sábado, 7 de junho de 2014

O modelo unipolar da ordem mundial fracassou

Pepe Escobar*


Tudo o que Washington conseguiu no Médio-Oriente em troca de uma década de
guerras, intimidação incessante, péssimas sanções e biliões (milhões e milhões)
de dólares desperdiçados foi perder terreno no plano económico. Os factos falam
por si. A China está a comprar pelo menos metade da produção de petróleo do
Iraque — e investe fortemente na sua infra-estrutura energética. A China
investiu muito na indústria de mineração do Afeganistão — especialmente em lítio
e cobalto. E obviamente tanto a China como a Rússia continuam a fazer negócios
no Irão.


(Vladimir Putin, São Petersburgo, Maio 22)De maneiras diversas anunciou-se na
semana passada o nascimento de um século euro-asiático. Na realidade, o convénio
do gás Rússia-China por 400 mil milhões de dólares foi assinado apenas no último
minuto, em Xangai, na quarta-feira (um complemento do convénio de petróleo de
Junho de 2013, por 25 anos e 270 mil milhões de dólares entre Rosnefit e CNPC da
China).
Já na quinta-feira, a maioria dos principais protagonistas esteve no Fórum
Económico Internacional de São Petersburgo — a resposta russa a Davos. E na
sexta-feira, o presidente russo Vladimir Putin, recém-chegado do seu triunfo em
Xangai dirigiu-se aos participantes e a casa quase veio abaixo com os aplausos.É
preciso algum tempo para apreciar o torvelinho da semana passada em todas as
suas implicações complexas. Houve menos directores executivos ocidentais em São
Petersburgo porque o governo de Obama os pressionou — como parte da política de
«isolamento da Rússia»? Goldman Sachs e Morgan Stanley poderão tê-lo desdenhado
mas os europeus que realmente importam participaram, vieram, falaram e
comprometeram-se a continuar a fazer negócios.E sobretudo, os asiáticos
estiveram omnipresentes. Há que considerar isso como mais outro capítulo no
contragolpe da China à viagem asiática do presidente Barack Obama em Abril, que
foi amplamente descrita como «viagem de contenção da China» (1)No primeiro dia
do Fórum de São Petersburgo, assisti à sessão crucial sobre a cooperação
económica estratégica russo-chinesa. Temos de prestar atenção pois constitui
todo o mapa. Como descreve o vice-presidente da China Li Yuanchao: «Planificamos
combinar o programa para o desenvolvimento do Extremo Oriente russo e a
estratégia para o desenvolvimento do Noroeste da China num conceito
integrado».Foi apenas em exemplo da coalizão cada vez mais rápida na Eurásia que
os excepcionalistas «indispensáveis» vão pôr em causa até à medula. Comparações
com o pacto sino-soviético são infantis. O golpe na Ucrânia — parte do plano de
Washington para «conter» a Rússia — apenas serviu para acelerar a viragem da
Rússia para a Ásia, que cedo ou tarde seria inevitável.Em São Petersburgo, de
sessão em sessão e em conversações seleccionadas, o que vi foram alguns marcos
cruciais da(s) Nova(s) Rota(s) da Seda chinesa, cujo objectivo em última
instância é unir, através do comércio e do intercâmbio de bens, nada menos que a
China, Rússia e Alemanha.Para Washington, isto é um anátema completo. A reacção
foi oferecer um par de tratados que, em tese, irão garantir o monopólio
norte-americano de dois terços do comércio global: o Acordo de Associação
Transpacífico (TPP) — que foi essencialmente recusado por países-chave como o
Japão e a Malásia durante a viagem de Obama — e a ainda mais problemática
Associação Trans-Atlântica com a UE, abominada pelo europeu médio (veja-se
Fracasso no Sul da NATO, Ásia Times Online, 15 de Abril de 2014). Os dois
acordos estão a ser negociados em segredo e são essencialmente benéficos para
corporações multinacionais americanas.Para a Ásia a China propõe em seu lugar
uma Área de Livre Comércio na Ásia do Pacífico; já é aliás o maior sócio
comercial da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) de 10 membros.E
para a Europa, Pequim propõe uma extensão de caminhos-de-ferro que une em apenas
12 dias Cheng, capital de Sichuan, com Lódz na Polónia, cruzando o Cazaquistão,
a Rússia e a Bielorrússia. O acordo total é a rede Chongqing-Xinjiang-Europa,
que termina em Duisburg, Alemanha. Não é admirar que seja a rota comercial mais
importante do mundo (2)Mas há mais. Uns dias antes do acordo Rússia-China do
gás, o presidente Xi Jinping apelou a nada menos que uma nova arquitectura de
cooperação asiática de segurança, incluindo supostamente a Rússia e o Irão e
excluindo os Estados Unidos (3). De certo modo fazendo coro com Putin, Xi
descreveu a OTAN, como uma relíquia da Guerra-fria.E adivinhem quem estava no
anúncio em Xangai além dos principais da Ásia Central, o primeiro ministro do
Iraque Nouri-al-Maliki, o presidente afegão Hamid Karzai e o mais importante, o
presidente do Irão Hassan Rohani.Os factos no terreno falam por si. A China está
a comprar pelo menos metade da produção de petróleo do Iraque — e investe
fortemente na sua infra-estrutura energética. A China investiu muito na
indústria de mineração do Afeganistão — especialmente em lítio e cobalto. E
obviamente tanto a China como a Rússia continuam a fazer negócios no Irão.Assim,
isto é tudo o que Washington conseguiu em troca de uma década de guerras,
intimidação incessante, péssimas sanções e biliões (milhões e milhões) de
dólares desperdiçados.Não é de admirar que a sessão mais fascinante a que
assisti em São Petersburgo tenha sido sobre as possibilidades comerciais e
económicas em torno da Organização pela Cooperação de Xangai (SCO), cujo hóspede
de honra foi nada menos que Li Yuanchao. Pode dizer-se que fui o único ocidental
na sala, rodeado por um mar de chineses e centro-asiáticos.A SCO prepara-se para
se tornar em algo mais que uma contrapartida para a OTAN, concentrando-se
sobretudo no terrorismo e no combate ao narcotráfico. Quer dedicar-se a
actividades importantes. Irão, Índia, Paquistão, Afeganistão e Mongólia são
observadores e mais cedo ou mais tarde serão aceites como membros plenos.Mais
uma vez trata-se da integração euro-asiática em acção. A expansão das Novas
Rotas da Seda é inevitável e isso significa, na prática, uma maior integração
com o Afeganistão (minérios) e Irão (energias).São Petersburgo também deixou
claro que a China quer financiar uma série de projectos na Crimeia, cujas águas,
que têm imensas riquezas energéticas, ainda não exploradas, são agora
propriedade russa. Os projectos incluem uma ponte crucial atravessando o
estreito de Kerch para ligar a Crimeia à Rússia continental, a expansão de
portos da Crimeia, fábricas de energia solar; e até zonas de manufacturação
económicas especiais (SEZs). Moscovo não pode deixar de interpretar isso como
apoio da China à anexação da Crimeia.Quanto à Ucrânia, é melhor, como Putin
declarou em São Petersburgo, que pague as suas contas (5). E quanto à União
Europeia, o presidente cessante José Manuel Barroso pelo menos entendeu que
antagonizar a Rússia não é exactamente uma estratégia acertada.Dmitry Trénin,
director do Centro Carnegie de Moscovo, foi um dos poucos informados que em vão
avisaram o Ocidente: «É provável que a China e a Rússia se tornem ainda mais
cooperantes. Tal resultado beneficiaria a China, mas oferece
à Rússia uma possibilidade de resistir à pressão geopolítica dos Estados Unidos,
compensar a próxima reorientação energética da UE, desenvolver a Sibéria e o
Extremo Oriente e ligar-se à região Ásia-Pacífico (6).De novo na rota (da seda)A
actual aliança estratégica simbiótica China-Rússia — com a possibilidade de a
ampliar até ao Irão — é o principal peão no tabuleiro nos inícios do Século XXI.
Alargar-se-á às nações do BRIC, à Organização do Tratado de Segurança Colectiva
e ao Movimento dos Não-Alinhados.Claro que os cúmplices habituais continuarão a
apregoar que o único futuro possível será o dirigido por um império «benigno»
(8). Como se milhares de milhões de pessoas no mundo real — mesmo os atlantistas
informados — fossem suficientemente ingénuos para o aceitar. Apesar de a
unipolaridade estar morta, mas o mundo, infelizmente, está preso no seu cadáver.
O cadáver, segundo a nova doutrina de Obama, agora está a «angariar
sócios».Parafraseando Bob Dylan («Abandonei Roma e aterrei em Bruxelas»), deixei
São Petersburgo e aterrei em Roma, para seguir mais um episódio da lenta agonia
da Europa — as eleições parlamentares. Mas antes disso, tive a sorte de viver
uma iluminação estética. Visitei o Instituto de Manuscritos Orientais da
Academias de Ciências da Rússia, virtualmente deserto, onde dois investigadores
dedicados extremamente entendidos no tema, me permitiram uma visita privada a
alguns exemplares daquela que deverá ser a colecção mais extraordinária do mundo
de manuscritos asiáticos. Como viajante fanático da Rota da Seda, tinha ouvido
falar de muitos desses documentos, mas nunca os havia contemplado. Assim ali
estive nas margens do Neva, um menino numa loja de doces (históricos), imerso em
todas essas maravilhas de Dunhuang à Mongólia, em védico e sânscrito, sonhando
com Rotas da Seda antigas e futuras. Poderia ter lá ficado para sempre.Notas:
(1) A China opõe-se à ‘contenção’ do petróleo vietnamita pelos Estados Unidos
Stanford Forbes, Maio 8, 2014.
(2) O presidente chinês apela à China e à Alemanha para construírem c cintura
económica da Rota da Seda (em francês) Xinhua, Março 30, 2014.
(3) A China apela a uma nova estrutura de segurança asiática. Washington Post,
Maio 21, 2014.
(4) A Rússia pensa construir mais oito reactores nucleares no Irão, Reuters,
Maio 22, 2014.
(5) A dívida do gás à Gazprom é de 4 mil milhões, declarou o comissário da
Energia da União Europeia. Novosty, Maio 28, 2014.
(6 ) veja http://www.conflictsforum.org/2014-forum-weekly-comment-16%E2%80%93-23
de Maio de 2014.
(7) China, Irão e Rússia: reestruturação da ordem global. Al Jazeera, 20 de Maio
de 2014.
(8) Na defesa do Império, O Atlântico, Março 19, 2014.*Pepe Escobar é autor de
Globalisten. Como o Mundo Globalizado se dissolve na Guerra Líquida (Nimble
Books, 2007), Red Zone Blues: um instantâneo de Bagdad durante o ataque (Nimble
Books, 2007) e Obama e Globalistan (Nimble Books, 2009).(copyright 2014 Asia
Times online (Holdings) Ttd. All rights reservedFontes:
http://www.aatimes/Central Asia/ (Cen-01-290514.htmlTradução: Manuela Antunes
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In:
http://www.odiario.info/?p=3298
7/6/2014

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