terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Sobre Engels e /A guerra camponesa na Alemanha /

 
 

*por Prabhat Patnaik [*]

Camponeses em torno da cidade de Delhi. No momento em que massas
camponesas no país estão empenhadas numa luta corajosa para revogar as
três infames leis do governo central e impuseram um cerco pacífico a
Delhi, enfrentando chuvas e frio extremo, vale a pena recordar o estudo
de Friedrich Engels sobre a guerra camponesa na Alemanha em 1525, também
celebrada pelo seu destacado líder Thomas Muenzer. Tal recordação
torna-se necessária por uma outra razão.

Entre muita gente há uma impressão de que apesar de a ideia de uma
aliança operária-camponesa ter sido avançada por Lenine e retomada
subsequentemente por Mao e outros revolucionários comunistas do terceiro
mundo, tanto Marx como Engels haviam sido cépticos quanto ao papel
potencial dos camponeses como aliados do proletariado na transição para
o socialismo. A citação selectiva de observações esparsas de Marx,
arrancadas do contexto, também contribuiu para a confirmação desta
impressão.

Nesta matéria os anarquistas têm sido particularmente severos em relação
ao marxismo. Bakunin acusou os comunistas alemães de encararem todos os
camponeses como elementos de reacção e acrescentou: "O facto é que os
marxistas não podem pensar o contrário; adoradores do poder estatal a
qualquer preço, são obrigados a amaldiçoar toda revolução popular,
especialmente uma revolução camponesa, a qual é anárquica pela sua
própria natureza e que avança directamente para a aniquilação do Estado".

Contudo, esta impressão acerca de Marx e Engels é /totalmente errónea. /
Foi Ferdinand Lassalle, o líder da classe trabalhadora alemã, que chamou
à revolta camponesa do século XVI na Alemanha de "reaccionária" em
"substância e princípio", apesar da sua "aparência revolucionária".
Aqui, como noutras esferas, tais como a chamada "Lei de Ferro dos
Salários" proposta por Lassalle (que salários sob o capitalismo nunca
podem subir acima de um certo nível de subsistência física), as opiniões
de Lassalle foram /erroneamente / identificadas como as de Marx e
Engels. Na realidade, o estudo de Engels sobre a revolta camponesa do
século XVI na Alemanha destinava-se precisamente a contrariar esta
tendência no interior da esquerda alemã, partilhada até por líderes como
Wilhelm Liebknecht, de ver os camponeses como uma massa reaccionária com
a qual a classe trabalhadora não poderia ter qualquer aliança.

Engels, ao contrário, não só defendeu uma aliança operária e camponesa
para a próxima Revolução Alemã, como também sugeriu que a revolta
camponesa de 1525 havia falhado porque fora constituída por uma série de
eventos locais com pouca coordenação nacional entre estes eventos (a
Alemanha naquela altura não era um único país unificado) e também porque
os camponeses não tinham conseguido ter alianças mesmo a nível local com
as massas urbanas plebeias (as quais constituíam uma classe
proto-proletária). De facto, eles foram capazes de erguer uma
resistência muito mais forte naquelas regiões onde puderam ter uma
aliança com as massas plebeias, como na Turíngia, onde Thomas Muenzer
havia estado activo.

/A Guerra Camponesa na Alemanha / foi escrito em 1850, à sombra da
derrota da revolução de 1848 por toda a Europa. Em 1870 Engels escreveu
um Prefácio a uma nova edição do livro onde traçou um paralelo entre as
revoluções de 1525 e 1848 e aprofundou o seu argumento a favor de uma
aliança operária-camponesa.

No Prefácio de 1870, sugeriu que a burguesia alemã havia chegado
demasiado tarde ao local, numa altura em que o desenvolvimento burguês
noutras partes da Europa havia simultaneamente desenvolvido o
proletariado em tal extensão que a burguesia, mesmo nesses países,
estava politicamente em retirada, tendo de reforçar a sua posição
através da construção de pontes com outros elementos conservadores e
anti-classe trabalhadora. Em França, por exemplo, a burguesia teve mesmo
de aceitar o domínio de Louis Bonaparte. Na Alemanha, onde a burguesia
não havia sequer feito qualquer "avanço" rumo ao poder político para
fazer um "recuo", teve de ter uma aliança com os senhores feudais desde
o início, para forjar uma frente unida pela defesa da propriedade
privada, tanto a da burguesia como a propriedade feudal.

Neste processo, a burguesia traía necessariamente os interesses do
campesinato os quais só podiam ser atendidos pelo proletariado no poder,
formando uma aliança operária-camponesa. Uma tal aliança poderia ser
forjada e permitiria efectivamente ao proletariado chegar ao poder,
devido à força numérica combinada dos aliados. Uma aliança
operária-camponesa era portanto historicamente necessária e também
possível, para enfrentar a aliança burguesia-senhores feudais.

Engels enumerou quais segmentos da população, nas condições concretas do
final da Alemanha do século XIX, poderiam constituir aliados do
proletariado. Estes eram: a pequena burguesia, o proletariado de grau
mais baixo das cidades, os pequenos camponeses e os trabalhadores
assalariados da terra. Dentro da população rural, esta lista inclui
apenas duas classes: os pequenos camponeses (Engels usa os termos
grandes, médios e pequenos, em vez de ricos, médios e pobres, para
descrever as várias classes camponesas) e os trabalhadores agrícolas (ou
o que ele chama trabalhadores assalariados da terra). Ele explica o seu
argumento como se segue:

    "Os pequenos camponeses (os camponeses maiores pertencem à
    burguesia) não são homogéneos. Ou estão em servidão ligados aos seus
    senhores e mestres e, por mais que a burguesia não tenha cumprido o
    seu dever de libertar essas pessoas da servidão, não será difícil
    convencê-los de que a salvação, para eles, só pode ser esperada da
    classe trabalhadora; ou são arrendatários, cuja situação é quase
    igual à dos irlandeses. As rendas são tão altas que mesmo em tempos
    de colheitas normais, o camponês e a sua família dificilmente
    conseguem ter uma existência simples; quando as colheitas são más,
    ele virtualmente passa fome. Quando não consegue pagar a sua renda,
    fica inteiramente à mercê do senhor da terra. A burguesia só pensa
    em alívio sob coacção. Onde, então, os arrendatários deveriam
    procurar socorro além dos trabalhadores?

    "Há outro grupo de camponeses, aqueles que possuem um pequeno pedaço
    de terra. Na maior parte dos casos, eles estão tão sobrecarregados
    com hipotecas que a dependência do usurário é igual à dependência do
    arrendatário para com o senhor da terra. O que eles ganham é
    praticamente um magro salário, o qual, uma vez que as boas e más
    colheitas se alternam, é altamente incerto. Estas pessoas não podem
    ter a mínima esperança de obter nada da burguesia, porque é a
    burguesia, os usurários capitalistas, que lhes espremem o sangue
    vital. Ainda assim, os camponeses agarram-se à sua propriedade,
    embora na realidade, esta não lhes pertença, mas aos usurários. Será
    necessário deixar claro a estas pessoas que só quando um governo do
    povo houver transformado todas as hipotecas em dívida para com o
    Estado, e assim reduzido a renda, é que eles serão capazes de se
    libertarem do usurário. Isto, no entanto, só pode ser cumprido pela
    classe trabalhadora.

    "Onde quer que prevaleça a média e grande propriedade da terra, os
    trabalhadores assalariados das mesmas constituem a classe mais
    numerosa. Este é o caso em todo o norte e leste da Alemanha e é aqui
    que os trabalhadores industriais da cidade encontram os seus aliados
    mais numerosos e naturais. Da mesma forma, quando o capitalista se
    opõe ao trabalhador industrial, o grande proprietário ou grande
    arrendatário opõe-se aos trabalhador assalariado da terra. As
    medidas que ajudam a um devem também ajudar ao outro. Os
    trabalhadores industriais só se podem libertar transformando o
    capital da burguesia, ou seja, as matérias-primas, máquinas e
    ferramentas, os alimentos necessários à produção, em propriedade
    social, a sua própria propriedade, para serem por eles utilizados em
    comum. Do mesmo modo, os trabalhadores assalariados da terra só
    podem ser libertados da sua miséria horrenda quando o objecto
    principal do seu trabalho, a própria terra, for retirada da
    propriedade privada dos grandes camponeses e ainda grandes senhores
    feudais, e transformada em propriedade social a ser cultivada por
    uma associação de trabalhadores da terra numa base comum".

Engels está a visualizar não uma revolução em duas fases, mas uma
revolução socialista, o que significa que a partir do dia seguinte da
revolução todo o esforço deve ser no sentido do desenvolvimento do
socialismo e não de qualquer construção inicial do capitalismo num
período de transição. É por isso que ele exclui não só os grandes
camponeses mas até os camponeses médios da lista de aliados
revolucionários. Ele sugere a nacionalização da terra em vez da
distribuição radical da terra, após a dissolução dos latifúndios feudais.

Obviamente, a composição precisa da aliança operário-camponesa e a
agenda precisa desta aliança variará de país para país, dependendo das
condições concretas. Além disso, no contexto actual, a questão camponesa
deve envolver a libertação não só da opressão feudal mas também do
grande capital, compreendendo tanto as corporações nacionais como o
agronegócio multinacional. Mas como Engels e Marx haviam reconhecido (o
livro apareceu inicialmente como artigos no /Neue Rheinische Zeitung /
editado por Marx, o qual obviamente partilhava a posição de Engels), uma
aliança adequada com o campesinato é uma condição essencial para a
realização do socialismo.



*[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
<http://en.wikipedia.org/wiki/Prabhat_Patnaik>

O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2021/0117_pd/engels-peasant-war-germany
<https://peoplesdemocracy.in/2021/0117_pd/engels-peasant-war-germany> *

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/patnaik/patnaik_17jan21.html
17/1/2021

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