sábado, 20 de setembro de 2014

Europa 2020 – Comunidade ou império?


por GEAB [*]
Este título inspira-se no do primeiro livro de Franck Biancheri (inédito)
redigido em 1992 e no qual o autor mostrava que os princípios fundadores
do projecto europeu concebido no fim da Segunda Guerra Mundial (ou seja,
uma comunidade de países que se proporcionavam os meios de construir em
conjunto uma paz durável e um continente próspero) podiam, se não se
tomasse cuidado, ver-se marginalizado e os reflexos bem conhecidos da
Europa-império (colonização europeia, Napoleão, Hitler, ...) retomarem a
dianteira. No caso, Franck Biancheri considerava que o que devia permitir
ao projecto de construção europeia permanecer na via a comunidade era a
sua democratização.

Alguns anos depois, com o Tratado de Maastricht que rebaptizava a
Comunidade Europeia como "União Europeia", Franck Biancheri, com a sua
desconfiança das "uniões" de todas as espécies, havia considerado que esta
escolha não era de bom augúrio. Vinte e três anos mais tarde, nada avançou
na frente da democratização da Europa e a crise fornece o contexto
propício ao descarrilamento completo do projecto de comunidade. Vamos
mostrar alguns indicadores que permitem dizer que esta tendência (que
sempre esteve lá, naturalmente, mas estava enquadrada num mecanismo de
resguardo relativamente eficaz) está em vias de ressurgir. Mas nós ainda
nos recusaremos a fazer uma verdadeira antecipação, preferindo por
igualmente a tónica sobre os outros indicadores, aqueles que ainda
permitem esperar uma reversão de tendência. [1]

Se falamos em "reversão de tendência" é porque, depois de ter passado
cerca de um ano a ver uma Europa na "encruzilhada" [2] , consideramos que
este retorno marca o seu empenhamento no mau caminho, aquele que conduz ao
"cenário trágico" descrito por Franck Biancheri na sua obra visionária "
Crise mondiale: En route vers le monde d'après " publicada em 2010 [3] ,
na qual destacava os trunfos consideráveis da Europa face à crise e seu
potencial de participação para a emergência de um desejável "mundo do
depois"; mas também o grande risco que pesava sobre a Europa e os europeus
cujas elites, não democráticas (em Bruxelas) ou não europeias (nas
capitais), se mostram incapazes de ser apoiarem sobre a crise para
completar este projecto positivo de construção europeia, sempre inacabado
[4] .

Como os nossos leitores fieis o sabem, analisámos a crise ucraniana como
uma operação dirigida pelos Estados Unidos e posta em marcha por um
punhado de colaboradores servis bem colocados nos circuitos decisionais
europeus, com o objectivo, para resumir, de selar o destino da Europa ao
de um campo ocidental conduzido pelos americanos. Esta operação foi
conduzida como uma blitzkrieg numa ausência total de capacidade de reacção
por parte do campo europeu que de repente se encontrou virtualmente em
guerra sem ter compreendido porque. Quando os europeus acordaram deste
primeiro choque, uma outra batalha, bastante difícil de acompanhar, teve
lugar entre as classes dirigentes, entre os Estados europeus e no seio das
opiniões públicas, entre os "anti-russos" e os "pró-russos", ou antes,
entre "os pró-americanos" e os "anti-americanos", mas de facto sobretudo
entre os ideólogos do Ocidente e os defensores da independência do
continente europeu.

Nos últimos dois números do GEAB enfatizámos o facto de que as "condições
para um sobressalto" estavam reunidas, ressaltando os indicadores de uma
recuperação do controle europeu dos negócios. Mas o Verão passou, com a
perda de vigilância que caracteriza este período do ano. E o retorno
fez-nos descobrir uma paisagem à partida bastante desoladora, nomeadamente
quanto a três pontos: o novo remanejamento governamental francês, o
projecto da Comissão Juncker e a grande missa da NATO em Newport.
Tentaremos uma leitura destes três acontecimentos. Depois passaremos em
revista outros temas importantes (Iraque, eleições gerais no Brasil,
remanejamento governamental no Japão) que leremos à luz da grande
reconfiguração geopolítica global, sabendo que nos dedicaremos doravante a
detectar os indicadores de precipitação de uma bipolarização do mundo – ou
os de progresso na emergência do mundo multipolar. Veremos assim que não é
apenas a Europa que se arrisca a deslizar rumo à tentação do império.

A Europa desempenha o seu papel neste parto penoso do mundo de amanhã, mas
é certo que o aumento do risco de bipolarização global alimenta e é
alimentado pelo ressurgimento de uma ideologia de potência
(Europa-império) no seio das suas elites [5] .

A hipótese que adoptamos é que a explosão da UE [6] pode dar lugar a dois
tipos de reacção:

- rejubilar-se e retomar o projecto de construção europeia onde ele estava
quando descarrilou (aquando da queda do Muro), partindo outra vez de um
núcleo reduzido e ultra integrado de Estados membros (a Eurolândia) para
construir a etapa da união política e democrática que foi bloqueada na
época (Europa-comunidade);

- ou então amedrontar-se e bloquear o processo de explosão em curso
reforçando todas as molas fundadores do segundo período de construção
(1989-2014): ultra-liberalismo, endividamento, alargamento, ocidentalismo
(Europa-império).

Em ambos os casos, consideramos que o político está em vias de retornar na
Europa. Mas conforme se trate do primeiro ou do segundo cenário que se
efective, esta política naturalmente não terá realmente as mesmas
características.

Estes dois campos confrontam-se actualmente nos corredores decisionais da
UE, tanto ao nível nacional como ao nível europeu. Consideramos que a
pista da Europa-império está em vias de prevalecer mas ainda não
desesperámos de ver a Europa-comunidade acabar por ganhar.

Explosão da UE: referendo escocês, integração falhada dos países da Europa
do Leste

Sim, a UE explode. Já descrevemos abundantemente como são postas em causa
numerosas políticas pelos Estados membros, em particular a livre
circulação dos bens e das pessoas do espaço Schengen [7] ; ou ainda o
projecto de saída do Reino Unido, potência estruturante da UE desde o seu
nascimento em 1992.

Referendo escocês: É preciso agora acrescentar a esta lista a provável
explosão do Reino Unido provocada pelo referendo escocês. Já havíamos
assumido o risco há vários meses de antecipar uma vitória do sim. Hoje,
fazemos uma antecipação complementar: quer o sim ganhe ou não, de qualquer
modo este referendo transforma o Reino Unido. Londres esperava que uma
vitória inequívoca do não reforçaria a coesão da União do Reino. Mas, com
uma certeza de resultado extremamente apertado, Cameron já teve de fazer
tais concessões aos escoceses [8] que os outros membros da União (País de
Gales, Irlanda do Norte) estão prontos a arrancar para obter os mesmos
avanços em matéria de autonomia [9] .

Dito isto, em coerência com o princípio da antecipação política segundo o
qual as grandes tendências não devem ser bloqueadas mas exploradas,
consideramos que o Reino Unido teria tudo a ganhar com uma evolução rumo a
uma estrutura federal. Temos frequentemente repetido que os países
centralizados não estão mais adaptados aos desafios do mundo no século
XXI.

Sem contar que os ingleses são oportunos e sabem recuperar-se. Como prova,
o retorno da sua praça financeira para os sukuks e o yuan [10] , que salva
a City. Uma federalização do Reino Unido daria às suas elites uma bela
ocasião para mostrar como são capazes de tirar partido de tal viragem do
destino.

Seja qual for, uma federalização do Reino Unido muda consideravelmente os
dados para a UE.

Integração falhada dos países do Leste: A UE está ameaçada de desagregação
também na sua frente oriental.

Hoje a UE em crise aparece com efeito cada vez menos atraente para os
países do Leste e alguns, sem por em causa sua pertença europeia, começam
a olhar com interesse o que se passa do lado do anterior invasor, a
Rússia. A Hungria de Victor Orban é a mais avançada neste caminho e seria
bom olhar mais em pormenor as ideias deste político que não tem nada de
ditador, ainda que seja um homem forte, desejoso da independência do seu
país... Mas, na Europa destes últimos ano, olhar para o Leste é passível
de alta traição.

Outros, face à evidente fraqueza política europeia, nomeadamente em
matéria de política de segurança e de defesa, decidiram por exemplo
reflectir entre si um sistema de defesa que lhes seja próprio. É assim que
o grupo de Visegrad (composto entre outros pela Hungria, mas também pela
Eslováquia que recentemente declarou não querer tropas estrangeiras sobre
o seu solo [11] ), trabalha há vários anos para instalar um sistema de
defesa e de segurança que, de certo modo, os autonomiza [12] . Estamos
aqui claramente diante de uma consequência directa da incapacidade da UE a
ter podido propor o menor projecto de Europa da Defesa susceptível de
tranquilizar os países dos confins da Europa.

A Bulgária por sua vez exprime doravante seu desejo de poder cooperar com
a Rússia no quadro da construção do gasoduto que contorna a Ucrânia e que
é a linha South-Stream. Mas desde a crise ucraniana, Bruxelas proibiu-lhe
construir seu troço [13] . No entanto, a Bulgária tem um duplo interesse
nesta construção: por um lado, ela garante-lhe seu abastecimento de
energia e, pelo outro, acrescenta-lhe uma fonte não desprezível de
financiamento graças à arrecadação de um direito de portagem sobre o gás
russo.

As taxas de participação dos países do Leste da Europa nas últimas
eleições europeias são um indicador claro do grau de fracasso da
integração destes países. A integração fez-se demasiado rapidamente por
considerações puramente mercantis e não políticas, estes países muitas
vezes misturaram o objectivo da integração na UE com o da integração na
NATO; quanto à união económica, eles viveram-na frequentemente como uma
invasão de empresas ocidentais destrutiva da sua economia local.

Se a crise ucraniana talvez proporcione a oportunidade de por em prática
uma Europa da Defesa da qual caberia esperar que se fizesse em concertação
e não em oposição à Rússia, todo fracasso acerca deste ponto nos lançar
numa perspectiva de deserção de alguns destes países no horizonte 2020, o
que seria mais um belo fracasso desta UE que não cessou de ampliar a
Europa rejeitando todo projecto de aprofundamento da integração,
nomeadamente a política e democrática.
Notas

(1) É assim que, ao contrário do nosso hábito, não escolhemos um cenário.
Os leitores ficam livres para fazerem sua própria ideia.

(2) Uma expressão recorrente nas linhas do GEAB, em 2013 sobretudo.

(3) E que merece uma reedição a meio caminho do período antecipado
(2010-2020), reedição à qual o editor, Anticipolis , aceitou fazer. A
releitura desta obra à luz dos acontecimentos dramáticos que dominam a
actualidade em 2014 não incita ao optimismo.

(4) De facto, a construção europeia parou quase completamente desde o
Tratado de Maastricht: a união económica realizada, o único projecto de
futuro que veio à luz desde então, é a união monetária cuja execução
impunha prosseguir o trabalho rumo à governação económica, a união fiscal,
a união política e a democratização. Mas nós nos travámos a meio do vau...
e a enchente vem aí.

(5) Os paralelos históricos são fáceis. Paralelo com a União Soviética:
potências ocidentais que já não são as melhores na corrida económica
mundial e que, tais como a URSS nos anos 50, constroem muros entre si e
esta concorrência julgada desleal; mas também paralelo com a ascensão do
nazismo: um sistema económico-político capitalista cujos excessos criam
uma rejeição profunda e que pouco a pouco desenvolve uma ideologia de
potência justificando a concentração de poder e de dinheiro característica
do seu funcionamento. Assim como a ideologia nazi era com efeito bem
partilhada em todos os circuitos de poder europeu e não só na Alemanha, a
ideologia de potência veiculada pelos Estados Unidos seduz numerosos
europeus próximos ou no interior dos círculos de poder, em particular em
Bruxelas (mas não só). Afinal de contas, este género de ideologia foi
europeu antes de ser americano e as pessoas que a adoptam consideram que
os Estados Unidos não são senão uma extensão da Europa e que os dois devem
unir-se indissoluvelmente para derrotar a emergência da China, em
particular, que os assusta mais do que tudo. É assim que se pode suspeitar
que certos tecnocratas europeus vêem na assinatura de um Tratado de Livre
Comércio com os Estados Unidos uma ampliação natural da Europa aos EUA...
rumo a uma Europa das Montanhas Rochosas aos Balcãs!

(6) Em vários números anteriores do GEAB antecipámos esta explosão da UE,
sempre mostrando que a UE não era a Europa, que era uma forma de
organização, nascida do Tratado de Maastricht, que havia fracassado, e que
se podia saudar positivamente o nascimento da Eurolândia no fim da UE.
Esta emergência de um projecto europeu alternativo à UE foi posta a
caminho no quadro da gestão da crise do Euro que efectivamente acelerou a
estruturação de uma governação da zona Euro. Mas se uma crise do Euro
reforçava naturalmente a zona Euro, uma crise geopolítica como aquela
gerada pela crise euro-russa reforça a UE... e todas as suas falhas.

(7) Por exemplo: Deutsche Welle, 22/10/2012

(8) Fonte: DailyAdvance, 14/09/2014

(9) Fonte: BBC, 09/09/2014

(10) Fonte: Forbes, 14/09/2014

(11) Fonte: Reuters, 04/06/2014

(12) Fonte: Premier Ministre polonais, 14/10/2013

(13) Fonte: Financial Times, 25/08/2014

17/Setembro/2014

[*] Global Europe Anticipation Bulletin

O original encontra-se em www.leap2020.eu/...

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

http://www.resistir.info/crise/geab_87.html

20/Set/14

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