segunda-feira, 29 de abril de 2019

O lumpesinato no poder





por *Gilberto Maringoni e Artur Araújo*



O lúmpen é avesso a qualquer projeto de longo prazo, não é classe, não
é coletivo. Atualmente, sua principal representação é o próprio
presidente da República: nunca representou um setor social específico,
mas surfou em ondas de insatisfação difusas. E agora quer ‘descontruir’
o país /


O governo de Jair Messias Bolsonaro representa um feito inédito em
termos mundiais. Trata-se da primeira vez em que o lumpesinato, de forma
organizada, chega ao poder de Estado. Não existe experiência semelhante
em países da dimensão do Brasil.

O lumpesinato (ou lumpemproletariado) não é exatamente uma classe. O
conceito inicial referia-se a uma fração de classe constituída por
trabalhadores muito pobres sem qualquer lugar ou vínculo com a produção
ou com o mercado de trabalho formal. Sobrevivem à custa de pequenos
expedientes e atividades intermitentes. Por sua própria fragmentação, é
uma camada que tende a realizar ações individuais em detrimento de
iniciativas coletivas. Raramente atua de forma organizada.

Karl Marx e Friedrich Engels o descrevem no /Manifesto Comunista/
(1848): “O lumpemproletariado, esse produto passivo da putrefação das
camadas mais baixas da velha sociedade pode, às vezes, ser arrastado ao
movimento por uma revolução proletária; todavia, suas condições de vida
o predispõem mais a vender-se à reação”.

Marx voltaria a se referir ao lumpemproletariado no /Dezoito de Brumário
Luís Bonaparte/ (1852). Trata-se de uma análise profunda sobre o
processo social compreendido entre a Revolução de 1848 e o golpe de
Estado de 1851, na França. O autor amplia o conceito, ao descrever os
apoiadores de Luís Bonaparte: “Esse Bonaparte se constitui como chefe do
lumpemproletariado, porque é nele que identifica maciçamente os
interesses que persegue pessoalmente, reconhecendo, nessa escória, nesse
dejeto, nesse refugo de todas as classes, a única classe na qual pode se
apoiar incondicionalmente”.

Mais adiante, Marx mostra que o conceito não se referia apenas às
camadas mais baixas da sociedade, ao se referir ao sobrinho de Napoleão
como “lumpemproletário principesco”. N’/As/ /lutas de classes na França
/(1850), Marx estenderia ainda mais a classificação: “A aristocracia
financeira, tanto no modo de obter seus ganhos quanto no modo de
desfrutar deles, nada mais é que o renascimento do lumpemproletariado
nas camadas mais altas da sociedade burguesa”.

Quase um século mais tarde, no final dos anos 1950, o belga Ernest
Mandel cria a definição de lumpemburguesia. Em 1973, o alemão André
Gunder Frank lança /Lumpemburguesia: lumpemdesenvolvimento –
Dependência, classe e política na América Latina/. Sua argumentação
mostra que: “A partir da conquista, a dinâmica colonial do sistema
capitalista forma na América Latina a estrutura de classes e a estrutura
econômica, de modo que quanto mais estreitas são as relações econômicas
e coloniais entre a metrópole e sua lumpemburguesia satélite (…), tanto
mais as políticas econômicas intensificam um lumpendesenvolvimento”.

A partir de tais definições, vale a pena tentar entender que classes e
frações de classe compõem o primeiro escalão da administração eleita em
2018.

*Grupos de interesse*

O governo Bolsonaro resulta de uma confluência de interesses solidamente
enraizados na sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, a representação
institucional – ou expressão política – dessa coalizão parece
materializar profundas alterações ocorridas desde o final da ditadura
(1964-1985) na composição social do país.

O período é marcado por um processo de desindustrialização, privatização
e desnacionalização de empresas que se soma à desregulamentação e
fragmentação do mundo do trabalho. Ramos inteiros da produção deixaram
de existir, a indústria de transformação reduziu sua participação na
formação do Produto Interno Bruto (PIB) e o país assistiu sua burguesia
industrial vender empresas e tornar-se mera montadora, maquiadora,
empacotadora e, principalmente, especuladora no mercado financeiro,
beneficiando-se de uma das mais altas taxas de juros do planeta. A
burguesia associada do capital externo vai se tornando uma burguesia
compradora e rentista. Podem-se vislumbrar pelo menos quatro grandes
grupos de interesse contemplados no primeiro escalão do atual governo.

Em primeiro lugar está o círculo próximo a Jair Bolsonaro. Forma a
vertente mais ideológica do poder, com nomes indicados por igrejas
fundamentalistas e pelo autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho.
Entram nessa conta os ministros Ernesto Araújo (Relações Exteriores),
Ricardo Vélez Rodríguez (Educação), Damares Alves (Mulher, Família e
Direitos Humanos) e Marcelo Álvaro Antônio (Turismo). Agregam-se a esse
time os três filhos do capitão, que teriam ligações com milícias armadas
do Rio de Janeiro e com representantes da extrema direita dos Estados
Unidos, como o ex-ideólogo de Donald Trump, Steve Bannon. É o grupo que
dirige politicamente o governo.

O segundo time em importância é representado por oito altos oficiais
militares de direita, além do vice-presidente Hamilton Mourão. São eles:
Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Carlos Alberto
Santos Cruz (Secretaria de Governo), Floriano Peixoto Vieira Neto
(Secretaria Geral da Presidência), Fernando Azevedo e Silva (Defesa),
Bento Costa Lima de Albuquerque (Minas e Energia), Marcos Pontes
(Ciência e Tecnologia), e Wagner Campos Rosário (Transparência e
Controladoria Geral da União).

O plantel dos militares tem duas vozes principais, Mourão e Augusto
Heleno, e forma o polo organizativo central da gestão. O ex-comandante
da missão da ONU no Haiti é o militar mais próximo de Bolsonaro.

Um terceiro campo compõe o que poderia ser denominado de “Ministério da
Intimidação e Punitivismo”. Aqui brilha a constelação do ex-juiz Sergio
Moro, ligado à extrema-direita do Judiciário.

Há, por fim, a grande pasta dos negócios, firmemente alicerçada no
capital financeiro. Sua estrela é o economista e especulador Paulo
Guedes, ministro da Economia. Seguem-se a ele o executivo do grupo
Santander, Roberto Campos Neto, que pilota o Banco Central, e o
ex-diretor do Bradesco, Joaquim Levy.

Os dois primeiros grupos – ideológicos e militares – disputam
publicamente espaços e diretrizes na máquina pública.

*A força da farda*

A presença das Forças Armadas no governo revela um sério problema
político: Bolsonaro não tem um partido que lhe dê sustentação. Sarney
valia-se do PMDB, FHC contava com o PSDB e Lula com o PT. Não se
tratavam de meras legendas parlamentares para encaminhar e votar
projetos no Congresso. As agremiações eram vetores orgânicos com
presença na política institucional e real inserção na sociedade.

O PMDB dos anos 1980 contava com alguns dos mais relevantes intelectuais
brasileiros, mantinha intervenção no movimento sindical e no
empresariado. O mesmo pode ser dito dos dois outros casos. PMDB, PSDB e
PT, além disso, expressam demandas de determinadas classes sociais e as
representam no embate político e no conflito distributivo.

No caso de Bolsonaro, qual é o vetor que sintetiza demandas de classe
que o sustentam na disputa institucional? Não é o PSL, evidentemente!
Esta é uma legenda artificial e um agregado de aventureiros, sem
expressão social clara. Expressão social é diferente de ter votos. O PSL
tem votos, mas é incapaz de organizar minimamente uma administração.

Estamos em uma situação semelhante às dos governos da ditadura militar.
Eles tinham um partido (a Arena) que não formava um corpo de ideias
muito definido, a não ser dar voz às oligarquias regionais. O vetor
organizador dos governos ditatoriais eram as Forças Armadas, com
destaque para o Exército, de onde saíram seus cinco presidentes. É o que
ocorre hoje.

O Exército, a força mais numerosa e mais capilarizada social e
geograficamente, vocaliza uma reivindicação difusa da classe média e de
parcela dos pobres por ordem, segurança e moralidade. Seria o que o
cientista político e jornalista Oliveiros Ferreira denominou de /partido
fardado/, entre os anos 1970-80. Vale uma ressalva: os setores militares
que ascendem com Bolsonaro são caudatários dos porões (Garrastazu Médici
e Silvio Frota, ligados à repressão) e não aos ideólogos da ditadura
(Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel).

Assim, Bolsonaro não tem saída. Ou apela para as FFAA ou não existe
governo que pare em pé. Não há escapatória a não ser ele colocar cerca
de cem militares em cargos de primeiro e segundo escalão.

O terceiro (Justiça) e o quarto (Economia) grupo materializam o grande
consenso interno do governo. A facção ideológica e a militar têm até
aqui pleno acordo com o projeto punitivista de Sergio Moro e com a opção
ultraliberal de Paulo Guedes. São também os fiadores da sustentação do
governo entre o capital financeiro, os especuladores internacionais, a
grande mídia e um setor da classe média que, desde 2013, bradava por
intervenção militar.

Mas a existência desses consensos não tira de cena a renhida disputa de
rumos. Voltemos ao início deste texto: o sentido principal do jogo de
forças intramuros é o embate entre um corpo profissional do Estado e a
inédita chegada do lumpesinato ao palácio. Detalhemos.

*O lumpesinato com a caneta na mão*

O principal representante do lumpesinato nas esferas do poder é o
próprio presidente da República. Expulso do Exército por indisciplina,
Jair Bolsonaro buscou a carreira parlamentar como meio de vida. Em 28
anos de Congresso, teve atuação apagada e agregou-se ao chamado baixo
clero da instituição.

Bolsonaro nunca representou um setor social específico, mas surfou em
ondas de insatisfação difusas do eleitorado pobre do Rio de Janeiro e no
corporativismo da massa militar. Seu mentor, Olavo de Carvalho, sujeito
sem ocupação definida, é um lúmpen da intelectualidade, misto de
astrólogo e guru de vasta legião conservadora. Damares fez sua carreira
nas igrejas pentecostais e não se sabe de seus vínculos claros com o
mundo formal do trabalho. O mesmo se dá com outro ativista pentecostal,
Marcelo Álvaro Antônio, chefe da pasta do Turismo. Vélez Rodríguez, por
sua vez, é um obscuro professor universitário, sem publicações
relevantes e desconhecido em seu meio. Araújo expressa uma ínfima
minoria no Itamaraty.

O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, é um economista marginal,
tanto na academia quanto no mercado. Pérsio Arida, um dos criadores do
plano Cruzado (1986) e ex-presidente do BNDES e do Banco Central no
governo FHC, tem opiniões arrasadoras sobre ele. Em setembro de 2018,
Arida declarou ao jornal /O Estado de S. Paulo/ que “Paulo Guedes é um
mitômano (…). Nunca escreveu um artigo acadêmico de relevo e tornou-se
um pregador liberal. (…) Ele nunca dedicou um minuto à vida pública, não
tem noção das dificuldades. Partiu para uma campanha de difamação que é
de um grau de incivilidade que não se vê em outro assessor econômico”.
Envolvido em acusações de fraudes em fundos de pensão, Guedes pode ser
classificado sem erro como um lumpenfinancista.

Entre os militares, o astronauta Marcos Pontes foi para a reserva após
seu voo orbital em 2006. Tornou-se palestrante de autoajuda, vendedor de
travesseiros e guia turístico na Flórida. Ou seja, passou a viver de
expedientes que não deram muito certo até ser recolhido por Bolsonaro.

O PSL, partido do presidente, por sua vez, é quase todo composto por
aquilo que Marx classificou como lumpesinato no /Dezoito brumário/:
“Rufiões decadentes, com meios de subsistência duvidosos (…), rebentos
arruinados e aventurescos da burguesia (…) vagabundos, soldados
exonerados (…), trapaceiros, (…) donos de bordel, (…) em suma, toda essa
massa indefinida, desestruturada e jogada de um lado para outro, que os
franceses denominam la bohème [a boemia]”.

Qual o problema de um governo ser dirigido pelo lumpesinato de diversas
classes?

O lumpesinato, por característica inata, é avesso a qualquer projeto
coletivo de longo prazo. Não é classe, não é coletivo, não forma grupos.
Não há previsibilidade ou rotina possível em um conjunto de indivíduos
para os quais vigoram as saídas individuais e a disputa de cada um
contra todos.

Pode-se afirmar que o lumpesinato vive no Estado de Natureza conceituado
por Thomas Hobbes, em /Leviatã/ (1651). Trata-se de uma situação
anterior à criação do Estado, sem regras ou normas, em que “todo homem é
inimigo de todo homem”.

Nas palavras de Hobbes: “Numa tal situação não há lugar para a
indústria, pois seu fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da
terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas
pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e
remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da
face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há
sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de
morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida,
embrutecida e curta”.

Não há descrição mais apropriada para um mundo traçado por Jair
Bolsonaro em discurso proferido para uma plateia de extrema direita em
Washington, em março último: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós
pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que
desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa”.

Não se trata de deslize de um improviso mal feito. Hamilton Mourão já
havia declarado ao jornal /Valor Econômico/ em fins de 2018 que o
governo faria “um desmanche do Estado”.

São frases-síntese de um governo lúmpen que se move por pequenos e
grandes negócios de ocasião. Em geral, eles se dão por fora da política
institucional e de suas regras e, não raro, apelando para situações de
força. Uma administração de todos contra todos.



*Por Gilberto Maringoni* é Professor de Relações Internacionais da
Universidade Federal do ABC

 e *Artur Araújo* é ex-diretor da Embratur e consultor da Federação
Nacional dos Engenheiros

In
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL
https://diplomatique.org.br/o-lumpesinato-no-poder/
10/4/2019

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