segunda-feira, 5 de novembro de 2018

A perda da supremacia militar e a miopia do planeamento estratégico dos EUA (1)


    
     
      – Um livro de Andrei Martyanov
       por Daniel Vaz de Carvalho 

             
             O mundo vive atualmente uma convulsiva e violenta desintegração da
            Pax Americana.   As suas ferramentas não funcionam contra aqueles
            alvos que têm capacidade para resistir a reais ameaças do
            expansionismo dos EUA. 
             Andrei Martyanov [1]  

       Andrei Martyanov é um reputado analista militar. Nascido em Baku, URSS,
       em 1963, graduou-se oficial da marinha soviética na Academia Naval
       Bandeira Vermelha de Kirov e prestou serviço na Guarda Costeira até 1990.
      Em meados dos anos 90 emigrou para os EUA sendo atualmente Diretor numa
      empresa do sector aeroespacial. Em 2018 publicou  Losing American
      Supremacy. The Myopia os American Strategic Planning  , um livro de
      flagrante oportunidade e fundamental para a compreensão das questões
      militares e geoestratégicas do mundo de hoje.
       Os perigos para a paz mundial continuam a acumular-se. Tragédias
       humanitárias abatem-se sobre povos que se limitam a seguir orientações
      diferentes das que os EUA – e a UE – admitem. Neste contexto, o livro de
      Andrei Martyanov (AM) constitui um importante contributo para a defesa da
      paz e de um são relacionamento entre os povos.
       O declínio cognitivo dos EUA 
       Nos EUA assiste-se a uma completa falta de raciocínio consistente da
       política externa à economia, às questões militares, à cultura (8) AM
      coloca desde logo o problema que atinge os que manipulam a informação: é
      que começam a acreditar em absoluto nas suas falsificações, tornam-se
      crentes dogmáticos, da própria narrativa. (11)
       Ditos especialistas militares que nunca envergaram um uniforme, formulam
       estratégias políticas e militares e influenciam decisões básicas, como o
      ataque ao Iraque e enviar mais 30 mil soldados para o Afeganistão. (128,
      129)
       Um dos mais conceituados analistas militares dos EUA, o Dr. Stephan
      Black, escrevia em 2017: "Como chamar Putin à atenção". Propunha que se
      enviassem forças navais para o mar de Azov (para lidar com a Rússia e
      apoiar o governo ucraniano). Demonstrava uma atroz ignorância: a
      profundidade média do mar da Azov é de 7 metros, menos 2,3 metros que o
      calado de um destroyer. Estas fantasias mostram a irresponsabilidade e as
      ilusões de grandeza dos EUA, além de uma irrestrita russofobia. (194)
       Como AM salienta, estes "especialistas" estão totalmente desligados da
      racionalidade, não tendo a mínima compreensão ou sensibilidade pelo mundo
      exterior. (171) Na realidade, falham porque não são especialistas de coisa
      alguma, são muitas vezes substituídos por atores, desportistas, teóricos
      da conspiração e demagogos que contribuem para a completa falta de
       entendimento da natureza do poder militar e das consequências da guerra.
       Não poderia ser de outra forma num país cuja história militar é em grande
      medida um mito triunfalista. (200)
       A distorção da realidade é também evidenciada pela forma como a Rússia, o
      único país que pode derrotar militarmente os EUA, foi reduzida a uma
      caricatura. A esquizofrenia cognitiva leva a que simultaneamente se
      propague a ideia da Rússia estar tanto à beira do colapso como prestes a
      dominar os EUA e todo o Ocidente. (140)
       Bases da política externa dos EUA 
       A essência da política externa dos EUA foi formulada por Karl Rove em
      2004: "Nós somos um Império, agimos, criamos a nossa própria realidade.
      Enquanto vocês a estudam essa realidade, nós agimos e criamos outras
      realidades que vocês também estudam. (150)
       A diplomacia dos EUA existe para proporcionar mudanças de regime – um
      eufemismo para ilegais e violentos derrubes de governos de que os EUA não
      gostam – e ditar ordens aos que não podem recusar os seus ditames. Este
      tipo de "diplomacia" é por definição profundamente incompetente. (200)
       É desta forma que os direitos humanos são usados para remover qualquer
      governo que não alinhe com os EUA. (140) Esta visão, mostra uma crescente
      falta de senso prático e uma série crise mental das elites dirigentes.
      (141)
       A ideia básica de que outras nações podem ter visões delas próprias e dos
      seus interesses que não envolvam a "liderança global" e a "democracia" tal
       como os EUA entendem, é algo que lhes escapa. (166)
       O cinismo de certos políticos americanos está patente desde Truman:
      deitando fora as mais importantes decisões de Roosevelt declarou que "a
      força é a única coisa que os russos entendem". (93)
       Os acontecimentos destes últimos 19 anos mostram que não é possível ter
      ilusões acerca da possibilidade de haver um diálogo medianamente racional
      com o Ocidente e em, primeiro lugar com os EUA. Não admira que a política
      dos EUA tenha um sombrio registo de desastres militares e humanitários.
      (218)
       Preconceitos ideológicos e moralistas não são novos. Resultam agora de
      uma combinação de ignorância e russofobia, revestida de pretensiosas
      doutrinas ideológicas e geopolíticas. Um autor (Paul Fussel) expressava
      que "a causa aliada (na 2ª Guerra Mundial) ficou manchada de impureza
      moral quando Estaline foi incluído", desprezava assim os esforços da URSS
      para ser elaborado um sistema se Segurança Coletiva Europeu antes da 2ª
      guerra Mundial. A sabotagem deste esforço deve ser o que Fussel classifica
      de "causa moral". (94)
       Os EUA falharam a oportunidade histórica de terem relações baseadas na
      igualdade e mutuas vantagens com a Rússia. Trataram-na com desprezo,
      chantagem, humilhação e ignorância nos anos 90. (215). Não admira que numa
      sondagem em 2017, 80% dos russos desejasse relações neutras ou mesmo
      hostis com os EUA. Apenas 14,7% se pronunciavam por relações de aliados.
       (196)
       Atualmente, exceto para uma fina camada de fanáticos "liberais", muitos
      dos quais nas folhas de pagamento de ONG norte-americanas, qualquer menção
      à "objetividade" dos media dos EUA e à sua liberdade de expressão, é
      acolhida pelos russos com sorrisos ou mesmo gargalhadas. (123)
       A Rússia como herdeira das realizações soviéticas [2] 
       Quando Putin declarou em 2005 que o fim da URSS tinha sido a maior
       catástrofe geopolítica do século XX, os fazedores de opinião ficaram
      apopléticos. Nas suas cabeças a União Soviética tinha sido o Império do
      Mal derrotado para sempre. Porém, não é possível compreender a Rússia
      moderna sem conhecimento do enorme e complexo impacto do período soviético
      e esta noção requer uma avaliação não distorcida dos êxitos e das falhas
      da URSS. (100,101)
       Para AM foram as realizações soviéticas que permitiram a recuperação
      económica, social e militar da Rússia após os anos 90. Foram aquelas
      realizações, que permitiram, por exemplo, os russos das cidades sobreviver
      às inumanas "reformas" dos anos 90, deslocando-se para as suas casas de
      campo onde faziam pequena agricultura. (125)
       AM refere que a vida dos soviéticos nos anos 70 era na verdade boa, nunca
      tendo vivido tão bem na sua Historia. (121) Salienta o elevado nível do
      sistema educacional soviético – e a recusa do sistema norte-americano –
      base da recuperação da Rússia. A URSS não apenas produziu cientistas de
      alto nível mundial mas também uma elite tecnológica que seriamente
      desafiava os EUA, alcançando-os apesar das devastações da 2ª Guerra
      Mundial. (117)
       Hoje os dissidentes soviéticos estão totalmente desacreditados. A terapia
      de choque aplicada à Rússia sob a supervisão de Jeffrey Sachs resultou num
      falhanço espetacular, não apenas originou imenso sofrimento ao povo mas
      também um drástico enfraquecimento do Estado Russo. Os dissidentes
      soviéticos limitavam-se a dizer o que era esperado deles: o excecionalismo
      norte-americano. A Rússia tornou-se um exemplo de como as coisas correm
      mal seguindo as prescrições norte-americanas. ( 26)
       As reformas liberais foram quase um suicídio coletivo. (39) Contudo,
       apesar dos "reformistas" pró ocidentais, a herança soviética industrial e
      militar, a consciência nacional e o desenvolvimento futuro foi preservado.
      Esta preservação reflete a quase genética cultura de um povo que lutou sem
      cessar contra invasões desde os Cavaleiros Teutónicos a Napoleão e Hitler.
      (34)
       Em 1913, 70% da população era analfabeta; em 1940 não era apenas
      alfabetizada, era uma das mais educadas do mundo. Em 1958 a quantidade de
      conhecimentos em matemática, física e biologia que os estudantes
      soviéticos recebiam antes da graduação numa escola pública, era três vezes
      superior ao estipulado para a entrada no MIT (Massachusetts Institute of
      Technology.) (112, 115)
       Em 1935, Estaline expressou os factos que obrigavam a tomar medidas
       drásticas para a industrialização soviética: "recebemos como herança um
      país tecnologicamente atrasado, empobrecido e arruinado por três anos de
      guerra imperialista e quatro anos de guerra civil, com população sem
      literacia (...) A tarefa é transformar este pais com uma indústria moderna
      e agricultura mecanizada. Ou resolvemos esta tarefa rapidamente e
      fortalecemos o socialismo ou não resolvemos e perderemos a independência e
      tornar-nos-emos objeto dos jogos dos poderes imperialistas". Em 1931 (como
      que premonitoriamente) tinha apontado um prazo de 10 anos para estes
      objetivos serem alcançados. (23)
       E isto de facto foi feito com sacrifícios, mas também com grandes
       conquistas sociais e das condições de vida. Foi uma imensa tarefa
       cultural e tecnológica. Por detrás dos sucessos militares soviéticos
      estava um sistema económico que tinha providenciado o que era necessário
      para derrotar a mais poderosa máquina militar do seu tempo. (26) A enorme
      capacidade militar soviética fica a crédito de Estaline, do seu governo e
      partido, grandes organizadores da vitória sobre o nazismo. (94)
       A elite soviética lutou na guerra, Estaline, como outros líderes, perdeu
      um filho. Brezhnev, reduzido a uma caricatura no final nos seus últimos
      tempos, foi um herói militar. A classe política soviética estava ciente
      dos sacrifícios suportados pelo povo e pelos soldados e expressaram-no
      durante e depois da guerra. (91)
       AM afirma-se não estalinista (o que quer que isto queira dizer
       atualmente) porém diz compreender perfeitamente a nostalgia do povo russo
      por Estaline, com raízes na deturpação da História russa. (106)
       A URSS é descrita numa caricatura tenebrosa completamente fora da
       realidade. A abertura dos arquivos soviéticos deitou por terra as
       mentiras de dissidentes baseadas da tese de um poder diabólico com
       fantasiosos números historicamente impossíveis, de pessoas perseguidas e
      mortas durante as repressões. (105)
       A média de presos no sistema penal soviético foi de 1,7 milhões; o total
      de pessoas presas por razões políticas durante a liderança de Estaline em
      32 anos, foi de 4 milhões. Nos EUA o número de presos em 2010 era de 2,27
      milhões e em 2016 2, 217 milhões. O número de presos no EUA é o mais
      elevado no mundo, incluindo per capita desde há décadas. (108)
       Segundo AM, é praticamente impossível convencer alguns que o povo
       soviético viajava aos milhões durante o seu período de férias – bastante
      longas e pagas – sem necessidade de qualquer "permissão". Apesar das
      horríveis perdas da Grande Guerra Pátria a população soviética teve um
       constante crescimento. As pacíficas realizações (como as da habitação
      depois das terríveis destruições da 2ª Guerra Mundial) são completamente
       ignoradas no Ocidente. (109)
       Mas não na Rússia: sucessivas sondagens desde 2012, têm mostrado uma
      permanente veneração por Estaline como a figura mais importante da
      História Russa, juntamente com Pushkin, Youri Gagarine, Pedro o Grande e,
      como esperado, Vladimir Putin. (103)
       Sinais de decadência dos EUA 
       As consequências do declínio cognitivo dos EUA, são evidentes no desastre
      no Iraque, na guerra perdida no Afeganistão, no pesadelo da Síria, na
      Líbia incontrolável, no golpe e guerra na Ucrânia. Tudo isto é um registo
      de incompetência geopolítica diplomática e militar que evidencia as falhas
      das instituições políticas, militares e académicas dos EUA. (13)
       Os eufemismos da terminologia económica migraram para a esfera militar e
       serviços de informações. A financeirização e o fundamentalismo do mercado
      livre destruíram o planeamento industrial e impediram o desenvolvimento
      das capacidades requeridas para uma verdadeira grandeza. (31) A repetição
      exaustiva dos dogmas económicos e sociais do liberalismo substituíram o
      conhecimento do mundo.
       A utopia da ortodoxia liberal de que o dinheiro e o lucro são a medida de
      todas as coisas, não funciona. Não importa qual seja a capitalização do
      Facebook, não pode proporcionar produtos e serviços que beneficiem todos
      os sectores da atividade humana. (213)
       O nível catastrófico de desindustrialização, a frágil recuperação da
      crise financeira, a crise das drogas ilegais nas cidades, a ascendência e
      influencia dos neoconservadores que quase levaram a um confronto direto
      com a Rússia, conduziram os EUA a um país crescentemente menos confiante,
      dividido e economicamente estagnado. (10,12)
       Como salientou o prof. James Petras: "a média das fábricas dos EUA é duas
      vezes mais antiga que as da China. Apenas para alcançar a produção da
      China os EUA teriam de investir mais de 115 mil milhões de dólares por ano
      na indústria nas próximas três décadas. (214)
       É irónico aliás que os EUA tenham de adquirir à Rússia foguetões RD-180
      para o seu programa Atlas e ir de boleia para a atualizada estação
      espacial russa Soyouz. (114)
       Para além das centenas de milhões de dólares gastos inutilmente, na Síria
      assistiu-se a milícias apoiadas pelo Pentágono atacarem milícias apoiadas
      pela CIA. (128)
       O custo total das guerras dos EUA desde 2001, ascende a 4,6 milhões de
       milhões de dólares (  http://www.informationclearinghouse.info/ )
       Os políticos e a liderança militar simplesmente falham em medir as
      consequências das suas decisões sobre o uso da força, baseadas em
      inflacionadas ameaças enquanto apostam em capacidades próprias grandemente
      exageradas. A realidade é que ninguém ameaça a existência dos EUA e
      ninguém planeia atacá-los a menos que seja primeiro atacado. (149)
       (continua)
       Ver também:
       A supremacia militar perdida dos EUA
        O gato e o cozinheiro
       [1]  Losing American Supremacy. The Myopia of American Strategic Planning
       , Ed. Clarity Press, 2018, 308 p., ISBN 0998694754.   Entre parêntesis os
       números das páginas a que se referem transcrições e comentários ao texto
      de AM.
       [2] Sobre este tema ver "Do fim da URSS à atual russofobia – Notas de
      Dimitri Rogozin, um embaixador russo junto da NATO", 
      resistir.info/v_carvalho/rogozin_resenha_1.html   e   
      resistir.info/v_carvalho/rogozin_resenha_2.html  

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/v_carvalho/martyanov_resenha_1.html
5/11/2018

Nenhum comentário:

Postar um comentário