terça-feira, 19 de março de 2019

O massacre que a TV não mostrou em Suzano


 
Flávia Martinelli


    Enquanto as emissoras focaram a cobertura nas cenas de sangue e
    barbárie, entrevistas com pessoas em estado de choque e assédio aos
    familiares dos atiradores, um grupo de professores na porta da
    escola Raul Brasil explicava a tragédia anunciada

Estarrecido, o país parou nessa quarta-feira, 13 de março de 2019, para
entender o que houve na Escola Raul Brasil em Suzano. O massacre, que
resultou em dez mortes e ao menos 11 feridos, exigiu cobertura ao vivo.
As TVs escalaram seus repórteres, suas câmeras de alta resolução, seus
helicópteros, seus carros com satélites de link para transmissões
diretamente do local do crime. O arsenal estava todo lá. *Mas acompanhar
a chegada das informações pelas emissoras foi mais um espetáculo de
horrores da mídia nacional.*

Das cenas de pânico e horror dos alunos e funcionários aos corpos dos
mortos no chão, vimos tudo em detalhes. Menos o essencial: o massacre do
ensino público e o desamparo das escolas, professores, alunos e de toda
uma população vulnerável à falta de políticas públicas capazes de
promover o diálogo entre educação, assistência social e saúde ANTES de
uma tragédia acontecer. Uma tragédia anunciada, por sinal, pelas mãos de
um governante que banaliza a morte ao brincar de empunhar armas de fogo
enquanto reduz ainda mais as verbas para a pasta de educação.
<https://jornalistaslivres.org/a-mercantilizacao-do-odio/>

O fato é que nenhuma emissora se preocupou com isso tudo quando passou
horas a fio reproduzindo os gritos, o medo e o pânico de uma escola
inteira diante um revólver de verdade. O apresentador Datena
<https://www.facebook.com/datenaoficial/>, por exemplo, não poupou
ninguém em horário livre para crianças: colocou ao vivo e em câmera
lenta as cenas brutais de violência que registraram o massacre pelo
circuito interno da escola. Diretamente de Suzano, um repórter de seu
programa ainda foi capaz de encurralar a mãe dependente química de um
dos assassinos. A TV Globo <https://www.facebook.com/RedeGlobo/>, por
sua vez, não hesitou em mostrar o endereço da casa dos familiares dos
atiradores no Jornal Nacional. Se a mãe, pai, avô ou os quatro irmãos de
um deles virarem eternos reféns de um crime que não cometeram, o
problema não é da emissora.

    *O choro convulsivo de crianças e os endereços dos sites de
    fanáticos por violência também foram oferecidos ao público por
    diferentes programas de TV. Não houve limites para a
    irresponsabilidade, a covardia e sanha por audiência minuto a minuto.*

Passamos o dia ouvindo dezenas de entrevistas de porta-vozes de forças
policiais, cenas oficiais de João Doria que omitiram a grande vaia que
ele recebeu no loca
<https://jornalistaslivres.org/em-suzano-populacao-cai-na-real-e-vaia-doria-governador-de-sao-paulo/>l,
e nenhuma entrevista com educadores e professores analisando o caso a
partir do fato de que aqueles atiradores poderiam, sim, ser um dos seus
alunos.

Pelo contrário, ao mencionar que os assassinos foram alunos da escola,
os jornalistas imediatamente reiteravam que Luiz Henrique Castro, de 25
anos, já havia concluído o curso, e o outro, Guilherme Taucci, de 17
anos, era *“evadido”,* ou seja, termo usado para designar o aluno
convidado a se retirar ou que simplesmente saiu do colégio e nunca mais
voltou. Nada se questionou sobre esse sistema de abandono escolar que,
sabe-se, é assunto delicado.

Atualmente existem cerca de*10 milhões de crianças e adolescentes
excluídos do sistema de ensino ou em situação de atraso escolar, de
acordo* com Censo Escolar e a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD). O assunto é a prioridade dos programas da agência
brasileira da Unicef, <https://www.facebook.com/UNICEFBrasil/> o Fundo
Internacional de Emergência para a Infância das Nações Unidas. O órgão
de defesa de direitos da infância sabe que, infelizmente, existe uma
cultura disseminada nas escolas públicas brasileiras de rotular as
crianças e adolescentes com atraso, problemas familiares e afins, como
incapazes de aprender e superar suas condições.

Mas a TV não polemizou nem ao vivo ou em estúdio essa questão. Apenas
ignorou o tema que deve ser compreendido como parte de uma complexa
desconexão entre a rede educacional, de assistência social, de saúde e
de apoio por profissionais especializados em gerenciamento de conflitos.

A televisão preferiu dar voz sem críticas ou embate de opiniões às
declarações de um parlamentar que afirmou que professores armados teriam
evitado o massacre. Os jornais também passaram batido por um dos
principais temas a serem abordados no momento: a política de ampliação
de posse e porte de armas que embasou a campanha do atual presidente e
sua influência no comportamento da população, particularmente, entre os
jovens.

Ao final da cobertura do dia, muito se mostrou do crime e do horror.
Acontece que a violência nas escolas não é apenas uma questão do
noticiário policial. É assunto para as editorias de educação, saúde e
política.

    *A escola, vamos lembrar, é aquele espaço onde crianças e
    adolescentes passam boa parte do tempo para estudar. Esses alunos
    carregam na mochila seu histórico familiar, eventos traumáticos,
    estresse crônico, abusos e todo tipo de experiências fora dos muros.
    A escola também representa a última fronteira entre esses jovens e
    uma série de tragédias a que estão vulneráveis: do tráfico de drogas
    à marginalização, subemprego ou desemprego. E nelas estão
    professores mal remunerados, desmotivados, assustados e adoecidos. É
    nelas que mães e pais confiam seus filhos enquanto saem para
    trabalhar – ou vão à procura de emprego.*

Todos esses assuntos subestimados nos noticiários viraram destaque na
conversa de um grupo de professores que estava na porta da Escola Raul
Brasil no dia do massacre. Educadores de escolas da região de Suzano e
representantes da Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial
do Estado de São Paulo) <https://www.facebook.com/imprensadaapeoesp/>,
estavam ali para oferecer apoio aos educadores e alunos da Raul Brasil,
e também se dispuseram a conversar com a imprensa na terça-feira.
Estavam ali prontos para as entrevistas mas pouco foram abordados.

Em entrevista aos Jornalistas Livres
<https://www.facebook.com/watch/?v=2356771397887254>, porém,
esclareceram didaticamente: o massacre de Suzano foi fruto desse
entroncado e complexo sistema de sucateamento de diferentes políticas
públicas cujas mazelas escoam, diariamente, nas mais de cinco mil
escolas públicas do país.

A professora Angela Talassa, que dá aulas na Escola Estadual Professor
Carlos Molteni, a apenas dois quilômetros da Raul Brasil, chama atenção
para a precariedade de o sistema de ensino lidar com os conflitos dos
jovens sob intensa exposição à violência.
<https://www.facebook.com/watch/?v=410086699759204>“Agora, neste
momento, estamos com esse grande movimento de psicólogos, médicos,
enfermeiros, assistentes sociais, funcionários da área de saúde da
prefeitura prestando socorro aos familiares e à escola. Mas é preciso
dizer que precisamos dessa atenção multidisciplinar ANTES de uma
tragédia acontecer. *Amanhã, quando os corpos esfriarem e os jornalistas
desaparecerem, estaremos sozinhos como sempre?”*

Angela conta que identifica na sala de aula, facilmente, os alunos que
estão sofrendo de depressão, diversos tipos de síndromes emocionais e
transtornos. “*Eu mesma já tirei carta de suicídio de bolsa de aluna”*.
Mas ela não tem a quem recorrer. “Pedimos encaminhamentos que acabam
nunca acontecendo. Os estudantes são orientados a ir à Universidade de
Mogi das Cruzes para atendimento psicológico e a maioria não tem
condições de sequer chegar até lá”, desabafa.

    *“Os adolescentes, então, ficam sem tratamento remoendo todos os
    seus problemas: os que são próprios da idade e os que são fruto
    dessa tragédia social que o país vive. Isso não pode ser ignorado.”*

Ao lado dela, o educador Richard Araújo, da Apeoesp, concorda: “Há
muitos anos temos observado esse fenômeno crescente de violência nas
escolas e o governo não toma providências. *Quem acredita que
militarizar as escolas ou armar a população vai resolver o problema da
violência não compreende a complexidade da crise social que existe no
nosso pais e como essa crise adentra os muros da escola!”*

A solução, diz o educador, existe, sim, e passa por investimentos:
“Desde investimento em infraestrutura em escolas que não têm nem
biblioteca ou laboratório, como em profissionais, psicólogos,
assistentes sociais e em toda a rede de acolhimento.” Vale não só para
os alunos, lembra Angela: “Vejo professores vivendo sob doses de
calmantes. Eles não conseguem dar continuidade ao seu trabalho nas
péssimas condições de trabalho e situação de pressão social que vivem.
Atacar isso é cuidar da educação para evitar essas tragédias.”

Outro educador, Sérgio Pereira, acrescenta que as escolas precisam de
profissionais que vão além da grade clássica de professores, coordenador
pedagógico e diretor: “*Precisamos de mediadores de conflito
especializados e políticas de assistência social interligadas na escola.
São mecanismos que garantem uma rede de proteção às crianças também fora
dos muros.”* Para isso, mais uma vez, é necessário investimento – em vez
de cortes e congelamento de verbas em educação por 20 anos, como foi
instituído pelo ex-presidente Michel Temer e mantido pelo atual Bolsonaro.

A banalização do discurso da violência usada durante a campanha do
presidente foi questionada na roda de educadores: “Estamos no auge de
uma violência construída nos últimos anos por meio de uma rede
discursiva gigante que mostra arminhas com a mão como se isso fosse uma
brincadeira. Não é brincadeira”,
<https://jornalistaslivres.org/o-diario-do-bolso-hoje-nao-contem-humor/>
acentua Pereira. “A violência da sociedade está no cotidiano da escola
publica. Vai desde o problema do time A conta o time B e passa por
questões de gênero, étnicos-raciais, por tudo! *Se um lado da sociedade
banaliza uma arma apontada, o ápice disso são esses corpos caídos no
chão, mortos, aqui!*”, completa.

Diante disso, a professora Angela conclui: “Todas as escolas estão
vulneráveis, estamos todos abandonados. E para onde os governantes e a
imprensa sinalizam? Para a privatização do ensino! *Mas isso não é
saída, é exclusão.”* A professora, então, deixa sua pauta: *“Amanhã, os
repórteres vão embora e o que será feito? Seremos ouvidos como
professores ou criminalizados e culpados pelas péssimas condições de
ensino que enfrentamos?”.*

JORNALISTAS LIVRES

https://jornalistaslivres.org/o-massacre-que-a-tv-nao-mostrou-em-suzano/
15/3/2019

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