quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Propriedade pública e socialismo



por João Vilela [*]

Há décadas atrás constava de certo programa político "a devolução à nação
dos grandes meios de produção monopolizada, fruto do trabalho comum, das
fontes de energia, das riquezas do subsolo, das companhias de seguros e
dos grandes bancos". [1] Tal programa não era o de nenhuma organização
comunista, de nenhuma formação política da extrema-esquerda, de nenhum
partido revolucionário: era o Programa do Conselho Nacional da
Resistência Francesa, aprovado em assembleia plenária de 15 de Março de
1944, às vésperas da Libertação. Contou com o voto unânime dos resistentes
comunistas, gaullistas, e monárquicos. Não consta que, em consequência
dele, tenha vigorado em França a ditadura do proletariado.

Vem esta consideração a propósito da releitura, que fiz recentemente do
artigo A natureza de classe do chamado Estado social de Alexandrino
Saldanha [2] . Recuperando o essencial do pensamento marxista sobre o
Estado enquanto utensílio forjado pela classe dominante para a auxiliar na
exploração dos trabalhadores, conclui que o Estado social é um Estado
burguês que "foi obrigado pela relação política de forças, a nível interno
e externo, a fazer cedências à classe operária e aos trabalhadores. Isto
é, o Estado social é uma ditadura da burguesia com uma relação de forças
que lhe é em grande medida desfavorável; e que, perante a relação de
forças antagónica entre o trabalho e o capital e em determinadas condições
de desenvolvimento das forças produtivas, teve de dar melhores salários e
mais direitos aos trabalhadores".

Esta ideia tem elevada relevância para o correcto posicionamento dos
marxistas perante o Estado social: o da compreensão de que este
constitui uma expressão da correlação de forças desfavorável à burguesia
numa determinada conjuntura histórica, determinante de concessões em
matéria de remuneração do trabalho. O autor não deixa, no entanto, de
fazer notar que essa concessão tem dois aspectos crucialmente
desfavoráveis aos trabalhadores: por um lado, intimamente relacionado com
a correlação de forças (sempre tensa, e sempre em alteração), a existência
do Estado social é por definição conjuntural e dependente de um somatório
de condições político-sociais, nem todas passíveis de serem influenciadas
ou determinadas pelos trabalhadores; por outro, detido e aplicado pelo
Estado burguês [3] , o Estado social insere-se numa esfera inalcançável
para o proletariado, o qual, em circunstância nenhuma, pode tomar esse
Estado para si (e quando o logrou, no Irão de Mossadeqh, no Chile de
Salvador Allende, nas Honduras de Manuel Zelaya, etc., foi prontamente
expulso pelo aparelho repressivo), e muito menos utilizá-lo em seu
proveito. Sendo que, aliás, e permitimo-nos acrescentar, a integração
desse conjunto de concessões no Estado burguês monta uma armadilha de
dificílima resolução aos revolucionários, que assim se vêem constrangidos
a uma defesa de determinados aspectos do Estado burguês e não de outros,
dificultando, com isso, a compreensão pelas massas do aparelho de Estado
burguês, no seu todo, como um instrumento da dominação [4] .

Assim sendo, é cientes da natureza de classe do Estado que devemos fazer a
análise da citação do Programa do Conselho Nacional da Resistência. E cedo
verificamos quão instrutivo esse documento é para entender a afirmação,
mil vezes glosada mas muito pouco entendida, de Marx, sobre o capital como
sendo, não o acervo de trabalho acumulado que permite a produção futura
(como propõe a ciência económica burguesa) mas "uma relação social":
"como é que um conjunto de mercadorias de valores de troca, se transforma
em capital? Converte-se pelo facto de que enquanto força social
independente, isto é, enquanto força em poder de uma parte da sociedade ,
se conserva e troca pela força de trabalho, imediata, viva . A existência
de uma classe que não possui mais nada a não ser a sua capacidade de
trabalho é a primeira condição necessária para que exista capital" [5] .

A velhacaria da burguesia francesa, plasmada no programa supracitado, fica
exposta sem margem para dúvidas perante esta tese: o programa propõe-se
deslocar a propriedade jurídica dos meios de produção da esfera privada
para a esfera pública, sem que em momento nenhum se toque nas relações de
produção vigentes nessa sociedade. A parte da sociedade (e é Marx quem
sublinha esta expressão) que continua a deter a "força social" cuja
existência depende de "uma classe que não possui mais nada a não ser a sua
capacidade de trabalho" continua a mesma. Que essa propriedade se proclame
"do Estado", "pública", "da Nação", "do povo", ou de um assobio, não
altera em nada a realidade material, objectiva, palpável, da vigência de
relações de produção capitalistas. Da vigência da exploração do homem pelo
homem. Promovida por um aparelho de Estado, insista-se, criado pela
burguesia e ao serviço da burguesia.

Com efeito, e como sabem os largos milhares de trabalhadores precários em
inúmeras empresas e organismos públicos portugueses (parte considerável
dos quais, diga-se de passagem, contratados durante o consulado do hoje
preso preventivo José Sócrates), é reconhecida a diligência e criatividade
com que o Estado burguês explora, oprime, e persegue protestos dos
trabalhadores do sector público. Tal exploração, é decerto desnecessário
explicá-lo, não é feita em benefício "do povo", "dos cidadãos", do Estado
que "somos todos". Pelo menos pela minha parte, em momento nenhum me foi
feita chegar nem a infinitésima parte da percentagem do salário de um
motorista da STCP cortada por este Governo. Quanto aos banqueiros com quem
a mesma STCP (isto é, com quem o Estado burguês) celebrou contratos swap ,
não poderão afirmar o mesmo.

De nenhuma forma, naturalmente, estas considerações devem desautorizar o
esforço e a exigência de que um conjunto de empresas estratégicas sejam
prontamente nacionalizadas. É entendimento do autor que a luta contra a
privatização, e onde ela seja necessária pela nacionalização, da produção
e distribuição de electricidade, dos transportes, do fornecimento de água,
da banca, dos seguros, etc., é uma urgência indiscutível, e seria absurdo
defender o oposto. Cumpre, porém, ter em consideração quem está a fazer
essas nacionalizações, e quem está a gerir essas empresas enquanto não são
privatizadas. Cumpre ainda compreender que essas nacionalizações só
vigorarão quando e enquanto a correlação de forças não permitir a sua
privatização, e que portanto todas as nacionalizações empreendidas pelo
Estado burguês são conquistas de carácter puramente contingente, que
permitem (ou devem permitir) melhores condições para avanços ulteriores –
não são fins em si mesmos. Em suma, estas considerações buscam delimitar a
diferença entre a propriedade pública e o socialismo. Porque como, e
certeiramente, afirma o Programa do PCP, "[a] revolução portuguesa
apresenta como valiosa experiência o facto de, numa situação
revolucionária, mesmo não dispondo do poder político, as massas populares
em movimento e em aliança com o MFA terem podido transformar profundamente
a sociedade, empreender e realizar profundas reformas das estruturas
socioeconómicas, influenciar e condicionar o comportamento do poder
político e contribuir para a consagração legal dos avanços
revolucionários. Os anos ulteriores mostram também a extraordinária
capacidade das massas para resistir à contra-revolução mesmo quando
desencadeada e desenvolvida pelo poder político. Mas a experiência
confirma também que a questão do poder acaba por determinar o curso da
política nacional" [6] .
(1) Hessel, Stéphane - Empenhai-vos! . Lisboa: Ed. Planeta, 2011, p. 92.
(2) Disponível em www.odiario.info/?p=2405
(3) Reitere-se: o Estado é sempre de uma classe, nunca é neutro, e jamais,
em tempo algum, como fastidiosamente é vendido pelos comentadores da
imprensa burguesa, "é de todos nós".
(4) Não por acaso, na Crítica do Programa de Gotha , Marx esclarece que
"[n]o que, porém, diz respeito às actuais sociedades cooperativas, elas só
têm valor na medida em que são criações dos operários, independentes, nem
protegidas pelos governos, nem pelo burguês". É absolutamente claro que
este pressuposto se aplicava também às sociedades mutualistas e demais
instrumentos de protecção social desenvolvidos, à época, pelos próprios
operários. Em verdade, e usando da ironia que lhe é reconhecida, Marx
escreverá, demolindo quaisquer ilusões em "[q]ue se pode construir com
apoio do Estado uma sociedade nova do mesmo modo que um caminho-de-ferro
novo, é digno da imaginação de Lassalle!" O texto da Crítica do Programa
de Gotha pode ser confirmado aqui:
www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/gotha.htm#i3
(5) Marx, Karl - Trabalho Assalariado e Capital . Lisboa: Ed. Avante,
1975, p. 58. Os sublinhados estão no original.
(6) Disponível em www.pcp.pt/programa-do-pcp

Do mesmo autor:

As armas da crítica e a crítica das armas
A substituição da táctica pelo tacticismo chama-se oportunismo

[*] Licenciado em História e mestre em História e Educação.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
http://www.resistir.info/portugal/propr_publ.html

18/Dez/14

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