas e sim como desastre universal.

[2] Marx e Engels, "La ideología alemana", Ediciones Progreso, Moscú,
1974.

[3] Em 2012 as despesas do Departamento da Defesa chegaram a cerca de
US%700 mil milhões. Se às mesmas forem adicionadas as despesas militares
que aparecem integradas (diluídas ou ocultas) em outras áreas do Orçamento
(Departamento de Estado, USAID, Departamento da Energia, CIA e outras
agências de segurança, pagamentos de juros, etc) alcançar-se-ia um número
próximo dos US$1,3 milhões de milhões. Esse número equivale a 50% das
receitas orçamentais previstas ou 100% do défice orçamental. Essas
despesas representaram quase 60% das despesas militares globais e se lhes
somarmos as dos seus sócios da NATO e de alguns países vassalos extra-NATO
como a Arábia Saudita, Israel, Colômbia ou Austrália estaríamos entre 75%
e 80% da despesa global (Ref: Jorge Beinstein, "Capitalismo del Siglo XXI.
Militarización y decadencia", Ed. Cartago, Buenos Aires 2013).

[4] Narciso Isa Conde, Estados neoliberales y delincuentes , Aporrea,
20/01/2008,

(5) Johan Huizinga, "Homo ludens" (1954), Emecé Editores, Buenos Aires,
1968.

[6] Domenico Losurdo, "Las raices norteamericanas del nazismo", Enfoques
Alternativos, nº 27, Octubre de 2006, Buenos Aires.

[7] Hermann Rauschning, "La révolution du nihilisme", Gallimard, Paris,
1980.

[8] Robert Kurz, Los orígenes destructivos del capitalismo , 1997,

[9] Em outros textos apresentei um conceito de Anouar Abdel Malek, no meu
entender essencial para compreender o fenómeno. Trata-se do "excedente
histórico" acumulado durante séculos pelo Ocidente em resultado de um
saqueio universal sem precedentes, um património imperialista baseado na
destruição do contexto ambiental e de civilizações de todos os continentes
(Anouar Abdel Malek, "Political Islam", Socialism in the World, Number 2,
Beograd 1978.

[10] Angus Maddison,"The World Economy: Historical Statistics", OECD
2003.

[11] René Grousset qualificou-a como "a primeira expansãon colonial do
Ocidente". Renée Grousset, "Las cruzadas", EUDEBA, Buenos Aires, 1965.

[12] "O poder veneziano baseava-se na sua capacidade para fabricar armas
de acordo com os modernos princípios da especialização e da produção
capitalista", assinala Victor Davis Hanson. E acrescenta que "três anos
depois de Lepanto o monarca francês Henrique III, que se encontrava em
Veneza, visitou o Arsenal que, para seu assombro, montou, equipou e lançou
uma galera em uma hora!
Em condições normais, recorrendo a princípios de construção naval,
financiamento e produção em massa comparáveis unicamente aos do século XX,
o Arsenal era capaz de lançar uma frota inteira de galeras no espaço de
uns poucos dias", Victor Davis Hanson, "Matanza y cultura. Batallas
decisivas en el auge de la civlización occidental", Fondo de Cultura
Económica-Turner, México D.F. / Madrid 2006.

[13] Bertrand Gille, "Les ingénieurs de la Renaissance", Herman, Paris
1964.

[14] James O'Donnell, "La ruina del imperio romano", Ediciones B,
Barcelona 2010.

[15] Victor Davis Hanson, op cit.

[16] G.W.F Hegel, "La Raison dans l`Histoire", Union Générale d`Editions,
10/18, Paris 1965.

[17] Antonio Gramsci, "Cuadernos de la cárcel", Ed. Era, México, 1999.

[18] Richard N. Haass, "The Age of Nonpolarity. What Will Folow U.S.
Dominance", Foreign Affairs, Mai/June 2008.

[19] Karl Polanyi, "The Great Transformation.The Political and Economic
Origins of Our Time", Bacon Press, Boston, Massachusetts, 2001.

[20] K. Polanyi, op. cit.

[21] Luis Diez del Corral, "El rapto de Europa", Alianza Editorial, Madrid
1974.

[22] Desde os fantasmas burocráticos da história soviética até chegar ao
realismo burguês dos dirigentes chineses passando pelos diversos
nacionalismos mais ou menos "socialistas" ou capitalistas do Terceiro
Mundo.

Textos do Jorge Beinstein em resistir.info:

2013: ponto de inflexão na longa decadência ocidental , 05/Dez/13
Origem e declínio do capitalismo , 13/Jun/13
A ilusão do metacontrole imperial do caos , 12/Mar/13
Auto-destruição sistémica global, insurgências e utopias , 13/Nov/12
No princípio de uma longa viagem , 28/Dez/09
A crise na era senil do capitalismo , 16/Mar/09
Rumo à desintegração do sistema global , 04/Mar/09
A junção depressiva global (radicalização da crise) , 18/Fev/09
Rostos da crise: Reflexões sobre o colapso da civilização burguesa ,
12/Nov/08
Inflação, agronegócios e crise de governabilidade , 21/Jul/08
O naufrágio do centro do mundo: Os EUA entre a recessão e o colapso ,
08/Mai/08
No princípio da segunda etapa da crise global , 13/Fev/08
Estados Unidos: a irresistível chegada da recessão , 06/Jun/07
O declínio do dólar… e dos Estados Unidos , 18/Jan/07
A solidão de Bush, o fracasso dos falcões e o desinchar das bolhas ,
27/Ago/07
A irresistível ascensão do ouro , 03/Jul/06
O reinado do poder confuso , 12/Abr/06
Os primeiros passos da megacrise , 24/Jan/06
As más notícias da petroguerra , 20/Jul/05
Pensar a decadência: O conceito de crise em princípios do século XXI ,
11/Abr/05
Os Estados Unidos no centro da crise mundial , 01/Nov/04
A segunda etapa do governo Kirchner , 07/Out/04
A vida depois da morte: A viabilidade do pós-capitalismo , 07/Set/04

[*] Economista, professor na Universidade de Buenos Aires.
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IN:
Resistir.info

http://www.resistir.info/crise/beinstein_violencia_jun14.html

23/Jun/14

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