sexta-feira, 25 de outubro de 2019

*Próximo desafio da Bolívia é superar a burocracia do Estado, dis Raul García Linera



      
          *por Daniel Giovanaz, do Brasil de Fato | São Paulo (SP)*

Liderança do Movimento ao Socialismo (MAS), Evo Morales foi eleito esta
semana para o quarto mandato presidencial na Bolívia

Com altos índices de crescimento econômico e políticas bem-sucedidas de
superação da extrema pobreza
<https://www.brasildefato.com.br/2019/10/18/por-que-a-bolivia-nao-para-de-crescer-enquanto-vizinhos-enfrentam-recessao/>,
o próximo desafio do governo é superar a burocracia do Estado e
recuperar seu horizonte revolucionário. Essa é a interpretação de Raul
García Linera, irmão e interlocutor do vice-presidente Álvaro García
Linera e ex-membro do Exércio Guerrilheiro Tupac Katari (EGTK)
<https://es.wikipedia.org/wiki/Ej%C3%A9rcito_Guerrillero_T%C3%BApac_Katari>.

Em entrevista ao *Brasil de Fato*, ele comenta a dificuldade de se
administrar as diferenças étnicas e regionais do país e as mudanças
geracionais que afetam o projeto político do MAS.

Abaixo, trechos da entrevista:

*Brasil de Fato: Qual o seu papel hoje no governo Morales e como o
senhor avalia a importância da vice-presidência no debate com o povo e
com a intelectualidade?*

*Raul García Linera*: Sou um ativista político. Não posso trabalhar no
governo. Álvaro, antes de assumir a vice-presidência, afirmou que
ninguém de nossa família trabalharia no Estado.

Temos um espaço dedicado ao debate mais intelectual, com a revista
Migraña, por exemplo, mas fazemos seminários nas províncias, nas áreas
rurais, na periferia etc. Esse é o trabalho mais importante. É preciso
ter uma boa gestão, fazer um bom governo, mas, para além disso, é
preciso trabalhar com a militância, com o povo.

Nossas estruturas de formação não estão dirigidas somente aos
funcionários do partido ou aos militantes, mas a maior parte do trabalho
se dá via organizações sociais, estruturas populares. O popular é o mais
importante, com linguagem simples, dinâmicas de grupo, que permitam
refletir, debater para onde vamos.

*O senhor consegue manter uma rotina de diálogos com seu irmão sobre a
conjuntura?*

A agenda [do vice-presidente] é muito pesada, mas há alguns espaços, há
algumas discussões para passarmos informações. Mas suas tarefas oficiais
ocupam muito tempo. Álvaro começa o dia às cinco da manhã e termina às
onze da noite. É pesado.

Eu mentiria se dissesse que temos muitas horas para debate, mas temos,
sim, uma rotina de troca de informações, de conselhos. “Vá por aqui”,
“considere esse elemento”.

Muitas vezes eu digo a ele: “Por que disse isso, ou fez aquilo? Não
estamos no mesmo barco?”. E ele explica: “Eu fiz isso por tal razão,
aquilo por outra”, “precisei ceder naquele assunto”. Ele nos permite
entender o que estão fazendo e localizar aonde estamos indo.

*A Bolívia tem cerca de 11 milhões de habitantes e 10 milhões de pontos
de conexão fixa e móvel à internet. Como dialogar com uma juventude cada
vez mais acostumada a se informar por redes sociais e distante das lutas
sociais de rua, que caracterizaram a ascensão do MAS?*

Lamentavelmente, não politizamos suficientemente o povo.

O nosso eixo articulador não são os sindicatos, mas os movimentos
indígenas camponeses territoriais, associações de moradores. Mas eles
não podem se manter em luta constante, porque precisam retornar à
cotidianidade de suas condições de vida, ou seja, conseguir o alimento
de cada dia.

Nesse cenário, as eleições são um ato delegativo. Essa multidão vem e
diz, como fez em 2003, na Guerra do Gás, e nas eleições de 2005, 2009 e
2014: aqui está a minha confiança. Mas não conseguem se manter
mobilizados porque sua luta não se dá nos locais de trabalho,
diferentemente de outros processos – se pensamos no Brasil, por exemplo,
e em suas instituições sindicais laborais. Mas aqui o tecido social se
constrói nas comunidades, nos locais de moradia e não de trabalho.

Então, não temos uma estrutura de partido, em termos leninistas, com
quadros, hierarquias… não. E, por não haver isso, a internet, as redes
sociais e os meios de comunicação se convertem em meios perversos para
pintar uma realidade alheia, destruindo o que foi construído, com uma
série de mentiras.

Por exemplo, nas últimas semanas, circulou a informação de que Evo teria
uma conta de US$ 300 milhões em um banco no Vaticano. Isso circula pelas
redes: que Evo tem filhos não reconhecidos, com meninas jovens. Uma
série de mentiras que tenta destruir o processo.

Acusam o governo de corrupção. E eu digo: se Evo e Álvaro tivessem
roubado US$ 1 mil, os gringos já teriam dito: aqui está o dinheiro; foi
assim que eles roubaram. E por quê? Porque quantos membros do nosso
governo já não disseram ao presidente dos Estados Unidos, a cinco metros
de distância, que o imperialismo e o capitalismo destroem a humanidade.
Isso disseram a cinco metros, não a cinquenta, não na internet! E só
pode fazer isso que não tem rabo preso.

Raul Linera integrou o Exército Guerrilheiro Tupac Katari. (Foto: Daniel
Giovanaz)

Mas, ainda assim, nos acusam de ser corruptos. Isso não quer dizer que
não haja corrupção. Somos uma sociedade altamente tolerante à corrupção
desde o império, desde a colônia. Nos anos 1990, víamos pessoas
comemorando seu primeiro milhão de dólares enquanto trabalhavam na
aduana… faziam festas, com legitimidade, depois de roubarem US$ 1 milhão
do Estado.

Naqueles tempos, havia postos de trabalho sem salário. Gente trabalhando
na Justiça, na aduana, sem salário, sobrevivendo só de propinas, e isso
era estatalmente legítimo! E isso não existe agora. Mas nós é que somos
os corruptos, não eles. Colocaram no imaginário da população que nós
somos corruptos.

Leia também:  No mundo, 50% das crianças de até 5 anos estão subnutridas
 <https://jornalggn.com.br/noticia/no-mundo-50-das-criancas-de-ate-5-anos-estao-subnutridas/>

Estamos convencidos de que é uma luta difícil, porque o uso de redes
sociais e a construção de opinião pública por meio delas é uma guerra de
quarta geração. E saímos em desvantagem, porque não dispomos da
tecnologia, nem do maquinário, nem do apoio que os gringos dão à
oposição. E não é só dinheiro. É uma forma de lidar com as redes, algo
que é muito difícil para nós. Afinal, você consegue obter informações
segmentadas do Facebook, etc, para mandar mensagens, até mesmo sem
pagar. Mas nós não temos esse hábito, essa capacidade. É uma luta desigual.

A compensação que temos é um povo que acredita no que estamos fazendo.
Mas é claro que é difícil. Seria muito mais fácil seguir avançando sem
esta guerra das redes. Perdemos o referendo de 2016 por causa do uso das
redes. Modifica o cenário, é vital, impõe uma situação de guerra. E é
claro que temos que entrar nessa batalha, da forma como seja possível. É
um terreno de disputa política e militar.

*Em relação às diferenças regionais da Bolívia, quais os desafios que o
senhor percebe para a governabilidade? A chamada zona da “meia-lua”, os
estados da região mais oriental do país, continuam sendo um reduto da
oposição?*

Este país nasceu sob um conceito colonial: o branco é o ser; o índio é
esvaziado de ser. É o “não ser”. E a sociedade se constitui como uma
escada de branqueamento cultural e social. Todos buscamos ser mais
brancos que ontem e julgamos que há alguém mais índios que nós. Então,
aí nasce a resistência ao que é popular, índio. A direita rearticulou um
discurso altamente racista contra o mundo indígena e “collia”
[habitantes das terras altas, dos Andes]. Porque o racismo não é só
contra o indígena, mas contra aqueles que somaticamente representam o
indígena.

Santa Cruz [de La Sierra] é diferente de Sucre, que recebeu nossa
primeira universidade e era um lugar muito importante na época da
colônia, com muita presença espanhola – porque está a poucas horas de
Potosí, que era um dos nossos grandes centros por toda a prata que
havia. Mas, como Potosí é muito alto, as estruturas de poder desceram
até Sucre, que fica em um vale. No oriente, em Santa Cruz, temos outro
desenho, também com descendentes de indígenas, mas que se apropriam do
discurso colonial a partir do olhar da migração europeia e branca
pós-colônia. Isso é parte da conformação da sociabilidade por lá, e a
gente percebe isso pelos sobrenomes.

Essa lógica do branqueamento é muito forte em Santa Cruz. Chegavam
europeus por lá com as mãos abanando, sem recursos, e trocavam sua
branquitude com fazendeiros. Para o fazendeiro, estava “melhorando a
raça”. Para o europeu que chegava, o casamento significava tomar conta
de fazendas, do gado, das terras. Seu capital étnico se transformava em
capital econômico. Ele investia sua etnicidade em troca de bens econômicos.

Isso foi muito intenso em Santa Cruz. E quando chegam os “collias”,
quando chegam os indígenas para trabalhar naquelas terras, eles se
sentem invadidos.

Vou te contar uma piada para que tenha noção da lógica do branqueamento
que existe por lá. Existe um rio muito grande, e é preciso cruzá-lo
nadando para ser considerado “camba” [apelido dado aos naturais da
região de Santa Cruz]. Um “collia” que cruza o rio nadando se transforma
em “camba”. Dois “collias” se aproximam para cruzá-lo juntos. O primeiro
que chega à outra margem vira de costas e diz: “O que você está fazendo
aqui, seu ‘collia’ de merda!”. E o empurra para debaixo d’água.

Enfim, migrar à cidade passou a ser visto como um mecanismo de
branqueamento acelerado. Aqui no ocidente, é como se você começasse a
branquear ao se aproximar das cidades pequenas, dos povoados. Quem mora
na periferia das grandes cidades, se branqueia um pouco mais. O
branqueamento completo ocorre quando saem da cidade de El Alto [vizinha
a La Paz], e chegam à zona sul. Mas, no caso de Santa Cruz, o
branqueamento se dá instantaneamente ao chegar no departamento.

A que me refiro: que as pessoas que foram a Santa Cruz para se
branquearem cultural e socialmente são as que hoje mais protestam contra
os “collias”. Tem uma frase famosa que sintetiza bem a situação: “Todos
os ‘collias’ são uns filhos-da-puta, menos minha mãe”.

Então, isso gera uma estrutura étnica diferenciada. Tem outra fase
famosa, de um governador – então prefeito – de Santa Cruz: “Se os
‘collias’ querem um presidente índio, que fiquem com seu presidente
índio. Nós vamos ter um presidente branco”. Com base nisso, se deu o
movimento separatista [em 2008].

Lá, as condições de classe e etnia estão profundamente relacionadas. É
mais difícil. Voltando ao que você perguntou: na eleição de 2005, fomos
mal em Santa Cruz, mas em Beni [departamento vizinho] fomos pior. Em
Pando, nem tanto. Mas, por que em Beni é tão difícil? Porque os
“collias” já não migram para lá. Não há o que fazer, não há comércio. E
o “collia” não sabe trabalhar em terras baixas. Ele lê a natureza,
aprendeu a produzir batatas, coca, etc., lendo como o sol se move,
intuindo se o ano será seco ou úmido. Ele sabe o que vai apodrecer em
época de chuva, sabe quando virá a geada, conhece as diferenças de
altitude. Mas, quando chegam às terras baixas, como vão ler a terra? Não
há sapos, não há condores, não há nada do que eles conhecem, são outros
animais, outros graus de umidade. Não conhecem a mandioca, nem como se
planta.

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Por isso, em Santa Cruz é tão difícil. Porque há uma reapropriação do
mundo branco. E o que a direita faz é recuperar esse discurso. Houve um
momento em 2008, em meio aos movimentos separatistas, em que tentaram
fazer uma guerra civil, mas foram descobertos e derrotados. Por algum
tempo, houve um silêncio nas manifestações racistas. Mas se passaram dez
anos, e houve uma rearticulação dessas pulsões, financiada pelos mesmos
setores – que hoje se mudaram para o Brasil, e de lá financiam essas
redes, grupos de choque, com um discurso anti-índio.

Como eles creem que legitimamente nasceram para governar, que a sua
natureza e o seu “destino manifesto” é governar, pensam: por que esses
índios seguem nos governando? Devolva-nos o que naturalmente é nosso!
Todo esse tempo que estamos no poder os deixa desesperados.

*Além dessa oligarquia de Santa Cruz, foi possível perceber a atuação do
imperialismo estadunidense nessas eleições?*

O que antes eles conseguiam controlar, hoje já não controlam. E isso
também explica o desespero com que eles clamam que nosso Poder
Judiciário está acabando.

Não estou dizendo que nosso Judiciário seja bom: ele é perverso desde o
início da república. Somos o único país que tem eleições diretas para o
Judiciário. Não encontramos uma forma de transformá-lo completamente.
Mas isso tornou mais difícil para o imperialismo controlá-lo.

Embora não controle, têm certo grau de influência, porque têm dinheiro –
podem comprá-lo. Mas, de qualquer forma, os integrantes do Judiciário
não são serviçais [dos EUA] como eram antes. Agora não há sequer
embaixador [estadunidense na Bolívia].

Eles não têm muito mais acesso a esse âmbito, senão comprando algumas
consciências, mas isso não tem causado grandes danos, no caso da
Justiça. Mas, sim, causam danos nos meios de comunicação, nas redes, nas
estruturas policialescas, em algumas estruturas militares.

Há uma construção cultural que leva a ter como paradigma o modelo
norte-americano. “Liberdade”, “democracia”… assim eles atuam.

Diante de tudo isso, o povo é que vai nos defender, o povo é quem luta.
E agora aqueles que abrem a boca para falar em democracia, aqueles que
dizem que nós somos autoritários e antidemocráticos estão tentando
chamar os quartéis para mudar o governo.

*O governo liderado por Evo Morales é capaz de manter seu horizonte
revolucionário?*

Você quer que eu seja sincero ou otimista?

*Sincero.*

Então, eu creio que todos os processos se desgastam, todas as gestões de
governo se burocratizam. A gestão te leva ao centro, faz com que você
deixe a máquina funcionar… e a máquina é capitalista. É capitalismo
puro. A máquina reproduz o capitalismo, não pode reproduzir outra coisa.

Nós nos burocratizamos à medida que fomos cumprindo as metas iniciais
desse processo. Por que lá no começo foi fácil, foi potente? Porque o
povo mobilizado disse: queremos uma Constituição em que ninguém me
discrimine, em que ninguém me diga que eu não sou um boliviano igual aos
outros! [Nacionalização dos] Hidrocarbonetos, industrialização…

O povo nos deu uma tarefa, e tínhamos que cumpri-la porque devíamos isso
ao povo.

Mas, à medida que vão se cumprindo as metas, o que resta? Qual a nova
tarefa? Qual o horizonte? Como vamos encarar o desafio de superar a
burocracia do Estado?

Eu digo honestamente: tenho a sorte de viver este momento. Eu peguei em
armas contra um governo porque tinha a ilusão que esse país fosse um
dia… o que é hoje. O que mais posso pedir ao mundo, à vida?

Mas essa foi a minha geração. Combater a pobreza, para nós, era
revolucionário, era algo pelo qual valia a pena dar a vida. E isso
fizemos. Pedíamos soberania: ninguém de fora pode mandar no nosso país!
Hoje, não tem nem embaixador norte-americano por aqui. Fomos
conquistando tudo isso. Não tem FMI (Fundo Monetário Internacional) por
aqui ditando o que devemos fazer, como hoje fazem no Equador, na
Argentina. Essas eram as minhas lutas, as lutas da nossa geração!

Você sabe que os gráficos de demografia mostram que nossa população que
era assim se tornou assim [mostra uma pirâmide cuja base se torna cada
vez mais ampla e a ponta, cada vez mais fina]. Ou seja, temos a
insurgência de novas gerações.

Os eleitores aptos a votar com idade entre 18 e 36 anos eram 50% do
eleitorado. Para nenhum deles, é um problema a pobreza, é um problema a
fome, a soberania, porque não conheceram a pobreza, a fome e a falta de
soberania. Então, qual o problema deles? O que os comove? Há
companheiros que nem sabem o que aconteceu aqui em 2003. Acham que as
imagens são montagem. E só 16 anos atrás!

Leia também:  Familiares de vítimas de Brumadinho recorrem à Justiça alemã
 <https://jornalggn.com.br/noticia/familiares-de-vitimas-de-brumadinho-recorrem-a-justica-alema/>

Eles se acostumaram a outro país e não conseguem imaginar o que foi
antes. E que bom que não viveram aquilo. Mas o que os move? O que vem
desde o seu âmago? Em troca de que eles estariam dispostos a morrer? Até
que não descubramos isso, vai ser muito difícil caminhar para uma revolução.

E isso não é pessimismo. Eu pergunto aos jovens: por que você estaria
disposto a morrer?

Porque a revolução se faz nas ruas. Não no Twitter, nem nos escritórios.
Ela se faz dizendo: aqui estou eu; não vou permitir que se faça tal coisa.

Não estou dizendo que a gente deve sair às ruas, matando. Porém, falta
que as novas gerações se façam essas perguntas.

É difícil. Não significa que não estejamos tentando. Tem jovens que
dizem: “Vamos defender os animais”, “vamos plantar árvores”, mas a gente
sabe que eles não dariam a vida por isso. Não é disso que estamos
falando. Talvez a atual geração não encontre essas respostas, e esse
vazio é que nos faz voar em piloto automático. E isso se esgota. Porque
não é ação, transformação: é rotina, inércia.

Nada disso é fácil. Estamos tentando instalar um sistema de saúde
universal em um país com PIB per capita de US$ 3,5 mil, enquanto a
Argentina e o Uruguai conseguiram universalizar a saúde depois de
atingir US$ 20 mil de PIB per capita. Saúde é um investimento tremendo
do Estado. Ela só funciona em economias tão potentes que permitem
investir – ou, em termos capitalistas, pode-se gastar sem retorno. Quero
dizer, dá retorno social, mas não econômico. Não é um dinheiro que volte
com juros.

*Todos os setores que apoiam o governo têm essa compreensão das
necessidades econômicas, materiais? Hoje se fala muito, por exemplo, no
custo socioambiental dos investimentos em mineração e infraestrutura no
interior do país. Como o senhor encara esse desafio?*

As esquerdas e o marxismo, às vezes, se transformam num certo
voluntarismo. “Queremos preservar todas as florestas”. Claro que sim!
Mas o que comeremos? “Não queremos prejudicar a natureza com a extração
de petróleo”. E de onde tiraremos nossa renda? Como manteremos as
políticas de distribuição de rendas, os salários, os investimentos?

O que essas pessoas não entendem é que lutávamos contra a exploração do
petróleo pelas transnacionais justamente porque elas vinham a sugar
nossas riquezas sem se importar com nada. Se destruíssem o meio
ambiente, não estavam nem aí, porque não era sua terra nem sua casa.
Quando o Estado assume, começa a predominar outra mentalidade: aqui é
minha casa, aqui vou ficar, e essas terras são dos nossos irmãos
camponeses. Então, precisamos evitar danos ambientais; se há danos,
precisamos reflorestar.

É como na nossa casa. Você não vai deixar de pendurar quadros para
preservar a parede – mas vai colocar com cuidado. Se for uma casa
alugada, que você pretende sair logo, o cuidado não é o mesmo: “Depois
vem o dono e pinta a casa toda”. Era o que faziam as transnacionais.
Vinham como inquilinos, destruíam tudo para ter maior lucro. Contra isso
nós lutamos! Lutamos para que a produção de petróleo fosse o mais
ecologicamente responsável possível. Mas precisamos desses recursos.

Dizem que precisamos superar nossa condição de economia primária
exportadora. Será que têm ideia do que estão falando? Será que sabem que
vamos levar muitas décadas para isso? Passamos cinco séculos fornecendo
minérios ao mundo. A Bolívia existe porque encontraram prata em Potosí.

O mundo não compra o que você quer vender. O mundo compra o que precisa
para que as pessoas mantenham ou melhorem suas condições de vida. E o
que o mundo precisa da Bolívia são minerais e hidrocarbonetos. Se não
precisassem, não comprariam nem isso!

Claro que queremos fazer hidrelétricas. É uma fonte de energia muito
melhor que o petróleo, porque é renovável. Mas aí precisaríamos criar
barragens, inundar lagos… e aí veremos como não causar tanto dano às
pessoas e à natureza. Busquemos uma solução, pensemos em turismo
ecológico… Estamos de acordo!

Mas como nos tornamos competitivos internacionalmente hoje? O que
venderemos: carinhos, afetos? De que viveremos? As pessoas não querem
extrair e exportar hidrocarbonetos, mas querem seguir com seus telefones
celulares – comprados a dólar. E o dólar vem das exportações.

É complexo, mas o desafio está dado. O que se produz, como se produz,
como geramos divisas, como gastamos essas divisas, como evitamos dano
ambiental. E o mais importante, que já temos decidido: que tudo isso
seja destinado à distribuição das riquezas.

/Edição: João Paulo Soares/

In
JORNAL GGN
https://jornalggn.com.br/noticia/proximo-desafio-da-bolivia-e-superar-a-burocracia-do-estado-diz-raul-garcia-linera/
25/10/2019

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