quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Entrevista: ‘A esquerda foi singularmente incapaz e burra nessas eleições’, diz Jessé Souza



Juliana Sayuri


“Duas coisas salvariam o Brasil: interpretação de texto e consciência de
classe.”
A frase é de um meme das eleições, mas funciona para resumir o pensamento do
sociólogo Jessé Souza, professor titular da Universidade Federal do ABC, em seu
novo livro, A Classe Média no Espelho (Estação Brasil, 2018), que chega às
livrarias na próxima semana.
Na obra, Souza analisa os movimentos da classe média brasileira nos últimos anos
– especialmente aquela que, segundo sua expressão, se mostrou “dócil e
manipulável” ao ir às ruas contra a corrupção política e, mais tarde, engrossou
as fileiras de apoio a Jair Bolsonaro. “Um tiro no pé”, descreve.

Para o sociólogo, faltou à classe média entender as causas reais da crise
econômica. Por não compreender a lógica do capitalismo financeiro e erroneamente
se imaginar como parte integrante da elite, a classe média abriu mão do pacto
democrático para abraçar a ideia de que a corrupção do estado é a fonte de todos
os males no Brasil – e não o assalto “legalizado” promovido por bancos e grandes
corporações. “O vínculo orgânico entre empobrecimento e corrupção política é uma
mentira. É óbvio que a corrupção política é recriminável, mas não foi ela que
deixou a população mais pobre. Esta é a grande questão que ficou fora do quadro.
E era o que importava nas eleições”, afirma.
Ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, entre 2015 e
2016, e autor de títulos como A Ralé Brasileira (2009), A Tolice da Inteligência
Brasileira (2015), A Radiografia do Golpe (2016) e A Elite do Atraso (2017),
Souza vem criticando duramente a imprensa e os intelectuais alinhados à elite
econômica que, a seu ver, “imbecilizaram” a sociedade. Nesta entrevista ao
Intercept, o autor martela: “O país inteiro foi feito de imbecil. Não há melhor
palavra”.
Você inicia A Classe Média no Espelho com uma parábola sobre verdade e mentira.
Em tempos de discussões sobre pós-verdade, fake news e agora “disputa de
narrativas”, qual foi o peso da confusão entre verdade e mentira na ascensão de
Bolsonaro?
A elite econômica expropria a maior parte da população em seu benefício, e isso
só acontece a partir de uma mentira socialmente aceita, isto é, uma visão
distorcida sobre o funcionamento da sociedade. É como dizer: o mundo é assim,
ponto. A mentira legitima os interesses da opressão econômica e da dominação
moral. E uma das mentiras é “querer é poder”: se você fracassa, a culpa é só sua
– e não de um sistema injusto e explorador. Se você não compreende as causas de
sua miséria econômica no capitalismo, você está condenado a atribuir seu
fracasso pessoal a você mesmo ou, como foi feito, a políticos corruptos. Assim,
uma dominação econômica de uma classe só se sustenta ao longo do tempo se é
moralizada.
Obviamente, a única forma de combater a mentira social é com a prática da
verdade, a arma dos frágeis. É disso que trata a parábola, e que vale para o
atual contexto: as pessoas são historicamente acostumadas a ouvir a mentira,
pois a verdade muitas vezes pode ser bastante incômoda.
Apesar de esforços (de parte da imprensa, intelectuais e movimentos sociais)
para esclarecer fatos nas eleições, como a ideia de que o presidente eleito é
antissistema e anticorrupção acabou vingando?
Desde que o Brasil é Brasil, e principalmente a partir de 2013 de modo mais
insidioso e perverso, a elite econômica conseguiu consolidar, junto a seus
intelectuais e sua imprensa, a ideia de que o empobrecimento da população teria
sido causado apenas pela corrupção política, o que é uma mentira.
‘A esquerda foi singularmente incapaz e burra nessas eleições.’
A imprensa e a Lava Jato criminalizaram a Petrobras, deixando-a pronta para
vendê-la a preço de banana. O estado deixou de ganhar royalties, o pessoal
perdeu emprego. A Lava Jato prendeu meia dúzia e deixou invisível o saque real
trilionário de uma elite proprietária e uma alta classe média, que inclusive
empobrece a massa da classe média. O foco na corrupção política invisibilizou a
continuidade dos juros extorsivos embutidos nos preços, da estarrecedora
exploração do rentismo e da corrupção legalizada dos donos do mercado. A boca de
fumo da corrupção está no Banco Central, que assalta legalizadamente a
população. Mas as classes exploradas economicamente acreditaram na balela:
ficamos mais pobres por conta do roubo de políticos. É óbvio que a corrupção
política é recriminável, mas não foi ela que deixou a população mais pobre. Esta
é a grande questão que ficou fora do quadro. E era o que importava nas eleições.
A esquerda foi singularmente incapaz e burra nessas eleições. Tanto Haddad
quanto Ciro Gomes elogiaram a Lava Jato, o bode expiatório da corrupção
política. Na minha visão, o país inteiro foi feito de imbecil, não há melhor
palavra. Poderia dizer “falsa consciência” e agir contra os próprios interesses,
mas, na linguagem do senso comum, isso é simplesmente ser “imbecil”. Dentro da
própria esquerda, ninguém problematizou o rentismo, ninguém questionou: nós
todos pagamos juros que vão para o bolso de quem? Esse assalto econômico não é
visto como corrupção, como o engano de meia dúzia sobre 200 milhões de
brasileiros. O principal dispositivo do poder é se tornar invisível. E o poder
econômico é ainda mais invisível.
Qual é a sua definição de classe média?
 Classe social não é definida pela renda. Renda é um resultado, considerando a
vida adulta. Mas é preciso pensar que diabo acontece na infância e na
adolescência de alguém, que faz com que um ganhe mil vezes mais do que o outro?
Esta é a questão, que implica a reprodução de privilégios, positivos e
negativos. O privilégio da elite econômica é econômico, a propriedade.
O privilégio da classe média, que corresponde a 20% da população brasileira, é
principalmente o acesso a capital cultural, isto é, conhecimento, cursos de
línguas, universidades etc. Isso explica, por exemplo, a raiva de parte da
classe média ao ver pobre entrando na universidade, que era seu “bunker” que
garantiria salários melhores, mas também reconhecimento e prestígio.
Você diferencia “alta” (equivalente aos segmentos superiores da classe A) e
“massa” da classe média (as chamadas classes A e B). Seguindo esse paralelo,
onde estaria a dita classe C?
[A classe C] foi uma bobagem da propaganda do PT. No Brasil, temos quatro
grandes classes: uma ínfima elite econômica proprietária, uma classe média de
20%, uma classe trabalhadora majoritariamente precária e uma classe
marginalizada que está fora do mercado competitivo. O PT ajudou os
marginalizados subirem à classe dos trabalhadores, o que é histórico e
extremamente importante. Por miopia política, isso foi interpretado por
marketing malfeito como “chegar à classe média”, o que também é uma mentira. E é
preciso saber a verdade: seria preciso montar um projeto político de longo prazo
e dizer “um dia” vamos chegar a uma sociedade de classe média real. Dizer que
renda média é classe média é uma idiotice. Renda média de um país pobre equivale
à renda da classe trabalhadora, que é precária.
Se há uma vocação vira-lata da alta classe média, “que considera melhor tudo o
que vem de fora”, segundo sua expressão no livro, os alertas de diversos
veículos da imprensa internacional, como The Economist, The New York Times e Le
Monde, não deveriam ter pesado nas eleições?
Classe não é definida por critérios econômicos. As pessoas procuram se
distinguir umas das outras – e se sentir melhores do que as outras. A classe
média é moderna, nasce com o capitalismo e começa a ficar realmente importante
com o capitalismo industrial. E se cria uma alta classe média, que representa
interesses da elite: o CEO de um banco, por exemplo, não é um banqueiro. O
primeiro é alta classe média, o segundo é elite.
Mas o CEO tem a ilusão de se considerar parte da elite e, portanto, defende
interesses de seus patrões. E assim molda uma distinção diante das outras
classes, a partir do alto consumo de bens importados, por exemplo. Ele quer se
sentir um pouco europeu, um pouco americano, dentro de seu próprio país. Só que
a alta classe média é muito conservadora e faz qualquer negócio para manter seus
privilégios. Ela não tem sensibilidade em relação ao restante da sociedade,
portando-se como uma elite estranha ao próprio país.
‘O que antes era ódio ao escravo, agora é ódio ao pobre. E parte da classe média
tem muito medo de descer à condição de pobre.’
Há ainda divisões dentro da alta classe média: uma fração da indústria mais
“democrática”, digamos, que depende e se importa com um mercado interno pujante;
e uma fração predominante do agronegócio e mercado financeiro, voltada para o
mercado externo, que fica rica independentemente se o país vai bem ou vai mal.
Temos, afinal, uma elite de herança escravocrata que pensa a curto prazo: quero
o meu agora, não me importa projeto de futuro. Isso amesquinha o país como um
todo.
Se antes o escravo era submetido a trabalho desqualificado, agora a maior parte
da população brasileira faz trabalho semiqualificado ou desqualificado. E é
excluída das benesses do mundo moderno. O que antes era ódio ao escravo, agora é
ódio ao pobre. E parte da classe média tem muito medo de descer à condição de
pobre. Afinal, classe não é só um cálculo econômico, mas um cálculo moral de
distinção social.
No livro, você projetou que muitos se voltariam “ao voto de protesto desesperado
e irracional” de apoio a Bolsonaro. Passadas as eleições, pensa a vitória como
“voto de protesto”? Ou de uma busca genuína por mudança?
O que está acontecendo hoje faz parte de um processo de luta de classes. Um
processo que se estende desde 1930. O que foi que a elite fez? A elite montou, a
partir da imprensa e das universidades, o domínio simbólico, moldando a visão de
mundo da classe média. Agora, para a alta classe média, esse discurso é racional
e pautado pelo interesse econômico: estou ganhando mais. Mas, para a massa da
classe média, é irracional: para pensar que está ganhando algo, uma recompensa
moral, a massa da classe média protestou e se portou como “ah, sou moralmente
superior do que as classes populares, estou escandalizada porque me incomoda e
combato a corrupção política”. Foi explorada.
Mas a ideia de que o empobrecimento ou o risco de empobrecimento estaria ligado
organicamente à corrupção…
Corrupção política. Desculpe interromper, mas veja que, sem querer, você
equalizou corrupção e corrupção política.
Sim, corrupção política. Você diria que a construção desse discurso escapou ao
controle de quem o construiu – parte da imprensa, como indica no livro? Se a
população brasileira fosse tão “manipulável” por uma imprensa a favor de
interesses da elite econômica, como compreender críticas tresloucadas que
atribuem à Folha de S.Paulo a alcunha Foice, de referência comunista, e o bordão
“o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo” capturado por militantes de direita a
partir de 2013?
Quando se começa uma coisa, só se sabe como ela começa, mas não sabe como
termina. Nossa imprensa é venal, desde o início comprada pelo mercado. Nunca
tivemos uma rede pública [de comunicação] como existe na Europa – e às vezes
alguns até confundem TV pública com TV estatal. Nunca tivemos uma imprensa
confrontando o poder de forma plural.
A imprensa atacou o governo, pois a presidenta, um pouco estabanadamente, atacou
o juro, o lucro dessa elite, a partir de 2012. Isso foi usado contra o governo
eleito e que era tudo menos corrupto – a presidenta não roubou um lápis que
seja. Mas o ataque midiático se voltou a todos os consensos morais de uma
democracia. Não é a letra legal de uma Constituição que dá sangue à democracia,
mas os consensos morais: não se pode expurgar a presunção de inocência,
banalizar vazamentos ilegais, banalizar desrespeito de direitos fundamentais.
Isso é a base de uma democracia.
‘A imprensa toda foi muito burra. Ela pisoteou a democracia, e agora vai ter uma
vida muito difícil.’
A imprensa ajudou a fazer terra arrasada disso e, depois, veio a eleição de
Bolsonaro como uma espécie de vingança das classes médias e parte das classes
populares contra esse estado retratado como corrupto. Se você ataca a democracia
como um todo, obviamente você ataca a liberdade de expressão. Tecnicamente, a
imprensa toda foi muito burra. Entenda-se: burrice é pensar a curto prazo, seja
para o bem seja para o mal; inteligência é pensar a longo prazo, seja para o bem
seja para o mal. Ela pisoteou a democracia, e agora vai ter uma vida muito
difícil. Parte da imprensa e setores da alta classe média deram um tiro no pé.
Se isso terminará num banho de sangue, numa tribalização da sociedade ou numa
tomada de consciência, ninguém sabe dizer. Mas que será problemático, será.
Nos últimos tempos, o caráter fascista ou não das ideias representadas por
Bolsonaro foi muito discutido. Você teme que a expressão “fascismo” se desgaste
tal qual “populismo”, que a palavra se torne um coringa para desqualificar
adversários?
Não. O principal mecanismo do fascismo é a desumanização, o não reconhecimento
do outro. Na minha opinião, obviamente há elementos fascistas nas ideias do
presidente eleito: apologia da tortura, assassinato de adversário político etc.
Historicamente foi assim que o fascismo se expandiu no entre-guerras: pega a
raiva e o ressentimento da classe média e do povo e joga num bode expiatório
socialmente aceitável. Logo, estamos num contexto de neofascismo, junto a uma
dominação do capitalismo financeiro: na economia, invisibiliza, deixa opacos
elementos econômicos; na política, provoca desmobilização popular.
Nos Estados Unidos de Donald Trump e no Brasil de Bolsonaro, o capitalismo
financeiro quebra e destrói relações sociais e vida associativa, provocando
desorientação e isolamento do indivíduo. E, novamente, é dito a ele que o
fracasso é culpa dele – e não de um sistema injusto. É uma estrutura fascista,
sim, de novo tipo. Que está se internacionalizando e que vive do mesmo tipo de
desrespeito e desumanização que fazia o fascismo anterior. Que quer dizer que o
outro, por pensar diferente, merece morrer. E a classe média, que sempre odiou o
pobre, agora está se sentindo mais à vontade para expressar, explicitar esse
ódio. No fim, o ódio é exatamente o que o fascismo produz.
Você usou muito a palavra “golpe” para tratar do impeachment de Dilma Rousseff.
Pensa que a palavra foi desgastada?
Não. Foi um golpe de novo tipo, articulado por uma situação econômica. O dado
econômico é incrível, porque é sempre o mais invisível. A causa de tudo foi a
tentativa de se apropriar do orçamento público e do mercado interno via juros.
Foi um golpe parlamentar, mas qual é a independência que esse parlamento tem? Um
parlamento de baixíssimo nível, eleito com dinheiro de bancos e grandes
corporações. No ano anterior [ao impeachment], a presidenta tinha feito um
enorme esforço para diminuir os juros e usado os bancos públicos para isso. De
uma hora para outra, empresas deixaram de investir, e a imprensa inteira passou
a atacá-la.
Mas, veja, a elite se apropria do que é público mediante parcerias
público-privadas – um exemplo, como as estradas. Entretanto, foi ensinada a
imbecilidade de que o Brasil é corrupto por causa da herança de Portugal, uma
mentira legitimada com prestígio científico nas universidades. Um povo ladrão
por conta da herança portuguesa e, agora, ladrão dentro do estado. Sendo que o
estado é a esfera que se pode contrapor a um mercado desregulado.
Dias antes do segundo turno, universidades se tornaram alvo de diversas ações de
fiscalização – e justamente faixas contra o fascismo foram censuradas. Dias
depois do segundo turno, investidas do Escola Sem Partido avançaram com a
convocatória de denúncias contra docentes “doutrinadores”. Ainda há pensamento
crítico e resistência nesses espaços?
Como você mantém uma população inteira precarizada? Você pega a escola, um
elemento de classificação e acesso a conhecimento que está relegado à classe
média. O privilégio positivo específico da classe média é este: estímulo para
estudo, domínio de línguas, capacidade de concentração. Você chega aos cinco
anos na escola particular como um vencedor, pois é aparelhado psicológica e
moralmente: espera bons salários e prestígio. O pobre já é tratado como um
perdedor, num abandono secular e cumulativo. Depois, você vê a classe média
culpando a classe pobre, dizendo que ela é preguiçosa e indolente – e que o
mérito do seu sucesso é só seu. Assim, a sociedade brasileira sacramentou dois
caminhos: um, da felicidade; outro, do fracasso.
‘Nenhum povo pode ser senhor do seu próprio destino sem conhecimento. E
conhecimento deve ser compreensível.’
Agora, quais são os dois pilares do desenvolvimento de um país? Indústria e
educação. Só que a educação está toda montada dentro de um contexto elitista. É
Paulo Freire, pensamento crítico e educação libertadora para a classe média; e
trevas para a classe trabalhadora. É loucura dizer que essa estrutura de
educação classista é de esquerda. E apenas tende a transformar e sacralizar esse
caminho perverso que monta a opressão de classes entre nós: duas educações, duas
classes, dois tipos de indivíduo.
Você declarou, certa vez, que o “que provoca efetiva dor de cotovelo nos meus
detratores é o fato de ter conseguido, com muito esforço, expor questões
complexas de modo simples e compreensível para a maioria das pessoas”. No seu
novo livro, a atenção à acessibilidade da linguagem também está presente. Para
quem você escreve?
Não quero falar para seis pessoas. Nisso está embutida uma crítica ao próprio
saber acadêmico. Passei minha vida juntando capital acadêmico, acumulando
trabalho. Penso que estou usando um capital acadêmico de vanguarda com uma
linguagem acessível. Nenhum povo pode ser senhor do seu próprio destino sem
conhecimento. E conhecimento deve ser compreensível.
Tenho tentado fazer um esforço enorme de dizer coisas complexas que, com boa
vontade e interesse, qualquer pessoa possa compreender. Não é por falta de
conhecimento prévio e formação acadêmica que a pessoa não vai entender o livro.
É por falta de coragem. A gente não nasce sabendo, é preciso aprender: aprender
é um ato de coragem. A ciência pode ser libertadora; o conhecimento,
empoderador. Imagina se o povo brasileiro compreende que está sendo enganado?

No campo da linguagem, destacaram-se autores de direita como Olavo de Carvalho,
tido inclusive como intelectual vencedor dessa eleição. Como ele conseguiu
arregimentar tantos adeptos?
A sociedade brasileira está em uma esquina em que uma série de aprendizados são
necessários. Algumas pessoas estão começando a compreender o tamanho da fera que
está a um metro de nós. Algumas pessoas que estavam muito acomodadas no seu
mundinho. E, agora, ou a gente reformula esse comportamento, ou nós todos, como
país, vamos perder. Esta questão está muito presente agora. Principalmente entre
a esquerda colonizada por uma linguagem que só beneficiou a direita.
Você chegou a ser chamado de ‘Olavo de Carvalho da esquerda’. O que pensa da
comparação?
A Elite do atraso teve muita repercussão, muito além do que eu imaginava.
Retornos de pessoas simples, o público que eu gostaria de atingir, me comoveram
muito. A escola de samba Paraíso do Tuituti usou elementos; o presidente Lula
leu o livro na prisão. Efetivamente, penso que pude fazer, pela primeira vez,
uma interpretação crítica da sociedade brasileira de fio a pavio. Sei que é
ambicioso dizer isso, e fico à disposição para quem queira contrapor meus
argumentos. [O que propus no livro] compromete toda uma tradição de pensamento,
de direita e de esquerda. O núcleo dessa tradição, esse liberalismo chique,
aceita a ideia de corrupção política. O que fiz foi articular uma visão crítica,
com encadeamento explícito dessas ideias. O novo livro A classe média no espelho
é uma continuidade. Trago uma visão mais sofisticada e crítica do que a tradição
intelectual brasileira. Estudei todas as classes anos a fio, dediquei uma vida
inteira a isso. Logo, interpreto esse tipo de interpelação como inveja.
Por fim, professor, o livro propõe posicionar a classe média brasileira diante
do espelho e revelar suas concepções do mundo. Enquanto integrante da classe
média, como você afirma no livro, como você se vê diante do espelho?
No fundo, minha atividade é intelectual. E o intelectual, para criticar e
inclusive para se autocriticar, precisa conhecer. Eu também tinha esse
academicismo antes. Achava que meu público se limitava a uma dezena de pessoas
que poderia compreender o que eu estava dizendo, como se “só eu e mais alguns
aqui eleitos entendemos como o mundo funciona”. É isso, afinal, que as classes
procuram: se distinguir uns dos outros. Isso move o ser humano tanto quanto
dinheiro.
Embora eu tenha vindo de estratos mais baixos da classe média, como professor
universitário pertenço à massa da classe média. E me questionei: numa sociedade
perversa como a nossa, que peso a massa da classe média tem sobre a pobreza dos
pobres?
Foi uma epifania quando compreendi que alguns, pensando que estavam à esquerda,
estavam montando de uma forma ideológica o poder de meia dúzia de proprietários.
Você cria uma distância em relação a você mesmo, uma autocompreensão. A partir
da crítica da minha própria posição e dos pressupostos que ela envolve
legitimando uma lógica, tentei a começar uma autocrítica e uma crítica da
própria sociedade que tinha me marcado essa visão de mundo.

In
THE INTERCEPT
https://theintercept.com/2018/11/18/jesse-souza-entrevista/
19/11/2018

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