segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Confrontação Norte-Sul… ou aliança entre trabalhadores do Norte e povos do Sul?



por Rémy Herrera [*]

Propomos aqui ao leitor uma série de reflexões sobre as evoluções
recentes das relações Norte-Sul e Sul-Sul. Para isso, partiremos de um
facto incontornável, a hegemonia militar dos Estados Unidos, e de uma
tendência, ligada à duração e à gravidade da crise sistémica actual, para
o agravamento da confrontação entre o Norte e o Sul. Depois examinaremos a
amplitude e a profundidade das recentes experiências de regionalizações
alternativas e de avanço sociais na América Latina, antes de interrogar a
pertinência da reaproximação, ou da reconexão, do continente
latino-americano com a Ásia e a África, desenrolando o fio da
Tricontinental até a uma eventual "extensão" destas regionalizações
radicalmente novas para os continentes asiático e africano. No momento
actual, os povos do Sul, e também do Lete, puseram-se em movimento. A
importância deste acontecimento é amplamente e voluntariamente subestimada
pelos media dominantes dos países do Norte, mas deve reter a atenção dos
trabalhadores que desejam melhorar a natureza as relações que seus
governos mantém com o Sul e o Leste e construir um "mundo melhor",
portanto multipolar e justo.

UM FACTO INCONTORNÁVEL: A HEGEMONIA MILITAR DOS EUA

Para os países do Sul – e do Leste –, o contexto actual é extremamente
difícil em primeiro lugar e sobretudo devido à hegemonia global
incontestada dos Estados Unidos no plano militar. Apesar de situado atrás
da China e da Índia, o efectivo dos diferentes corpos das forças armadas
estado-unidenses no seu conjunto ( Army, Navy, Marine Corps, Air Force ),
incluindo aquelas em actividade no território nacional metropolitano (
Continental United States ), ultrapassavam oficialmente 1 430 000
militares no fim de 2010, segundo dados do Ministério da Defesa dos EUA (
Active Duty Military Personnel Strengths by Regional Area and by Country
309A ). Mas o esforço de guerra efectuado em várias frentes implicaria
muito mais pessoal.

Bases militares e soldados estado-unidenses no mundo

Os efectivos militares estado-unidense diminuíram fortemente logo após a
explosão da URSS e do bloco soviético em 1991, para aproximar-se em 2000
dos 1 384 000 soldados. Os acontecimentos do 11 de Setembro de 2001
travaram este recuo e, desde 2002, estes efectivos foram reorientados em
alta, até exceder os 1 425 000 em 30 de Setembro de 2011. A isto
acrescentam-se 770 000 empregados civis do Ministério da Defesa dos
Estados Unidos. O número de pessoas que servem nas forças armadas e não
têm a nacionalidade estado-unidense duplicou em cinco anos e atingiu cerca
de 60 000 soldados em 2010. Esta inflexão desde 2001-2002 deve-se
sobretudo à evolução do pessoal militar activo fora do território
nacional, pelo que a proporção nos efectivos globais aumentou brutalmente
com o desencadeamento das guerras contra o Afeganistão (2001) e o Iraque
(2003), passando de 16,3% para 30,4% entre 2001 e 2003. Em 2007, esta
parte ultrapassou mesmo os 39,0%, ou seja, mais do que em qualquer outro
momento da história dos Estados Unidos desde o fim da Segunda Guerra
Mundial. No auge da guerra do Vietname, esta proporção não excedia os
36,0% (1967). Dois anos após a retirada do Iraque e da relocalização das
tropas no Afeganistão, em 2010, a parte do pessoal militar activo no
estrangeiro era de 34,9%, ou seja, mais que durante a guerra da Coreia
(34,2% em 1954) ou que no fim da Guerra Fria (29,8% em 1990).

Além de serem incompletas, as informações fornecidas pelo US Department of
Defense não poderiam ser analisadas sem acrescentar as tropas
estado-unidenses directamente implicadas nos conflitos do Iraque e do
Afeganistão. Estas últimas são efectivamente contabilizadas à parte, num
documento anexo disponível somente desde 2004 ( Deployments (not complete)
), o qual regista os efectivos militares deslocados no quadro das
operações Iraqi Freedom (OIF, a partir de Março 2003), depois New Dawn
(OND, a partir de Setembro 2010) no Iraque e Enduring Freedom (OEF, desde
Dezembro 2004) no Afeganistão.

Uma primeira estimativa do total dos efectivos das forças armadas
estado-unidenses deslocados no mundo em 30 Setembro 2011 é dada
adicionando aos 201 167 militares estacionados no território nacional fora
do Continental United States (Alasca, Havai, Guam, Porto Rico…) e aos 205
118 outros soldados presentes em países estrangeiros, incluindo ai 59 680
"não repartidos", as tropas empregues no Iraque (92 200 militares no fim
de 2011) e no Afeganistão (109 200 na mesma data), ou seja, 548 105
soldados. Este número deve ser revista em alta. São desejáveis
reajustamentos para aproximar da realidade os efectivos contabilizados
pelos Active Duty Military Personnel Strengths. O pessoal das forças
armadas e serviços de informação implicados nas acções secretas é difícil
de avaliar, mas provavelmente elevado. Tendo em conta esta dificuldade,
optaremos por proceder a um ajustamento complementar, externo aos
efectivos das forças armadas estado-unidenses propriamente ditas e
relativo aos agentes das sociedades militares privadas que apoiam as
intervenções das forças regulares. Estas sociedades privadas actualmente
impõem-se como actores importantes na maior parte dos lugares de conflitos
por todo o mundo; inclusive para o próprio Pentágono, que se tornou seu
cliente principal.

As guerras travadas no Iraque e no Afeganistão constituem exemplos da
ascensão das actividades destas sociedades, em que a sua utilização pela
administração estado-unidense é generalizada. Estes dois países são os
terrenos de acção do "novo mercado da guerra" e de mercenários
encarregados de missões tácticas. Assim, o número de agentes mobilizados
por estas sociedade militares privadas poderia ser de 186 000 no Iraque
(número disponível para 2008) e de 110 000 no Afeganistão (2009). Se estas
estimativas forem fiáveis, os efectivos de agentes empregado por estas
sociedades privadas teriam ultrapassado os das forças armadas dos Estados
Unidos tanto no Iraque como no Afeganistão. Os mercenários
estado-unidenses a participarem nos combates no Iraque seriam mais
numerosos que os seus compatriotas a servirem nos corpos dos Marines , da
Navy e da Air Force ; ao passo que o número daqueles empenhados na guerra
do Afeganistão em 2009 teria excedido o dos soldados estado-unidenses
adstritos à força aérea e à marinha.

Propomos portanto dois reajustamentos possíveis, consistindo em incorporar
ao cálculo dos efectivos militares estado-unidenses em actividade no
estrangeiro o pessoal destas sociedade militares privadas envolvido nas
guerras do Iraque e do Afeganistão (hipótese baixa) ou no mundo (hipótese
alta), supondo um número médio de agentes privados de 100 a trabalhar em
cada uma das 930 bases militares situadas fora do Iraque e do Afeganistão
oficialmente reconhecidas pelo Departamento da Defesa. Sob a primeira
hipótese, nós nos situaríamos em cerca de 843 200 pessoas, ou seja, um
nível comparável àquele do tempo da intervenção no Vietname (entre os 832
364 militares além-mar em 1965 e os 875 432 em 1970). Sob a segunda,
estaríamos, com mais de 935 700 pessoas afectadas em 2011, acima do
recorde histórico do pós Segunda Guerra Mundial (927 851 soldados
estado-unidenses em missão no exterior).

Mas onde estão disseminados? E de quantas bases militares os Estados
Unidos dispõem hoje no mundo? O US Department of Defense divulga
informações relativas às bases dos EUA no mundo ( Base Structure Reports
). Em 2011, como vimos, o Ministério da Defesa reconhecia a existência de
930 bases, numa trintena de países estrangeiros e uma dezena de
territórios não continentais dos EUA. A repartição destas bases mostra
dentre os países mais destacados a Alemanha (194 bases), o Japão (119), a
Coreia do Sul (82), o Reino Unido (33), Portugal (21), a Turquia (17), ...
Estimativas do número de instalações (em torno de 70) utilizadas pelos EUA
no Afeganistão e no Iraque, que não fazem parte desta lista, conduziriam a
uma rede mundial de aproximadamente 1000 bases, ou seja, quase tanto
quanto durante a fase de extensão máxima a guerra do Vietname.

Evidentemente, as informações das Base Structure Reports minimizam o
número de bases estado-unidenses, por várias razões. Os dados estatísticos
estão em falta para numerosos países (somente cerca de 40 Estados
independentes são contabilizados). A título de exemplos para 2011, citemos
a Itália (a qual acolheria pelo menos 50 bases), Cuba (onde, desde 2001, a
base de Guantánamo serve de lugar de detenção para centenas de
prisioneiros de guerra do Afeganistão), Honduras (na qual não está
integrada a base de Soto Cano, contudo em funcionamento durante o golpe de
Estado de 2009), mas também o Qatar (pelo menos 9 bases)... Nos outros
países, o número de instalações é subestimado: no Kuwait (apenas 1 base
referenciada), na Colômbia (oficialmente 7), na Turquia... Certos países
que acolhem bases militares dos Estados Unidos não são mencionados nestes
documentos oficiais: Israel (pelo menos 5 bases em actividade), Filipinas
(mínimo de 2) ou na ex-União Soviética.

Efectuando as correcções exigidas sob hipótese minimalista – pela
integração apenas das instalações mencionadas – e considerando uma
hipótese média realista (de 180) para o número de instalações utilizadas
no Iraque e no Afeganistão, chegamos a um total geral de bases militares
estado-unidenses no mundo que em 2011 ultrapassa 1 150; ou seja, mais do
que no ponto histórico mais alto registado desde o fim da Segunda Guerra
Mundial (1946). Isto, sem sequer falar das bases secretas. O meio milhão
de soldados estado-unidenses disseminados nesta vasta rede de 1 150 bases
militares pode também contar com as facilities militares postas à
disposição pelos seus aliados do Norte, nomeadamente no quadro de
operações conduzidas pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN)
ou em aplicação de outros acordos internacionais.

O apoio dos outros países do Norte e a tendência à confrontação com o Sul

Na rede de instalações que cobre todo o globo, o país da União Europeia
mais estreitamente integrado ao dispositivo militar estado-unidense é o
Reino Unido. As permanent joint operating bases britânicas estão
localizadas em pontos estratégicos: extremidades ocidental e oriental do
Mar Mediterrâneo (Gibraltar, Chipre), Atlântico Sul na proximidade do
Estreito de Magalhães (ilhas Falkland), no meio do Oceano Índico (Diego
Garcia). Esta rede é completada pela base da ilha de Ascensão no Atlântico
e pelas instalações situadas em Singapura (à disposição das forças
britânicas e de seus aliados). A implantação mais numerosa do Reino Unido
é em Chipre, com um efectivo que se aproxima dos 3 000 soldados
estacionados em permanência, ao passo que a Royal Navy está presente ao
longo das costas cipriotas. O British Indian Ocean Territory de Diego
Garcia é tão estratégico, nomeadamente para o acesso aos teatros de
operação na Ásia, que a utilização das suas instalações foi cedida à US
Air Force em 1966.

Quanto às forças armadas francesas, as activas instaladas no resto do
mundo compreendem três tipos de forças: "de soberania", dispersas nas
colectividades que fazem parte do território nacional da França; "de
presença", posicionadas em África, nas zonas marítimas dos Oceanos Índico
e Pacífico e, mais recentemente (fim de 2009), na península arábica;
finalmente, "operações externas", a título nacional (no continente
africano, no essencial) ou multinacional (em quase todas as regiões). O
dispositivo de controle militar posto em prática pela França situa-se numa
faixa horizontal que cobre toda a circunferência do globo. Sem dispor de
uma rede de amplitude comparável, outros países europeus também oferecem
aos Estados Unidos pontos de apoio estratégicos: a Espanha (ao longo das
costas marroquinas, com as ilhas Canárias, e à entrada do estreito de
Gibraltar, graças aos enclaves de Ceuta e Melilla), Portugal (com os
Açores e Madeira), a Itália (com as ilhas ao largo da Tunísia), a Grécia
(Sauda), a Dinamarca (Gronelândia) ou os Países Baixos (com suas
possessões caribenhas, Aruba, Curaçao e os conjuntos insulares das
Antilhas holandesas que barram o Mar das Caraíbas desde o Norte das costas
venezuelanas até o Leste de Porto Rico).

Na outra extremidade do globo, a Austrália e a Nova Zelândia também
desempenham um papel chave. À medida em que as bases estado-unidenses se
foram reposicionando na direcção da Ásia, a Austrália tornou-se um aliado
fundamental. Sua esfera de influência cobre o Pacífico Sul, assim como, no
Sudeste da Ásia, Timor Oriental. A aceitação desta zona pelos outros
países da triade não exclui rivalidades e tensões – nomeadamente com a
França que tem possessões na região, ou o Reino Unido que mantém
influência sobre suas antigas colonias. Esta missão de "polícia regional"
é assegurada em parceria com a Nova Zelância, cujos interesses próprios
situam-se sobretudo na Polinésia. Os Estados Unidos sujeitam o conjunto
através de um gigantesco arco de círculo, para além do Hawai, dos atols
Johnston, Wake e Midway sob administração militar e das Line Islands,
graças ao controle sobre Palau, Guam, federação da Micronésia,
Commonwealth das Marianas do Norte e as Samoa americanas.

A vastidão do sector da defesa na economia estado-unidense não poderia ser
subestimada. Hoje, as despesas militares da hegemonia mundial situam-se
próximas dos 6% do PIB. Qualquer que seja o critério de militarização
considerado, ressalta uma superioridade total dos Estados Unidos tanto em
relação a seus aliados do Norte como a seus rivais do Leste e do Sul
(Rússia, China, ...). Isso entretanto não quer dizer que saiam seguramente
vencedores das guerras em curso (ou daquelas a vir: Síria, Irão, mesmo
China?). Parecem reunidas as condições para que uma das consequências mais
graves da crise sistémica que vivemos seja a aceleração da drenagem de
capitais internacionais pelos Estados Unidos e o agravamento da
confrontação Norte-Sul. Hoje, crise capitalista e guerra imperialista
estão imbricadas. Elas assim estão sobretudo porque a guerra está
integrada no ciclo, economicamente, enquanto forma extrema de destruição
de capital, mas também politicamente pela própria reprodução das condições
de manutenção do comando da alta finança – fracção dominante das classes
dominantes – sobre o sistema mundial. O assalto que nos EUA os oligopólios
financeiros lançaram sobre o complexo militar-industrial assegurou-lhes um
controle do sector. Neste processo, o papel do Estado foi determinante
para o capital – pois é este que entra em guerra por conta daquele.
Sifonagem de recursos mundiais e utilização da força armada participam da
mesma lógica, ao passo que a multiplicação das intervenções armadas
travadas sob a condução dos Estados Unidos, directamente (por exemplo, no
Iémen, onde o Pentágono e a CIA foram convidados pelo presidente Obama a
colaborar) ou não (por intermédio da NATO, como na Líbia) exacerbam sempre
mais as contradições internas do sistema capitalista. A situação presente
assemelha-se menos ao começo do fim da crise do que ao começou de um longo
processo de degradação da etapa actual do capitalismo financiarizado, a
qual abre perspectivas de transição e insta a interrogações sobre as
alternativas de transformações pós capitalistas.

A AMÉRICA LATINA: NOVA INDEPENDÊNCIA E AVANÇOS SOCIAIS

O espírito de uma "segunda independência" sopra hoje na América Latina.
Ele é sentido nas experiências de regionalizações alternativas registadas
desde há mais de uma década, assim como nos avanços de forças
progressistas ao nível nacional e da solidariedade ao nível internacional.


As regionalizações alternativas: a "segunda independência"

A marcha rumo à união dos países latino-americanos experimentou etapas
decisivas desde o princípio da década de 2000. Uma primeira vitória foi a
rejeição do projecto ultra-liberal estado-unidense da Zona de Livre
Comércio das Américas (ALCA), pela convergência de mobilizações populares
das sociedades civis e a posição comum de resistência adoptada, apesar das
suas diferenças, pelos governos progressistas do continente. A estocada
contra a ALCA foi dada aquando da Cimeira de Mar del Plata em 2005,
durante a qual os Estados do Mercado Comum do Sul (Mercosul, reunindo
Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguais e Venezuela) disseram não às
ambições de dominação de Washington. Um segundo avanço foi o lançamento
quase simultâneo do ALBA (Alternativa bolivariana para os povos da nossa
América) por Cuba e pela Venezuela – fim de 2004. É no seu seio que hoje
está desenvolvida toda uma série de missões sociais destinadas a melhorar
as condições de vidas dos povos, nos domínios da saúde, da educação, da
alimentação, da habitação... Voltar-se-á ao assunto. Em paralelo, foram
lançadas várias iniciativas regionais, como a criação de um Banco do Sul
(BancoSur) ao qual estão associados dois pesos pesados do continente,
Brasil e Argentina, mas também, desta vez no quadro do ALBA, o acordo
instituindo um novo sistema de unidade de conta entre países membros, o
"Sucre".

No fim de 2004 foi assinada também a "Declaração de Cuzco", que preparava
a criação de uma nova organização supranacional que deverá reunir os cinco
países do Mercosul: Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Venezuela, já
citados, os membros da Comunidade Andina das Nações: Colômbia, Peru,
Equador, Bolívia, Chile (que permanece muito ligado aos Estados Unidos),
mas a Guiana e o Suriname. A União das Nações Sul-Americanas (UNASUR),
reunindo 12 países da América do Sul, foi lançada em meados de 2008, em
Brasília, com o objectivo de criar uma moeda, um passaporte e um
parlamento comuns. O "Grupo do Rio" começa igualmente a desempenhar um
papel importante, nomeadamente na resolução de conflitos regionais, como
foi o caso, por exemplo, em Março de 2008, quando uma guerra entre a
Colômbia, por um lado, o Equador e a Venezuela, por outro, foi evitada in
extremis.

É nesta dinâmica de apaziguamento das tensões e de tentativas de
reaproximações que recentemente os acontecimentos ainda se aceleraram. No
princípio de Dezembro de 2011, os chefes de Estado de 33 países da América
Latina e das Cariba reuniram-se em Caracas para criar a Comunidade dos
Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). A originalidade desta
instituição é reunir pela primeira vez a totalidade dos países soberanos
da região... sem ali associar os Estados Unidos (nem o Canadá). Se os
avanços precisos que permitirão realizar a CELAC permanecem indistintos, e
se ainda não é possível afirmar que suas orientações serão necessariamente
progressistas, sua colocação em andamento constitui em si mesmo um
acontecimento de alcance histórico. Finalmente, os povos latino-americanos
e caribenhos propuseram-se conduzir sua regionalização numa perspectiva
nova: a da tomada de distância e da independência em relação a seu(s)
vizinho(s) do Norte. É portanto todo o Sul que está interessado nestas
iniciativas.

Até o princípio dos anos 2000, os processos de regionalização iniciados na
América Latina sempre foram instrumentalizados ou neutralizados pelos
Estados Unidos, quando estes últimos não eram eles próprios encarregados
de os conceber. O facto é conhecido: os objectivos de dominação
estado-unidense foram expressos desde o fim do século XVIII, depois
sistematizados pela doutrina Monroe no século XIX. Suas agressões
militares repetidas, lançadas sob o pretexto de "proteger as vias e os
interesses americanos", haviam-lhes proporcionado uma zona de influência
no hemisfério ocidental, quase exclusiva na América Central e nas Caraiba.
O controle dos Estados Unidos sobre a região reforça-se no princípio da
Guerra Fria com a criação em 1948 da Organização dos Estados Americanos
(OEA), que para eles era um lugar de distorsão das políticas internas e
externas dos países latino-americanos. A consequência da criação da CELAC
é a marginalização de facto da OEA. Alguns, como o presidente Chavez,
falaram em "substituição"; outros, do lado mexicano ou chileno, de
"complementaridade". Mas o resultado está lá: a OEA, e através dela os
Estados Unidos, não decidirão mais o destino da América Latina. Da maneira
muito simbólica, os participantes entenderam-se, por unanimidade, para que
o país hospedeiro do encontro seguinte da CELAC fosse... Cuba – país
excluído da OEA desde 1962 por "incompatibilidade com o sistema
interamericano" (sic).

Se bem que a CELAC não tenha por enquanto nenhuma aplicação prática
verdadeira e que ela se choque com múltiplos bloqueios – devidos em
particular aos conflitos ideológicos existentes no seu seio e às
arbitragens entre os benefícios desta comunidade e a rendas extraídas dos
acordos comerciais bilaterais com os Estados Unidos –, imagina-se sem
dificuldade o impacto positivo que poderia produzir a orientação
progressista de uma tal integração. Mas a mudança está realmente em
marcha. Pois é a América Latina e Caribenha que doravante recusa ver
Washington impor suas decisões ao resto do hemisfério. Desenha-se uma
ampla frente de resistência do Sul, o que permite prever a formação a
prazo de um contrapeso ao hegemonismo estado-unidense, unipolar, e que
hoje se esforça por minimizar tanto quanto possível a amplitude do sismo
que está em vias de verificar-se.

Avanços sociais e solidariedade internacionalista: dois exemplos

A última vitória até à data das forças progressistas no continente
sul-americano registou-se a 12 de Outubro de 2014, quando, com mais de 60%
dos sufrágios, Evo Morales ganha a eleição presidencial e inicia seu
terceiro mandato à testa da nova Bolívia; aquela que está em vias de se
construir na dignidade e identidade reencontradas do seu povo; aquela da
recuperação dos recursos naturais finalmente redistribuídos pelas
políticas sociais do Bien Vivir (bem viver); aquela do respeito pelo
ambiente (a Pachamama, a terra mãe).

É princípio compreender desde o princípio: a Bolívia é, sobretudo, índia.
Uma excepção na América do Sul: seu povo é constituído maioritariamente
por "nativos" (originarios). Dois terços dos seus cidadãos reivindicam sua
origem índia: quechua, aimara, guarani... Até há pouco, todos os poderes
eram confiscados pelos 15% de bolivianos brancos de origem europeia. A
história do país caracteriza-se ao mesmo tempo por uma instabilidade
crónica, ligada às tendências putchistas de uma parte das forças armadas
que as levaram a sustentar uma série de ditaduras (inclusive a junta do
general Banzer de 1971 a 1978), e pela combatividade das lutas de um povo
politizado, lúcido. Durante muito tempo, as reivindicações da esquerda
foram impulsionadas pela Central Obrera Boliviana (COB), ligada ao Partido
Comunista e organizando, em torno dos sindicatos de mineiros,
experimentados e poderosos, amplas faixas do mundo do trabalho.

No decorrer das décadas 1980-1990, os golpes assestados pelo
neoliberalismo (da contracção dos orçamentos públicos à privatização de
minas, passando pela liberalização da agricultura) desestruturaram ainda
mais esta sociedade, uma das mais pobres do continente. A brutalidade
destas medidas, impostas sob a férula do Fundo Monetário Internacional,
foi ainda mais duramente ressentida porque a miséria ali era maciça, tanto
na cidade como no campo. Um dos efeitos deste desastre económico foi
engrossar o fluxo de migrações de famílias de desempregados das regiões
mineiras e de camponeses arruinados dos altos planaltos para as favelas
urbanas e as zonas rurais menos áridas. Sem recursos para sobreviver nem
possibilidade de produções alternativas, muitos reconverteram-se na
cultura das folhas de coca, organizando-se muitas vezes segundo o modelo
sindical. Bastante rapidamente, estes novos movimentos índios dotaram-se
de estruturas partidárias tendo em vista defenderem seus interesses no
combate político para a transformação social. Os acontecimentos
aceleraram-se nos anos 2000, neste contexto de mutações profundas e na
sequência de descobertas de jazidas de hidrocarbonetos que incharam as
reservas de gás e de petróleo do país e atraíram os investidores
estrangeiros. A rebelião do mundo operário e camponês ganha o conjunto do
povo e o dinamismo dos movimentos sociais coloca a Bolívia na primeira
linha das exigências de controle público dos recursos naturais enquanto
patrimónios ou bens comuns que devem estar sob a responsabilidade de toda
a colectividade (manifestações contra a privatização da água,
nomeadamente).

Uma reivindicação das organizações de massa era, desde há muito, a
nacionalização das reservas de petróleo e de gás, exploradas por firmas
estrangeiras – e cuja contribuição ao orçamento do Estado lhes assegurava
uma influência determinante sobre o país. A "ajuda" estado-unidense, que
atingia até 10% do produto interno bruto e era destinada tanto a erradicar
a produção de coca como a reprimir as "perturbações sociais", fazia o
resto... Naquela Bolívia, o povo sonhava com direitos à auto-determinação,
à democracia e ao desenvolvimento, mas em privado. O sonho não se tornou
realidade senão com a ascensão de Evo Morales à presidência. As vitórias
obtidas na eleição presidencial de Dezembro de 2005, e depois pelo seu
partido, o Movimento para o Socialismo (MAS), nas legislativas seguintes,
marcaram o arranque da revolução indígena. Estes acontecimentos de
dimensão histórica têm uma ressonância universal e apresentam ao mundo o
exemplo do ressurgimento e da emancipação de povos indígenas cuja inclusão
limitada na vida política favorecia até então a fragmentação e a
subordinação. Antes disso, foi-lhe necessário remover os representantes da
oligarquia local obediente aos diktats estado-unidenses a fim de tornar
possível a eleição à testa do Estado de um líder popular que restaura a
esperança.

O carácter autenticamente progressista do novo governo boliviano,
anti-neoliberal e anti-imperialista, surgiu com clareza no momento da
nacionalização dos hidrocarbonetos (Maio 2006). A recuperação dos recursos
naturais, arrancados ao país pelo neoliberalismo, modifica as proporções
detidas pelas transnacionais e o Estado na estrutura de propriedade do
capital do sector: 82% para este, 18% para aquelas, contra o inverso que
se verificava anteriormente. A intervenção sem confisco nem expulsão
constrangeu as companhias petrolíferas em actividade no território
boliviano a renegociar os contratos de concessão em curso. A retomada do
controle da estratégia energética pelo Estado efectua-se por uma sociedade
pública encarregada das operações de transformação, refinação,
comercialização e transporte do petróleo e do gás do país. Ainda que esta
– indispensável – reconquista da soberania nacional se tenha efectuado com
dificuldades e oposições, doravante a grande parte das receitas
decorrentes da gestão destes recursos naturais é dirigida para as
prioridades do Estado a fim de melhorar a sorte do seu povo e o
desenvolvimento da economia.

O futuro dirá o que é possível transformar do Estado Plurinacional da
Bolívia, no sentido de avanços mais pronunciados na transição socialista.
Na expectativa, em 12 de Outubro, foi aos líderes internacionalistas
emblemáticos das revoluções cubana e venezuelana, Fidel Castro e Hugo
Chavez, assim como aos povos hoje em luta contra o capitalismo e o
imperialismo, que Evo Morales, em nome dos bolivianos, dedicou sua
vitória.

O melhor exemplo de solidariedade internacionalista é o das missões
médicas cubanas. Como se sabe, Cuba respondeu aos apelos da Organização
Mundial da Saúde (OMS) e da Organização das Nações Unidas (ONU) para o
envio de equipes médicas a fim de lutar contra a epidemia de ébola que
afecta a África Ocidental (sobretudo a Serra Leoa, a Libéria e a Guiné).
Desde meados de Novembro de 2014, 165 profissionais de saúde cubanos
especializados na luta anti-ébola estão a trabalhar na Serra Leoa, 50 na
Libéria e 35 na Guiné – 15 outros devem chegar à Guiné-Bissau. A
estratégia adoptada foi combater a epidemia em simultâneo sobre o terreno
e de maneira preventiva, com formação de pessoal médico pronto a enfrentar
uma eventual extensão da doença. Outros profissionais preparam-se para
substituir as equipes no terreno. Também se mantém pronta para partir a
brigada médica Henry Reeve especializada nas intervenções em caso de
catástrofes naturais, que já efectuou missões em África, assim como no
Paquistão e no Haiti.

Esta é, até o momento, de longe, a oferta mais generosa de especialistas
no controle de doenças infecciosas e epidemiológicas recebida pela OMS.
Estes médicos e enfermeiros cubanos foram treinados intensamente no
Instituto de Medicina Tropical Pedro Kouri, de Havana, para se prepararem
quanto a protocolos de segurança e manipulação dos materiais de protecção.
Aquelas e aqueles que partiram para lutar contra o ébola são voluntários.
Para constituir estas brigadas, foi lançado um apelo: 15 mil cubanas e
cubanos apresentaram-se como voluntários. Os 165 que foram enviados à
África foram seleccionados entre estes 15 mil. Todos de alto nível e
experimentados, optaram por deixar famílias e amigos para irem salvar o
maior número possível de vidas no continente africano. Este é o sentido da
sua existência e esta é a mensagem de coragem e de humanidade com que o
povo de Cuba e seu governo se dirigem ao mundo. Apesar das dificuldades
que tem de enfrentar (um bloqueio!), este país encontrou em si as forças,
os recursos e as pessoas para assim agir. Cada um(a), no seu foro
interior, julgará o que é preciso pensar.

Para Cuba, esta decisão é a continuação da cooperação médica efectuada em
acordo com os países africanos. Para além desta contribuição à luta contra
o ébola, 4 048 trabalhadores cubanos da saúde, dentre os quais 2 269
médicos, participam actualmente em missões em 32 países do continente.
Desde o arranque da revolução cubana, em 1959, cerca de 77 mil médicos e
enfermeiros participaram de brigadas de saúde cubanas nos 39 países da
África. Ainda recentemente, mais de 36 mil pacientes africanos
beneficiaram da missão Milagro, pela qual puderam recuperar a vista ou
melhorá-la, nomeadamente aqueles operados da catarata. A acrescentar-se a
isto, numerosos estudantes originários da África são hoje formados nas
escolas de medicina de Cuba ou, para outros, no seu próprio país. Desde
1959, 3 392 médicos africanos, originários de 45 países, foram formados em
Cuba graças a bolsas de estudo concedidas pelo governo cubano.

Cuba actualmente está presente em 66 países com mais de 55 mil
trabalhadores da saúde, a metade sendo médicos. Dois terços dentre eles
são mulheres, exercendo muitas vezes em condições extremamente difíceis,
até nas montanhas do Paquistão. Resultados de 55 anos de solidariedade:
595 mil missões cumpridas em 158 países, 325 mil profissionais da saúde
envolvidos, 12 milhões de crianças vacinadas, 8 milhões de intervenções
cirúrgicas, 2,2 milhões de partos acompanhados, mais de 1 200 000 000
consultas médicas... Cuba fornece, por si só, mais pessoal médico aos
países do Sul que o G7. Estados Unidos, Japão, Alemanha, França, Reino
Unido, Itália e Canadá, ou seja, mais de 36 milhões de milhões de dólares
de riquezas produzidas (cerca da metade do rendimento mundial, mas com 10%
da população do globo)... contra apenas 65 mil milhões em Cuba (e 11
milhões de habitantes, menos que o Niger). "Dinheiro e material são
importantes", declara o Sr. Chan, director-geral da OMS, "mas o mais
importante são as pessoas, que experimentam compaixão, médicos e
enfermeiros que sabem reconfortar seus pacientes. Cuba é mundialmente
conhecida pela sua capacidade de formar excelentes médicos e enfermeiros.
O país é reconhecido pela sua generosidade e sua solidariedade para com os
países em marcha para o progresso. (...) Cuba é um exemplo". Os Estados
Unidos, pela voz do presidente Obama, também permanecem fiéis à sua
reputação: enviaram um contingente de 3 000 militares à África.

RECONECTAR ÁSIA, ÁFRICA E AMÉRICA LATINA

Da Tricontinental… a ALBAs africanos e asiáticos?

Aquando da cimeira da ALBA, em Outubro 2014, foi decidido que os seus
membros responderiam positivamente aos pedidos da OMS e da ONU enviando
recursos financeiros e humanos, mas também preparando-se para enfrentar um
eventual estado de crise sanitária. Profissionais cubanos estão em acção
para formar equipes de especialistas bem preparados no México, na Bolívia,
na Nicarágua... No fim de Outubro de 2014 houve também em Havana um
encontro de cientistas dos países da ALBA e da CELAC, ao qual foram
convidados especialistas originários da região e também do Canadá e dos
Estados Unidos. Certamente, o espírito de Bandung sopra hoje na América
Latina e Caribenha.

Cuba teve um papel fundamental – pioneiro – na história da conexão das
lutas da Ásia e da África com a América Latina, no rastro da conferência
de Bandung (1955). De 3 a 12 de Janeiro de 1966 houve em Havana, "no olho
o ciclone", a primeira Conferência de Solidariedade com os Povos da Ásia,
África e América Latina, ou "Tricontinental". A OSPAA, que reunia
representantes dos povos da Ásia e da África, nascida uma década antes no
Cairo, era ampliada para um novo continente, então a fervilhar desde a
vitória da revolução cubana, e tornava-se a OSPAAL, que denunciava o
imperialismo estado-unidense como o inimigo comum das jovens nações do Sul
e seu principal agressor. Um ano e meio depois, de 31 de Julho a 10 de
Agosto de 1967, novamente na capital cubana mas sob os retratos de Simon
Bolivar e do che, reuniam-se os movimentos revolucionários de 22 países da
América Latina (mais uma "delegação honorífica dos Estados Unidos"
dirigida pelo futuro líder dos Black Panthers ), na reunião da Organização
Latino-Americana de Solidariedade (OLAS). Este Sul, ou "Terceiro Mundo",
não era nem melhor nem pior que hoje, mas estava de pé e procurava se unir
para se libertar. Conhece-se suas grandes figuras, que encetaram a luta a
contra a injustiça insuportável do sistema mundial capitalista: Sukarno,
Hô Chi Minh, Zhou Enlai, Mehdi Ben Barka, Amilcar Cabral, Patrice Lumumba,
Frantz Fanon, Julius Nyerere… e tantos outros. O povo de Burkina Faso, que
hoje se levanta, recorda-se de Thomas Sankara e de todos eles. E se este
tempo retornasse? Talvez, por exemplo, graças a uma reactivação da
iniciativa América do Sul – África (ASA), concebida há alguns anos pelo
presidente Chavez? Ou então pela difusão rumo à Ásia e África dos ideais
que hoje animam o ALBA?

Depois de ter impedido a entrada em vigor da ALCA, em alguns meses os
povos da América Latina – pelo menos aqueles cujos governos se haviam
inclinado à esquerda – chegaram a passar à contra-ofensiva, graças à ALBA.
Esta aliança, imaginada desde o fim de 2001 como regionalização anti-ALCA,
foi pensada como uma alternativa radical às integrações correias de
transmissão da mundialização neoliberal, do tipo ALENA, o Acordo de Livre
Comércio da América Norte que esmaga a economia mexicana. A ALBA foi
lançada em Dezembro de 2004 em Havana por um acordo dos presidentes cubano
e venezuelano, Fidel Castro e Hugo Chávez, colocando as condições para uma
autonomia reforçada dos países latino-americanos. A base é a solidariedade
entre povos soberanos, excluindo toda interferência dos Estados Unidos.
Entrada em vigor em Abril de 2005, a ALBA foi ampliada pela integração da
Bolívia do presidente Evo Morales (Abril 2006), da Nicarágua de Daniel
Ortega (Janeiro 2007), depois da Dominica (Janeiro 2008) e de Honduras
(Agosto 2008, graças ao presidente Zelaya, derrubado por um golpe de
Estado militar em Junho de 2009 do qual uma das consequências foi a
ruptura com a ALBA), de Saint-Vicent e Grenadines e Antigua e Barbuda
(meados 2009) e do Equador do presidente Rafael Correa (Junho 2009).

O acesso ao petróleo venezuelano e ao maná financeira que ele proporciona
constitui evidentemente uma motivação de parceiros com recursos limitados.
O importante está alhures, pois a ALBA é portadora de profundas
transformações à escala continental. Na óptica bolivariana de uma
"federação de nações", a ALBA busca o fundamento de uma estratégia de
integração impulsionada não mais pelos princípios da maximização do lucro
e das "vantagens comparativas", mas por aqueles da cooperação, da
solidariedade e da complementaridade. Ela se inscreve no espírito da Carta
das Nações Unidas sobre a cooperação internacional e da Declaração da
Assembleia Geral sobre o direito ao desenvolvimento. Pela promoção das
missões sociais (alimentação, saúde, educação, habitação, emprego, ...), o
objectivo é de os continentalizar nos novos países membros, de os adaptar
às exigências locais e de os colocar ao serviço dos povos. A prioridade
imediata das acções conretas que são conduzidas vai para a melhoria das
condições de existência do maior número e da participação popular no
projecto de partilha mais justa das riquezas. Uma inovação consistiu num
fundo de compensação para a convergência estrutural, cuja finalidade é
tentar eliminar alguns dos obstáculos ao desenvolvimento e tratar de modo
preferencial os países mais pobres. Assim, apoia-se financeiramente, com
respeito pela soberania nacional dos Estados signatários, os esforços que
desenvolvem seus governos nacionais e colectividades locais a fim de
formular políticas que favoreçam o crescimento de sectores sociais e das
infraestruturas, a reapropriação dos solos e dos recursos naturais, a
diversificação da economia, o impulsionamento de agriculturas respeitosas
das massas camponesas, das produções industriais orientadas mais para as
necessidades internas ou certas exportações com forte valor acrescentados
que possam por em causa a divisão internacional do trabalho.

O motor da ALBA, processo de integração dos povos latino-americanos, é
impulsionado pelos Estados. Mas a concepção das forças motrizes da
regionalização foi ampliada de modo a associar às negociações, ao lado dos
governos parceiros, o maior número possível de representantes de movimenos
sociais solidários com esta dinâmica continental e activos, inclusive nos
países não membros da ALBA. Aos princípios iniciais, como a
autodeterminação e a complementaridade das economias parceiras, a
igualdade e a justiça nos intercâmbios, a integração das políticas
energéticas ou a cooperação tecnológica, vieram-se acrescentar novos
objectivos, tais como a reactivação da solidariedade entre os países do
continente, a busca da soberania alimentar, a luta contra a exclusão
social, a defesa dos direitos humanos na acepção mais ampla (civis,
políticos, económicos, sociais, pluri-culturais...), a preservanção do
ambiente. O conceito de regionalização evoluiu assim no sentido de uma
ultrapassagem da fragmentação das resistências e de uma convergências das
lutas para a construção de uma frente unida dos povos.

Face às disfunções do actual sisema mundial capitalista, pensar em
alternativas com conteúdo social afirmado tornou-se hoje uma exigência
para o bem estar dos povos. Uma das soluções passa pela ascensão dos
intercâmbios entre países do Sul que sejam fundamentados sobre
regionalizações alternativas, como é exactamente o caso da ALBA e de seus
programas satélites (PetroSur na energia, Sucre para a moeda, TeleSur para
a informação...). Para isso, as condições são numerosas, mas também
difíceis de reunir: seriam necessários, em primeiro lugar, avanços
populares nos países em causa e uma passagem das lutas da defensiva para a
ofensiva; em seguida, o acesso ao poder de um governo progressista e seu
controle efectivo do Estado; finalmente, a definição de uma estratégia de
união dos países do Sul.

Quais seriam, neste contexto, as possibilidade de êxito de uma versão
asiática ou africana da ALBA? No momento actual, parecem muito fracas, mas
não são inexistentes. Os obstáculos a ultrapassar são extremamente
importantes na Ásia e talvez ainda mais em África. Estes dois continentes
permanecem atravessados por contradições profundas e oposições múltiplas
(na Ásia, por exemplo, entre Japão e China, Coreia do Sul e Coreia do
Norte...). Estes conflitos locais são igualmente acentuados pela
ingerência dos Estados Unidos – sem esquecer seu controle militar directo
sobre vários países, como a Coreia do Sul, nem as guerras que prosseguem
no Médio Oriente e na Ásia central. De facto, a maior parte dos esforços
de institucionalização regional (na Ásia, por exemplo, em torno da ASEAN
ou através de diversas propostas de integração monetária) têm permanecido
bastante limitados. Tendo em conta seu peso demográfico, econonómico e
diplomático, a China é provavelmente o único contrapeso potencial ao
hegemonismo estado-unidense, mas permanece sempre imbricada no sistema de
poder do Norte, especialmente dos Estados Unidos. Entretanto, não é
totalmente inimaginável que uma inclinação à esquerda de um dos governos
de direita num país da região (exemplo: uma vitória eleitoral das forças
progressistas na Coreia do Sul) possa abrir a oportunidade de lançar uma
(tentativa de) regionalização alternativa asiática, no rastro da ALBA.

O futuro dirá se um tal cenário chegará a realizar-se – em torno de uma
Coreia do Sul orientada à esquerda e aberta à ideia de uma reunificação
com a Coreia do Norte e de uma reaproximação com a China e o Vietname, ou
mesmo em associação com outros países com governos menos progressistas,
mas que no passado souberam manifestar uma vontade de autonomia relativa
face aos diktats do FMI (como a Malásia durante a crise de 1998) – ou não
chegará... A menos que a agregação das forças na Ásia não se produz em
torno do grupo de Shangai, na base de uma aliança estratégica entre a
China e a Rússia, ampliada a vários parceiros chave da região. Este tipo
de regionalizações alternativas mudaria de natureza as relações entre os
países do Sul. Dir-se-á: isto é utópico! Sem dúvida, à vista do estado das
relações de força actuais. Mas lembremo-nos de que apenas alguns meses
antes do seu lançamento, a realidade da ALBA era simplesmente inconcebível
para muitos observadores – e isto, mesmo na América Latina.

Intercâmbios "equitativos" entre países do Sul?

O fortalecimento dos intercâmbios Sul-Sul é um dos eixos fundamentais
deste debate. E é a China que ocupa, de muito longe, a parte mais
determinante neste fenómeno, em particular no que se refere às relações
entre a Ásia e a África. Em 2010 ela assina cerca de 100 mil milhões de
dólares de contratos comerciais com países africanos, ou seja, dez vezes
mais do que uma década antes. Se bem que dificilmente calculável, o stock
total dos investimentos directos chineses na África poderia hoje exceder
120 mil milhões de dólares. O continente africano representa doravante um
terço dos aprovisionamento da China em hidrocarbonetos (Angola destronou a
Arábia Saudita como primeiro fornecedor). Os bancos chineses entram em
força no capital dos estabelecimentos bancários africaos, inclusive na
África do Sul. Mas é de facto o conjunto dos fluxos de intercâmbios
comerciais entre a África e a Ásia que aumentou fortemente. Para além das
diferenças locais e das variações anuais, o facto marcante é que as
economias da Ásia em geral, e da China em particular, tornaram-se para a
África parceiros comerciais incontornáveis.

Uma tal penetração levanta críticas – longe de serem todas fundamentadas –
tanto no Norte como em África. Nos países industrializados do Norte, as
condenações mais virulentas vêm de representantes das elites económicas,
que gritam "perigo amarelo". Entretanto é forçoso constatar que um dos
efeitos desta subida de potência da Ásia foi, imperceptivelmente,
constranger a União Europeia a moderar o tom altaneiro a que desde há
muito se habituara a dirigir-se aos africanos. Em África, são muitas vezes
comerciantes ou intermediários influentes que fazem campanha contra os
asiáticos; mas parece que grande parte das elites políticas, assim como
grande das camadas populares, encontram muitas vantagens nisso.

Apesar de problemas múltiplos e reais, que será preciso saber ultrapassar
pela utilização bem pensada de ferramentos de política económica à
disposição dos Estados, estas novas relações constituem no conjunto uma
oportunidade a aproveitar pela África. É mesmo provável que a recuperação
da taxa de crescimento económico dos países africanos entre 2000 e 2007
(ou seja até à explosão da crise sistémica global de 2008) seja
positivamente correlacionado com o dinamismo observado nos seus
intercâmbios com a Ásia neste período. Pois os efeitos positivos destes
intercâmbios passam por multiplos canais: reforço do comércio em volume e
em valor (uma vez que a procura asiática faz subir os preços das
mercadorias exportadas); construção de infraestruturas (uma parte dos
intercâmbios comportando uma rubrica recursos naturais contra trabalhos
públicos); alívio de dívidas (os créditos chineses sendo frequentemente
concedidos a taxas de juro baixas)...

As consequências portanto são claramente benéficas para a África, que
assim pode dispor de estradas asfaltadas (ligado o Cairo a Captown),
pontes, caminhos de ferro, equipamentos portuários... A "colocação em
concorrência" dos países clientes contribui também para orientar em alta
os preços dos produtos exportados nos mercados mundiais, ao passo que se
torna possível o emprego de recursos raros para satisfazer as necessidades
de consumo locais. Estes intercâmbios são igualmente interessantes,
certamente, para a China. Esta acede a recursos estratégicos para
sustentar seu desenvolvimento acelerado, a começar pelo petróleo (Angola,
Nigéria, Argélia), minerais e metais raros (Congo Kinshasa)... Ela
encontra também a oportunidade de empregar uma parte da sua mão-de-obra
excedentária e pode conservar suas reservas de divisas para afectá-los a
outras utilizações – infelizmente ainda frequentemente para a compra de
títulos da dívida estado-unidense. No total, um afrouxamento dos laços de
dependência dos países do Sul em relação ao Norte pode ter sobre eles
efeitos dinamizadores, multiformes. Diante de tudo isto, serão
"equitativos" estes intercâmbios entre a Ásia e a África? Se, do ponto de
vista africano, os benefícios destas relações parecem predominar sobre os
seus inconvenientes, não é seguro que todos os empreendedores ou
comerciantes chineses se tenham desembaraçado de todos os traços
desagradáveis do comportamento de dominação dos país do Norte para com a
África...

A economia dominante, nas suas versões académicas (teoria das vantagens
comparativas) ou vulgares (apologéticas do livre comércio), considera o
intercâmbio como igual e verificando-se entre parceiros iguais, que sempre
tirariam proveito de um comércio liberalizado visto como "jogo de soma
positiva". Os modelos económicos neoclássicos, que servem de fundamento às
recomendações políticas neoliberais das organizações internacionais e da
maior parte dos governos actuais, desembocam quase todos em conclusões
favoráveis ao livre comércio. Ora, no sistema mundial capitalista
realmente existente, o funcionamento da esfera da circulação mercantil
demonstrou sem ambiguidade, desde há mais de cinco séculos, que intervêm
de modo decisivo relações de forças e de dominação interelacionados (entre
países, classes...). O que os "heterodoxos" traduziram pelas teorias do
intercâmbio desigual, da dependência, da deterioração dos termos de
troca... Na África ou alhures, numerosos exemplos ilustram relações
económicas internacionais a operarem em desfavor do Sul. Falar de comércio
"equitativo" tornou-se moda – é um nicho com lucros sumarentos.
Tratar-se-ia de introduzir a "ética" nas relações comerciais, o que
equivale a reconhecer que o comércio tal qual ele é no sistema mundial
capitalisa não é "equitativo", na verdade que o intercâmbio é desigual.
Então, para alguns seria preciso "moralisar" o capitalismo... o que
subentende que este que se apresenta como o melhor sistema, portanto sem
alternativa, é de facto... imoral!

Uma das soluções para os desequilíbrios das relações Norte-Sul poderia
passar pela expansão dos intercâmbios Sul-Sul. As margens de progressão
são enormes e isto a todos os níveis: comercial, financeiro, energético,
tecnológico, científico... No entanto, isto só constituiria um factor de
reequilíbrio na condição de que este comércio Sul-Sul fosse expurgado dos
diversos "males" que caracterizam as relações Norte-Sul tais como operam
tradicionalmente. Seria de facto aceitável que uma economia do Sul se
comportasse em relação a um outro país do Sul como potência dominante
("sub-imperialista", poder-se-ia dizer)? Ou que ela viesse a exercer sobre
o seu parceiro pressões no sentido de um despojamento dos seus recursos
naturais (da terra) e de uma destruição do ambiente? O incremento dos
intercâmbios comerciais pode certamente dopar a taxa de crescimento
económico de um país, mas não significa em si mesmo o desencadeamento de
um processo de desenvolvimento sócio-económico, algo mais complexo. Para a
África de hoje, nada poderia substituir o reforço das suas formações
sociais agrária e o apoio estatal local das produções agrícolas
alimentares – ainda que pareça evidente que as importações de bens
asiáticos permitem aos povos africanos viver melhor consumindo mais e
ultrapassar crises alimentares. Uma vez cumprida a revolução agrícola – se
necessário por verdadeiras reformas agrárias –, o impulso a seguir poderia
ser dado a uma industrialização autocentrada e, quando possível, a certos
sectores dos serviços com forte valor acrescentado.

PARA UMA OUTRA POLÍTICA EXTERNA DO NORTE

As condições hoje parecem reunidas para que uma das consequências maiores
da crise sistémica actual seja o agravamento da confrontação entre o Norte
o Sul – apesar das cooptações do G20. O poder institucionalizado dos
oligopólios do centro entra cada vez mais frontalmente em conflito com os
interesses dos novos actores que aumentam o seu poder nas periferias do
sistema mundial. No seio deste último, as contradições multiplicam-se e
complexificam-se, inclusive entre classes dirigentes. Neste contexto,
projectos de cooperação Sul-Sul têm progredido, especialmente entre países
emergentes. A reaproximação estratégica dos "BRICS" permite pensar que
este conjunto chegaria, num futuro bastante próximo, a contrabalançar a
dominação do "G5". A partir de agora, a soma dos PIB medidos em paridades
de poder de compra da China, da Índia, da Rússia, do Brasil e da África do
Sul aproxima-se, em estática, do nível de riquezas produzidas pelos
Estados Unidos, contribuindo, em dinâmica, para dois terços do crescimento
mundial actual. As últimos Cimeiras dos BRICS (representando no total 45%
da população do planeta) marcaram a sua vontade de ultrapassar seus
contenciosos e coordenar suas posições a fim de apelar a uma reforma da
ordem mundial. Uma manifestação destas reaproximação foi o anúncio da
exploração das condições de factibilidade e de viabilidade de uma nova
instituição multilateral de crédito gerido por eles próprios. Este banco
visa financiar projectos de desenvolvimento sustentável e infraestruturas
nos países do Sul e do Leste (e talvez também do Norte), a busca de
respostas coordenadas face à crise e a autonomização das decisões
soberanas dos governos dos BRICS em relação às "soluções" das organizações
internacionais. Um dos objectivos é atenuar a importância do dólar
enquanto moeda internacional de pagamento e de reserva e um dos meios de
atingir esta finalidade é a promoção dos intercâmbios comerciais
bilaterais denominados em moedas locais. Mais um passo foi dado na
direcção da construção de um mundo multipolar. Mesmo se este não foi dado
com a intenção do sentido do progresso social e de uma democracia
substancial, esta marcha para a multipolaridade poderia impulsionar um
sistema mundial mais equilibrado e mais justo.

Face a estas evoluções fundamentais que ocorrem no Sul e no Leste, várias
questões apresentam-se aos progressistas e trabalhadores do Norte. Podem
eles tolerar que estes países do Norte continuem a agir muito
frequentemente ainda como potências imperialisas, mesmo neocoloniais,
quando grandes componentes das suas elites dominantes, que outrora em nome
dos seus povos cometeram crimes coloniais e escravocratas, submetem-se ao
poder da alta finança e lançam seus exércitos fora das suas fronteiras e
em muitos lugares do mundo em guerras – por assim dizer permanentes e na
verdade sob comando militar estado-unidense – contra países do Sul?
Aceitar a "fatalidade" de uma confrontação com o Sul e a ascensão das
diversas variantes de extremas direitas políticas, comunitaristas,
religiosas – todas igualmente pró sistémicas, ou seja, pró capitalistas –
que a acompanha? Aceitar que muitos líderes de suas organizações
partidárias e sindicais abandonem toda solidariedade internacionalista, ao
mesmo tempo que toda posição de clase em defesa dos interesses das camadas
populares? Estas dificuldades que enfrentam as forças progressistas do
Norte são também complicadas pelos problemas, não menos numerosos, que vêm
do Sul, dentre os quais a opção, para a maior parte das elites dirigentes
destes países, da via capitalista como "estratégia de desenvolvimento".
Para nós, é uma ilusão acreditar que o capitalismo seja uma "solução" para
o Sul ou o Leste.

Quais são as alternativas? Seria falso pensar que existem receitas
miraculosas; mas falso igualmente acreditar que não há alternativas. Há, a
discutir democraticamente. E para construí-las é preciso reabrir o debate
sobre as opções possíveis, libertando-se da propaganda mediática
dominante. Mas a urgência é travar a regulação do sistema capitalista
mundial pela guerra, sob a hegemonia estado-unidense e a agressão contra o
Sul. Para isso, é preciso sair da componente militar da NATO. Isso exige
não opor mais os trabalhadores do Norte aos povos do Sul e sermos capazes
de passar da construção de uma consciência colectiva àquela de actores
colectivas, plurais, multipolares, a fim de por em causa a extraordinária
potência conquistas pela finança. Esta solidariedade não pode passar senão
pela superação (dépassement) dos valores e das leis do capitalismo.
Desligar a máquina infernal destas guerras accionadas pela finança
necessita impor aos oligopólios financeiros a obrigação de um controle
público e democrático. É preciso nacionalizá-los e, com eles, os sectores
estratégicos da economia para colocá-los ao serviço dos povos e reabrir
margens de manobra para políticas de progreso social verdadeiro.
Do mesmo autor em resistir.info:

O 'renascimento' neoliberal da teoria do desenvolvimento
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As ideias feitas e a verdade escondida sobre Cuba
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Os Fórums de Mumbai 2004: Que lições tirar?
Cuba: Uma resistência socialista na América Latina

[*] Economista, francês, investigador do CNRS, UMR 8174 Centre d'Économie
de la Sorbonne.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
http://www.resistir.info/franca/remy_herrera_nord_sud.html
14/Dez/14

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