sábado, 12 de outubro de 2019

Violência e Barbárie: as origens do bolsonarismo, por Marildo Menegat




O bolsonarismo é a formulação política rebaixada de uma chantagem dos
bandos armados dos porões da ditadura cujas ramificações começam nas
estruturas das PM’s, cruzam pelas Forças Armadas e se acomodam em grupos
milicianos

Por
Wilton Moreira


*Por Marildo Menegat**


O sociólogo alemão Norbert Elias passou um bom tempo da sua vida
explicando um paradoxo. Na mesma época em que escreveu sua grande obra,
O processo civilizador, a Europa – e a Alemanha, em particular – vivia o
seu inverso. A resposta de Elias sempre foi uma coordenada do tempo.
Para ele a civilização seria o resultado de uma longa duração não
apreensível em curtos períodos. Deste modo, explicava os anos que se
seguiram de 1945 até sua morte, no início dos 1990, como uma espécie de
verdade oculta do período das Grandes Guerras.

Contudo, por que razão seria possível falar em barbárie hoje? Quais
critérios podem ser utilizados para explicar um acontecimento tão amplo
e desconcertante, que permitiria fazer deste argumento uma ampliação
lúcida das capacidades de entendimento da realidade, e não uma mera
retórica moralista? O controle da violência no cotidiano parecia ser uma
irrecusável evidência da vitória da civilização sobre suas forças opostas.

Apesar do número de mortos nos confrontos de 1914-18, e depois em
1939-45, manter abalada qualquer perspectiva de tomar o século XX como
um tempo bem sucedido das virtudes da paz sempre foi controverso. O
próprio Elias sugere que se diferencie uma pressão descivilizadora de
uma tendência descivilizadora. Pressões fazem parte do processo
civilizador e podem ser até mais constantes do que se imagina.
Tendências, no entanto, são um movimento mais complexo que sugere algo
como uma força gravitacional agindo intermitentemente num dado sentido,
neste caso, dissolutivo.

As mortes nas Grandes Guerras, contadas em milhões, fizeram parte da
violência organizada pelo Estado. Foram, na conhecida formulação de
Clausewitz, um subproduto da política, quando esta foi incapaz de operar
através de suas instituições ordinárias e passou a agir por outros
meios, abertamente destrutivos. Mesmo o grande número de mortes em
guerras civis, como na Rússia entre 1917-23, ou na Espanha em 1936-39,
se diferenciam qualitativamente do tipo de violência da atualidade. Em
todos esses casos o Estado exerceu o seu monopólio do uso da violência.

Nas guerras civis de ‘antigamente’, que faziam parte de processos
revolucionários, o que se contestava era a direção dos negócios
públicos, mas não a existência do monopólio estatal, enquanto a
violência de agora é o resultado de uma ‘dessocialização catastrófica’
(KURZ, 2014) que revela a impossibilidade do Estado Nação continuar
existindo. Como observou Paul Virilio, esse guerra permanente já não é
propriamente uma guerra civil, mas uma guerra “[…] contra os civis […]
que provoca a emigração pânica de populações locais – pilhadas,
extorquidas, violentadas – para os últimos eldorados onde ainda exista
um Estado de Direito”(VIRILIO, 1999, p. 74). É uma Hydra espalhada pelo
cotidiano.

A dificuldade de se explicar a violência brasileira está associada a
este problema, recorrente na tradição crítica, que reconhece os
fundamentos do estatuto paradoxal da realidade como uma dualidade
constitutiva do país, a qual, por um lado, se define pelas aspirações do
padrão civilizatório ocidental – de um Estado de Direito dependente do
mercado – e, às suas costas, se (de)forma, com ares de normalidade, a
partir da convivência com os mais abjetos dos tratos das massas
socializadas pela dinâmica produtora de mercadorias, um mundo de horrores.

Neste sentido, civilização e barbárie sempre foram momentos tensos que,
na aparência, pelo menos, tinham ares de ser uma particularidade
nacional. Mas os limites deste esquema explicativo da realidade não
foram suficientes para se intentar outra explicação da anomia
constitutiva deste estado de coisas. Analisada historicamente, se pode
dizer que há um corte qualitativo deste exercício cotidiano das
‘pressões descivilizadoras’ a partir da industrialização e urbanização
acelerada do país nos anos 1930. Como este processo foi uma modernização
recuperadora (KURZ, 1993), quando isto ainda era possível, na primeira
metade do século XX, ela não pôde ser realizada sem o uso brutal e
desmedido da violência do Estado, que se mantinha e era confirmada nas
relações sociais.

A concepção comum entre setores ilustrados de que não teria havido
mudanças significativas das formas e razões da violência desde os tempos
da escravidão e do coronelismo, e que a polícia apenas manteve viva tais
modalidades, não percebe que o processo de territorialização do capital,
na medida em que afirma suas formas de rendimento e a autonomia relativa
do Estado, precisa criar estas práticas todas às vezes em que uma
parcela significativa da população, formada supostamente por sujeitos
monetários, não tem condições de existir a partir deste fundamento. Em
outros termos, se equilibram num fio da navalha entre ser este sujeito e
não ter dinheiro.

As modernizações recuperadoras somente foram possíveis como parte de um
mecanismo de compensação que a grande crise do capitalismo engendrou
entre os anos 1910 e 1945. Elas consistiram na terceira onda de
industrialização. Diferente da primeira, que abrangeu basicamente a
Inglaterra, e a segunda, que não foi muito além da França, Alemanha,
EUA, Japão e outros poucos países da Europa, o terceiro surto
industrializador impulsionou um desenvolvimento de parte da periferia
nas bases da moderna tecnologia da Segunda Revolução Industrial, então
em voga.

Portanto, desde o início, a modernização do Brasil implicou num
desenvolvimento em bases altamente poupadoras de força de trabalho. Ela
precisou operar, no mesmo ato, a imposição brutal do trabalho, como
única condição possível de existência das massas, e a exclusão de uma
parcela destas (principalmente negros e indígenas) das formas
elementares do direito e dos mais modestos postos de ocupação no mercado
de trabalho.

Esta tensão foi se formando e tornando evidente nos anos da ditadura
civil-militar (1964-85). Num comentário extemporâneo ao cerne de sua
análise, num pequeno livro coletivo de 1982, que faz um  balanço sobre a
violência brasileira naquela altura da história contemporânea, Roberto
da Matta produz uma boa imagem do que estava em curso: “[…] a violência
parece transformar-se em moeda corrente do mundo cotidiano” (DA MATTA,
1982, p. 13).

Para o Iluminismo as relações de troca do mercado servem de esquema base
de um modelo de entendimento isento de violência. Quando este esquema é
destroçado por diferentes razões, como por exemplo, a impossibilidade de
uma quantidade significativa de membros da sociedade realizarem suas
necessidades por meio da venda de sua força de trabalho, as condições
elementares da pacificação que ele pressupõe têm boas chances de ficarem
suspensas. O que resta dessas relações é a irrupção violenta dos nexos
sociais entre mônadas reificadas.

O carácter de insignificância social dos sujeitos monetários
desmonetarizados se mostra, então, pelo reverso desta imagem: na falta
de moedas para substancializar os sujeitos da modernização, a violência
se torna a moeda comum. A transformação desta violência acidental num
direito de vida ou morte sobre os ‘despossuídos de dinheiro’ é uma das
mudanças de patamar que se introduziu no período da ditadura. Este
detalhe, inclusive, não passou desapercebido à análise que Roberto
Schwarz fez, alguns anos antes do comentário de Da Matta, do ensaio A
dialética da malandragem de Antônio Cândido.

O movimento entre ordem e desordem característico da vida social, no
qual os grupos subalternos realizavam as mediações para garantir sua
sobrevivência, descrito vivamente por Cândido neste ensaio, diz Schwarz
(1987), havia se deslocado socialmente nos anos 1970, quando a ditadura
fez da tortura um método de governo. Na elaboração original de Cândido,
talvez descanse a explicação de uma etapa bem anterior do
desenvolvimento das leis de mercado, quando as relações de favor
ajudavam a amarrar um todo social frouxo, enquanto agora, esta dialética
embrutecida revela os modos pelos quais esta totalidade social sem força
inclusiva se sustenta.

No momento anterior, portanto, esta oscilação entre ordem e desordem não
tendia a uma supressão duradoura da ordem, enquanto agora, a desordem é
a pressão dominante e a ordem apenas o resultado de métodos excepcionais
de terror do Estado. Provavelmente esta seja a origem remota do
bolsonarismo e seu sentido histórico mais profundo e inconsciente de uma
revolução conservadora, em que se rompem as linhas de negociação
política e social com as classes populares e se inicia uma agudização
das pressões descivilizadoras que nunca mais foram amainadas.

Leia também:  Privatização do Serpro e da Dataprev: Um risco à soberania
nacional, por Henrique Fontana
 <https://jornalggn.com.br/artigos/privatizacao-do-serpro-e-da-dataprev-um-risco-a-soberania-nacional-por-henrique-fontana/>

Segundo Paulo Sérgio Pinheiro (1982), este fato pode ser atestado pela
continuidade entre o combate à subversão e a guerra contra o crime
realizado pelas Polícias Militares (PM), criadas pelo decreto lei 667 em
1969. Com isso, as polícias passam a ser subordinadas e centralizadas
pelo exército. Este é o elo estruturante de um ordenamento que inventa,
‘nas figuras dos porões da ditadura’, um corpo técnico dedicado ao
trabalho sujo (Arantes, 2014 ), sem o qual a ordem social burguesa na
periferia do capitalismo, em condições como o Brasil se desenvolveu,
seria inviável:

Depois da dissidência armada ter sido dizimada, esses grupos de choque
perdem a motivação que havia presidido a sua constituição. E se voltam à
criminalidade comum. Têm ampliado o seu papel ‘político’ tradicional às
antigas forças militares estaduais, sem, entretanto, abdicar do estilo e
dos métodos que desenvolveram durante o período de arbítrio. […]. Aos
métodos convencionais de maus-tratos e de tortura, as polícias militares
[…] conservaram o poder de abater o inimigo sem riscos penais. O inimigo
não é mais o ‘terrorista’, mas o criminoso comum infiltrado nas massas
populares […] (PINHEIRO, 1982, p. 60).

Esta situação histórica é acompanhada de um processo, embora ainda
lento, já atuante de desmoronamento social presente no início dos anos
1980. Tanto a extensão do aparato policial, como a violência que este
mobiliza no enfrentamento da delinquência comum, mostra que o que está
em andamento não é “[…] uma política de combate ao crime, mas a
consolidação de uma certa concepção de estado e de sociedade. Essa
atribuição confunde […] a repressão política […] e a repressão comum
[…]” (PINHEIRO, 1982, p. 65).

O sentido de guerra atribuído ao combate da guerrilha urbana se estende
ao crime. A guerra civil (que a rigor, não passou de uma modesta ‘luta
armada’) começa sua transição de um quadro clássico antigo de luta pelo
poder e se transforma numa guerra de novo tipo. Nos anos 1980, as
pressões descivilizadoras que se avolumaram nos anos da ditadura,
começam a adquirir contornos nítidos de uma tendência que desde então
apenas se aprofundou.

*II.*

Uma modificação tão profunda do que Elias chamava de economia das
emoções do processo civilizador, deve ser entendida como uma alteração
do princípio de realidade. Na medida em que o processo de valorização do
capital foi dessubstancializando-se, com a eliminação crescente de
trabalho vivo, mais totalitária se apresentou a tensão entre a esfera da
lei e o mundo das necessidades. O universo de indivíduos excluídos das
condições de realização das formas básicas de socialização por meio de
mercadorias implicou numa desordem desta lógica dominante, que precisou
ser restaurada à força.

Como observou Kurz (2018), “[…] uma relação de violência social
autoritária […] se torna manifesta no estado de exceção” (KURZ, 2018, p.
54). Nesta perspectiva, a dominação jurídica torna-se sempre e mais um
autoritarismo sustentado por violências bárbaras. A preservação por
meios arbitrários das normas de condutas externas confirma a existência
de um estado de insegurança que está na base de uma alteração ampla dos
hábitos sociais, obrigando os indivíduos a um trabalho redobrado de
autocontenção. Neste contexto, a não-violência passou a ser uma escolha
constantemente medida por um sentimento contrário, que se formou em
geral à sombra de um acontecimento violento, sentido como demasiado
frequente e próximo, que comovia, mobilizava e esperava uma reação
imediata da mesma ordem.

Com isso a não-violência deixou de ser a sustentação acordada, mesmo que
oscilante, de uma perspectiva compreensiva de que a paz é sempre
vantajosa – ou a única condição – para o desenvolvimento de relações
humanas livres. Neste impasse, a defesa da pacificação se enfraqueceu e
se tornou cada vez mais um projeto adiado e, com o tempo, ausente do
horizonte de expectativas dos indivíduos. É como se a sociedade, de
repente, tivesse desaparecido e deixado estes indivíduos abandonados e
imersos em relações estranhas com desconhecidos ameaçadores por todos os
lados.

A constituição histórica deste cotidiano, com fortes tonalidades
paranoicas, pode ser acompanhado por meio dos esforços de aumento e
presentificação das polícias militares no espaço urbano. Ainda em 1980,
por exemplo, a PM do RJ tinha um contingente de cerca 23 mil soldados e
pretendia estar presente em cada canto da cidade. Em 2010, este
contingente atingiu os 60 mil, ou seja, quase triplicou em 30 anos,
enquanto a população cresceu num ritmo bem mais modesto.

No mesmo delírio de presentificação, o comandante da PM de São Paulo,
num depoimento na Assembleia Legislativa em 1981, falava no desejo
(felizmente impossível) de se colocar um PM em cada quarteirão, o que
exigiria um contingente de 144 mil soldados! Este crescimento da polícia
mostra a força de uma política de extermínio que se realiza como guerra
contra o crime. Foi este extermínio, basicamente de jovens e adultos
negros, que esteve na raiz da virada da violência dos anos finais da
ditadura.

A explicação desta explosão da violência cotidiana e, de certo modo, da
mudança de sua característica, marcada agora por um número elevado de
mortes por causas externas, precisa ainda ser articulada com elementos
de uma nova constelação que começa a se processar com o início de uma
grave crise estrutural do capitalismo.

A dinâmica essencial dessa constelação que se forma, começa a se
manifestar pelo colapso dos esforços de modernização da periferia. Numa
década, não apenas países como Brasil, Argentina e México foram
esmagados e levados a bancarrota por dívidas impagáveis, que
inviabilizavam a continuidade de qualquer pretensão de desenvolvimento,
como também potências militares como a ex-URSS, passando por países
outrora bem sucedidos, como a ex-Iugoslávia entraram num processo comum
de dissolução das suas formas de vida social. Os esforços de adequação
ideológica que procuraram marcar estes colapsos como um fracasso de
políticas econômicas heterodoxas, afirmando, por outro lado, a vitória
triunfal do (neo)liberalismo, não duraram muitas horas.

As repetições catastróficas das crises do capitalismo – que é sempre bom
lembrar, tal conceito não diz respeito apenas a uma realidade econômica,
mas a uma forma social total – depois destes acontecimentos se
manifestaram com tanta intensidade que já não deixam ninguém a
descoberto. Os elementos da nova constelação passam, portanto, a ser
parte importante desta explosão de violência. Alguns dados podem
ilustrar e ampliar a sustentação deste argumento.

O primeiro deles é o número de homicídios no Brasil: em 1979 andava na
marca de 11.194 mortes ao ano, já em 1998 chegava a 41.138 e atingia uma
média de 27 mortes por 100 mil/ha. O segundo é o encarceramento em
massa; em 1990 o número de presos era de 90 mil, chegando a meio milhão
duas décadas depois. A relação entre encarceramento e mercado de
trabalho foi assinalada inúmeras vezes. Neste caso, a crise pode e deve
ser lida a partir dos seus efeitos.

O passo mais ousado nesta explicação, talvez, seja caracterizar o quadro
que se forma nos anos 1990, como um novo tipo de guerra civil. Num
ensaio do início deste século, intitulado A epidemia da guerra, Hobsbawm
(2002) formula uma importante contribuição nesta direção, que permite
alinhavar características comuns entre acontecimentos contemporâneos na
aparência tão díspares. Segundo ele, o fim do sistema de poder de duas
superpotências, ocorrido no fim dos anos 1980, alterava
significativamente a natureza das guerras: “No início do século 21 […]”,
diz, “[…] nos encontramos em um mundo em que operações armadas não mais
estão essencialmente nas mãos de governos ou de seus agentes autorizados
e no qual os partidos em disputa não têm características, status ou
objetivos comuns, exceto a disposição para usar a violência” (HOBSBAWM,
2002).

Além da corrosão do monopólio do uso da violência do Estado, com esta
perda da soberania, processou-se também uma alteração importante de quem
morre nesta guerra: “[…] o ônus da guerra passou cada vez mais das
Forças Armadas para os civis, que não eram apenas suas vítimas, mas cada
vez mais o objeto de operações militares” (HOBSBAWM, 2002).

Leia também:  Revoluções libertárias, democratização, golpismo e
ampliação do Estado, por Ion de Andrade
 <https://jornalggn.com.br/politica/revolucoes-libertarias-democratizacao-golpismo-e-ampliacao-do-estado-por-ion-de-andrade/>

Nas grandes cidades brasileiras a ‘guerra contra o crime’ nos anos 1980
e 1990 recebeu a fórmula norte-americana de ‘guerra contra às drogas’ e
serviu de fachada para as operações armadas das polícias contra bandos
de traficantes, que vitimaram milhares de pessoas da população civil
desarmada. Não é uma novidade a relação entre o fim da Guerra Fria, no
âmbito interno, quando a ditadura perseguiu militantes de organizações
comunistas e criou a Lei de Segurança Nacional, com o início da
mobilização das forças armadas e policiais contra o tráfico de drogas.

O crescente uso de drogas, no entanto, apenas perifericamente teve a ver
com uma mudança de comportamento como a induzida por protestos do
movimento hippie. Os conflitos que rondam uma ampliação da
permissividade dos costumes e a demanda de drogas, por aqui, parecem ter
tido uma base social mais ampla, assim como razões existenciais ou de
protesto menos conscientes do que aquelas do movimento surgido nos EUA.
Drogas como canábis e seu uso crescente tem um paralelo com o consumo de
álcool e, frequentemente, misturam parte do público que as consomem.

A ideia de que as classes populares não consomem canábis, neste sentido,
não passa de velho preconceito. O aumento da sensação de insegurança e a
imprevisibilidade da irrupção da violência, que se ampliou
constantemente, como vimos, além de um trabalho maior de autocontenção,
exigiu que numerosos setores da população ampliassem suas estratégias de
escapismo. Neste sentido, tudo indica que o próprio aumento no uso de
drogas tem relação com o modo como a violência alterou as condições
normais de percepção da realidade, criando com isso um círculo vicioso
de retroalimentação.

Este quadro de uma guerra civil de novo tipo começou a se armar
historicamente nos mesmos anos em que a crise da divida externa
explodiu, em 1981-3. Esta crise produziu o pior afundamento do país
desde 1929. O desemprego neste período, que depois se revelou ser uma
‘década perdida’, foi descomunal para uma sociedade que se sustentava de
forma tão precária. Em cidades como o Rio, que esteve à frente de todos
estes processos, houve uma combinação com diversos fatores locais, como
a transferência da capital federal para Brasília em 1960, e um início
precoce de desindustrialização, antes dela ser uma tendência nacional,
que tornou tudo mais rápido e dramático.

Por isso, o esforço de se retirar este tema do campo das análises
moralistas ou conspiratórias é essencial para se demonstrar o quanto a
violência em grande medida faz parte de elementos centrais da dinâmica
da totalidade desta forma social numa conjuntura histórica em que o
capitalismo tende a aprofundar o seu caráter bárbaro. Tal fato não é
alheio às próprias necessidades da economia, que passa a se organizar
mais frequentemente a partir de atividades que, ao menos sob o ponto de
vista jurídico, são ilícitas. Como sabemos, na história do capitalismo
este aspecto foi sempre muito relativo. O tráfico de escravos, por
exemplo, foi essencial para a acumulação primitiva de capital. Hoje se
finge que ele está proibido.

O comércio de drogas, entendido como uma modalidade da economia política
da barbárie, em que a rapina é o seu eixo dominante, mobiliza desde
meados dos anos 1980 somas respeitáveis de dinheiro, assim como
contingentes não desprezíveis de trabalhadores precários. Poucos
indivíduos diretamente envolvidos neste comércio acumulam algum
patrimônio ou fortuna, e a grande maioria é preso ou morto muito
rapidamente. O discurso policial dos ganhos fáceis destas atividades é
apenas um homília dominical, pois não parte da constatação real de como
se procedem seus momentos de horror.

Para além disso, a circunstância de que este comércio de drogas se
territorializa em favelas também precisa ser vista pelo ângulo desta
dinâmica econômica de colapso. Como esta é uma atividade cuja finalidade
é transformar dinheiro em mais dinheiro, e precisa se preocupar
permanentemente com sua viabilidade, reduzindo custos, a grande
disponibilidade de mão de obra para uma atividade de alto risco não é
algo secundário. A idiotia a que a teoria neoliberal se reduz não ajuda
a decifrar o básico desta situação.

O capitalismo nestes locais mostra com toda força seu estado de crise e
a verdade de seu funcionamento. Que o capital seja portador do horror,
até chapeuzinho vermelho parece ter descoberto, quando teve que escolher
entre o lobo mau e o caçador. Esta atividade nestes territórios é o
cenário de uma alternativa de sobrevivência bastante perversa para
setores numeroso da população que ficaram soterradas sob a crise. Não
são estas pessoas que governam seus destinos e ameaçam a existência e o
bem-estar da sociedade, mas sim as relações fetichistas fundadas na
produção de mercadorias que tornam suas vidas supérfluas, embora ainda
mereçam ser vividas e, por isso mesmo, o façam arriscando-se nos últimos
espaços da economia em que ainda é possível vender-se, como é o caso do
comércio de drogas. Situadas neste limbo, estes indivíduos passaram a
ser o objeto de operações militares cujo mandato é o seu simples extermínio.

Os conflitos pelo domínio de territórios e disputas de mercados de
drogas produziram um número de mortos que se assemelha ao de outros
conflitos mundo afora. A guerra dos Bálcãs, na mesma época, gerou
situações muito parecidas. Como as formas abstratas da economia eram a
força que sustentava a coesão das relações sociais, ao se desfazerem com
a crise, puseram todos em combate.

Por suas práticas de sobrevivência ilícitas ou por sua cor da pele ou
religião ou sexo determinados grupos tornam-se descartáveis: “A
Iugoslávia para mim traz boas memórias. Minha infância feliz antes da
guerra. […]. Ninguém esperava a guerra. […] De repente, seu próprio
exército dispara contra você. Seus amigos passam a atirar em você…”.

As diferentes latitudes de um processo social total, no seu
desmoronamento, desencadeiam patologias muito próximas: a simulação de
continuidade da lógica da transformação do valor em mais valor somente
se mantém com um índice crescente e aberto de violência. Observe o(a)
leitor(a) que a origem identificada deste quadro no final dos anos 1970
tinha muito de um estado de desmoronamento social incipiente em atuação.

A ditadura preparou o arsenal para algo que, sem saber o que de fato
viria, foi desde então uma escolha adequada e pouco questionada de um
modelo de manutenção policialesco da ordem socioeconômica que não tem
como realizar sua finalidade sem se afirmar em meio a um ‘estado de
guerra’. O Estado na periferia do capitalismo teve antecipado seu
enfraquecimento pela própria quebra da economia mundial.

O cenário aqui descrito é um sintoma desta crise, ele integra “uma
grande diferença entre o século 21 e o 20: a ideia de que a guerra
acontece em um mundo dividido em áreas territoriais sob a autoridade de
governos efetivos que possuem o monopólio dos meios de poder e de
coerção públicos [esta ideia] deixou de se aplicar” (HOBSBAWN, 2002).

*III.*

A apresentação de um conceito histórico estrutural de violência, que
contrasta com os métodos das disciplinas acadêmicas de coletar em
pesquisas empíricas toda sua verdade, pode parecer problemático. No
entanto, apenas uma leitura apressada pode considerá-lo desse modo ou
como reducionista. Tal conceituação se afirma numa crítica radical dos
fundamentos da forma social tomados no seu desenvolvimento histórico.
Para as disciplinas do arco iluminista (e o marxismo tradicional
incluído), que ontologizam estes fundamentos – como o trabalho, o valor,
a mercadoria, o dinheiro – e deles derivam o sentido teleológico de
progresso das formas jurídicas e políticas, a violência é em geral
predominantemente um fator extraeconômico, ou seja, uma ruptura
repentina de um acordo normativo ou a exclusão deste acordo de setores
das classes subalternas.

Porém, a sociedade burguesa é um processo de abstração contínuo, em que
a natureza e os seres humanos, com seus corpos sensíveis, precisam ser
negados. Desse modo, a reificação, que encerra a forma coagulada deste
processo social, já é em si uma imensa violência que deve ser
subjetivamente abstraída pelos indivíduos – até explodir. Uma abordagem
crítica da violência a partir da relação com o esquema base da
socialização do valor revela uma face invisibilizada da dominação
social, que são as formas impessoais de abstração, que se estruturam
como mecanismos burocráticos de organização estatal, ou como
objetivações da forma valor e que tendem a criar uma aparência de
realidade vazia de ocorrências.

Leia também:  A moeda de caronte, por Alexandre Coslei
 <https://jornalggn.com.br/artigos/a-moeda-de-caronte-por-alexandre-coslei/>

Nesta perspectiva crítica, o Estado é sempre uma máquina opressora,
inclusive (e cada vez mais) na forma da democracia ocidental. Não é
diferente com as relações de socialização, que podem ser vividas com
mais violência em países periféricos, mas não há como se eliminar a
violência como base da imposição das formas de existência submetidas a
priori às necessidades da acumulação de capital, principalmente nas
circunstâncias de impossibilidade da sua realização.

Mesmo quando a relação com a dinâmica da acumulação pode ser
estabelecida, como em situações de grave recessão ou de catástrofes
naturais, estas causas costumam ser tomadas pelo arco teórico iluminista
como causas momentâneas ou secundárias. Para este campo teórico é
inconcebível tanto a ideia de uma regressão permanente do capitalismo,
como de que as formas de existência desta sociedade guardam o paradoxo
de serem desde sempre uma barbárie civilizada. Com isso não se está
afirmando que tal chave explicativa esgote a compreensão dos fenômenos
da violência. Mas é, certamente, a mais ampla.

Nas últimas quatro décadas todos os esforços dos governos mundo afora
andaram em torno de uma meta: impedir que o capital acumulado sofresse
uma grande desvalorização. Apesar disso, força de trabalho, mercadorias
e meios de produção foram sendo reduzidos a sucata. As bolhas
financeiras criaram poderosos mecanismos de retardo desta
desvalorização, mas o preço social pago ao fim continuou alto.

Os abalos do mercado financeiro têm ocorrido progressivamente em espaços
de tempo mais curtos e, ao fim, deixam a impressão do zumbido de um
pavio ainda aceso anunciando a próxima explosão. A crise de 2008 está
longe de ter sido superada e deixou um novo patamar de destruição no
cotidiano. Ainda na crise de 2001, quando a bolha da economia digital
estourou e a Bolsa de Nova York esteve a risco, a relação entre guerras
de ordenamento, dissolução social e guerras civis ficou estabelecida.

Na última década estas relações se amalgamaram totalmente. As saídas por
segundos da linha do pavio da desvalorização generalizada do capital
tornaram as guerras – ou sua preparação – um fenômeno central do
presente, ao ponto de que a política já cedeu seu lugar a estes novos
meios. Como não se trata de um guerra convencional, por ora é apenas o
direito da sua primazia sobre os direitos sociais e o esmagamento das
massas supérfluas que está em andamento.

Nesta linha, o bolsonarismo é o representante desta violência terrorista
que se alimenta do horror diário das ruas, um ponto de chegada da
passagem da atividade policial defensiva, como deveria ser numa
democracia, para as modalidades ofensivas, iniciado, e nunca
interrompido, ainda em 1969. Ele é a formulação política rebaixada de
uma chantagem dos bandos armados dos porões da ditadura cujas
ramificações começam nas estruturas das PM’s, cruzam pelas Forças
Armadas e se acomodam em grupos milicianos.

Em troca da captura do Estado, em aliança com um programas neoliberal
liquidacionista dos restos da economia, estes bandos adquirem o salvo
conduto para aprofundar socialmente estruturas de uma economia de
pilhagem da riqueza ainda existente. A invasão do Iraque de 2003 havia
deixado clara a mudança de patamar das guerras desde então. Nestas, no
seu movimento interno de avalanche, não há mais sequer condições para se
simular ao fim uma pacificação ou reconstrução dos territórios
atingidos. Após 2008 o desmanche ganhou velocidade e contundência e,
para experiências como a brasileira, agora estes bandos milicianos são
necessários para sustentar o governo, enquanto as massas começam a se
por em fuga.

As possibilidades de saídas desta crise capazes de manter algum nível de
racionalidade que possa evitar traumas agudos, são pequenas e
improváveis. Como foi argumentado ao longo do artigo, este processo se
formou em continuidade com as soluções que a ditadura representou para
os impasses de uma economia periférica no início da apresentação do
limite lógico interno da acumulação.

A articulação de um governo policialesco do desmoronamento social, com a
estruturação de uma economia de pilhagem que funcionou tanto ao nível
macroeconômico, como no cotidiano das classes populares e, cada vez
mais, também das médias, foi um limite do processo de redemocratização e
uma fraqueza do poder constituinte da sociedade brasileira após 20 anos
de arbítrio militar.

Este limite era o ponto de encontro entre a crise do capitalismo
iniciada nos anos 1970, e que se aprofundou nos 1980, como pode ser
atestada na crise da dívida externa, com as demandas democráticas
represadas. Um confronto entre aspirações em expansão e um princípio de
realidade demasiado restrito para ampará-las. Como se pretendesse apoiar
um gigante sobre uma casca de noz quebrada. Mas este foi o início do
próprio limite da sociedade produtora de mercadorias. A continuidade da
sua existência implicava em não confrontar ou compreender como uma
impotência inaceitável a presença maciça das polícias no cotidiano. Ela
fazia parte de uma lição silenciada.

As milícias não são um simples retrocesso dos costumes políticos. Elas
são um passo além na gestão da barbárie. Sendo um produto do caos, elas
estão a postos para semear no solo árido que as fertiliza. Uma esquerda
capaz de enfrentar este novo desafio, precisará romper com o que se
considerou ser a esquerda até ontem. Ou é isso, ou mais barbárie.

/*** Filósofo, professor do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em
Direitos Humanos da UFRJ./

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In
GGNhttps://jornalggn.com.br/artigos/violencia-e-barbarie-por-marildo-menegat/
11/10/2019

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