segunda-feira, 10 de maio de 2021

Em Kerala, o presente é dominado pelo futuro | Carta semanal 18 (2021)

 




Vijay Prashad

Queridos amigos e amigas,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

Kerala, um estado indiano com uma população de 35 milhões, reelegeu a
Frente Democrática de Esquerda (FDE) para liderar o governo por mais
cinco anos. Desde 1980, o povo de Kerala vota contra o governo no poder,
buscando alternância entre esquerda e direita. Este ano, decidiram ficar
com a esquerda e dar ao líder do Partido Comunista da Índia (Marxista),
Pinarayi Vijayan, um segundo mandato como ministro-chefe. O secretário
da Saúde, K. K. Shailaja, popularmente conhecido como Professor
Shailaja, venceu sua reeleição com uma contagem recorde de mais de 60
mil votos, ultrapassando em muito seu principal concorrente.

Está claro que o povo votou no governo de esquerda por três razões:

 1. A maneira eficiente e racional como o governo da FDE gerenciou
    crises em cascata, como a do ciclone Ockhi (2017), enchentes
    <https://thetricontinental.org/how-kerala-fought-the-heaviest-deluge-in-nearly-a-century/>
    (2018 e 2019) e vírus
    <https://thetricontinental.org/studies-3-coronashock-and-socialism/>
    (Nipah em 2018 e coronavírus em 2020-21).
 2. Apesar dessas crises, o governo continuou a atender às necessidades
    das pessoas
    <https://thetricontinental.org/newsletterissue/11-kerala/>,
    construindo casas a preços acessíveis, escolas públicas de alta
    qualidade e a infraestrutura pública necessária.
 3. O governo e os partidos de esquerda lutaram para defender a
    estrutura secular e federal da Índia contra o crescente e sufocante
    neofascismo do Partido Bharatiya Janata (BJP) e seu líder Narendra
    Modi, o atual primeiro-ministro da Índia.


No domingo, o ministro-chefe Vijayan abriu sua coletiva de imprensa
<https://twitter.com/CPIMKerala/status/1388826355605798915> não com os
resultados das eleições, mas com uma atualização da Covid-19. Só depois
de contar ao povo de Kerala sobre a atual situação da pandemia no estado
é que saudou a “vitória do povo”. Essa vitória, disse, “nos torna mais
humildes. Exige que estejamos mais comprometidos”. Do ciclone de 2017 à
pandemia de coronavírus, o ministro-chefe veio à público por meio de
entrevistas coletivas calmas e racionais durante cada uma dessas crises,
oferecendo avaliações baseadas na ciência dos problemas e esperança para
as pessoas que se desesperavam com as circunstâncias impostas.

Jeo Baby – o cineasta malayalam que fez o grande sucesso /The Great
Indian Kitchen /(2021) – fez uma paródia carinhosa de suas coletivas de
imprensa; ano passado, ele dublou um vídeo de Vijaiyan, e postou no
Facebook <https://www.facebook.com/jeobaby/videos/10220743919083226>, no
qual o humorista “usa” a imagem calma do secretário para dizer a seu
filho de quatro anos que escove os dentes antes de beber seu chá da
manhã. A coletiva de imprensa de 2 de maio – após o surgimento dos
resultados das eleições – deu continuidade à tradição da calma racional.

 
A comparação com a atitude do primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi
<https://www.newsclick.in/12-reasons-why-covid-19-second-wave-man-made-disaster>,
ficou evidente para o povo de Kerala. Em 28 de janeiro, Modi discursou
no Fórum Econômico Mundial em Davos, Suíça, onde anunciou que a Índia
havia vencido a Covid-19, em clima de fanfarronice. “Não seria
aconselhável julgar o sucesso da Índia com o de outro país”, disse Modi
<https://www.pmindia.gov.in/en/news_updates/pms-address-at-the-world-economic-forums-davos-dialogue/>.
“Em um país que abriga 18% da população mundial, esse país salvou a
humanidade de um grande desastre ao conter o coronavírus de forma
eficaz”. Naquele mesmo dia, o ministro da Saúde de Modi, Harsh Vardhan,
disse
<https://www.thehindu.com/news/national/india-has-flattened-its-covid-19-graph-says-harsh-vardhan/article33683738.ece>:
“A Índia achatou a curva da Covid-19”. Certamente, naquele dia, os casos
recém-confirmados somavam 18.855
<https://www.hindustantimes.com/world-news/coronavirus-india-world-latest-news-covid-19-death-toll-january-29-2021-101611885280680.html>.
Observadores atentos alertaram
<https://www.newsclick.in/COVID-19-New-Strain-India-Cases-Coronavirus-Mutation>
que esses números mostravam uma subnotificação e que o vírus – assim
como suas novas variantes – poderia se espalhar muito rapidamente, dada
a falta de precauções da sociedade.

Poucos dias antes de Modi e Vardhan fazerem esses comentários, o membro
do partido de Modi e ministro-chefe de Uttarakhand, Trivendra Singh
Rawat, permitiu que 7 milhões de pessoas conduzissem o Kumbh Mela em
abril. O Kumbh Mela é uma reunião de pessoas religiosas que celebram a
rotação de Jupitar (Brihaspati), que ocorre a cada doze anos. Em meio a
uma pandemia, as aglomerações deste ano foram permitidas com um ano de
antecedência. Autoridades do governo alertaram
<https://www.aninews.in/news/national/general-news/kumbh-might-become-covid-19-super-spreader-central-govt-official-expresses-apprehension-at-review-meet20210406142730/>
no início de abril que o Kumbh Mela e outros eventos semelhantes
poderiam acelerar a transmissão do vírus. O Ministério da Saúde disse
<https://twitter.com/MoHFW_INDIA/status/1379484270465404928?s=20> que
isso era “incorreto e falso”. O Kumbh Mela prosseguiu, assim como os
comícios de campanha em massa de Modi para as eleições à Assembleia.

O comentário de Modi no Fórum Econômico Mundial foi insensível e
ridículo. No último dia do mês de abril, mais de 400 mil casos diários
<https://www.thehindu.com/news/national/coronavirus-india-becomes-first-country-in-the-world-to-report-over-400000-new-cases-on-april-30-2021/article34453081.ece>
de Covid-19 foram confirmados na Índia. Todo o sistema de saúde está
sobrecarregado. Os gastos governamentais com saúde
<https://apps.who.int/gho/data/node.main.GHEDCHEGDPSHA2011?lang=en> são
extraordinariamente baixos, cerca de 1,3% do PIB em 2018. No final de
2020, o governo indiano admitiu que tinha 0,8 médicos para cada mil
indianos
<https://pmj.bmj.com/content/postgradmedj/early/2020/06/10/postgradmedj-2020-137780.full.pdf>
e 1,7 enfermeiras para cada mil indianos
<https://rajyasabha.nic.in/rsnew/EDAILYQUESTIONS/sessionno/251/EU%203.pdf>.
Nenhum país do tamanho e riqueza da Índia tem uma equipe médica tão pequena.

Fica pior. A Índia tem apenas 5,3 leitos para cada 10 mil
<https://apps.who.int/gho/data/view.main.HS07v> pessoas, enquanto a
China – por exemplo – tem 43,1 leitos para essa mesma quantidade. A
Índia tem apenas 2,3 leitos de cuidados intensivos para 100 mil
<https://www.forbes.com/sites/niallmccarthy/2020/03/12/the-countries-with-the-most-critical-care-beds-per-capita-infographic/?sh=466cda187f86>
pessoas (em comparação com 3,6 na China) e tem apenas 48 mil
ventiladores (a China tinha70 mil ventiladores
<https://covid-19.chinadaily.com.cn/a/202004/25/WS5ea39748a310a8b241151837.html>
apenas em Wuhan).

A fraqueza da infraestrutura médica deve-se inteiramente ao modelo de
privatização, em que os hospitais do setor privado operam seus sistemas
com base no princípio da capacidade máxima e não têm condições para
lidar com sobrecargas. A teoria da otimização não permite que o sistema
absorva sobrecarga de demandas, pois em tempos normais isso significaria
que os hospitais teriam capacidade ociosa. Nenhum setor privado vai
desenvolver voluntariamente leitos ou ventiladores excedentes. Isso é o
que causa inevitavelmente a crise em uma pandemia. Os baixos
investimentos do governo com saúde significam baixos investimentos com
infraestrutura médica e baixos salários para profissionais de saúde.
Essa é uma maneira inadequada de administrar uma sociedade moderna,
tanto em tempos normais quanto em tempos extraordinários.


O partido de Modi – o BJP – teve uma derrota decisiva nas eleições para
a Assembleia em Kerala (não conquistando um único assento), sua aliança
perdeu em Tamil Nadu (população de 68 milhões) e perdeu em Bengala
Ocidental (população de 91 milhões). O mandato nesses estados é contra a
catástrofe criada pelos sistemas de saúde impulsionados pelo mercado e
por um governo insensível e incompetente. Deve-se dizer, entretanto, que
essas não são as áreas centrais da base de apoio de Modi. Esses estão
principalmente no norte e no leste da Índia e não serão consultados nas
pesquisas por pelo menos um ano. No entanto, a continuação da revolta
dos agricultores, que começou em novembro de 2020, provavelmente mudará
o equilíbrio de forças em muitos desses estados do norte e leste da
Índia, de Haryana a Gujarat.

Nada reflete melhor a cruel incompetência do governo do que a situação
das vacinas. A Índia produz 60% das vacinas do mundo. Ainda assim – como
apontado por Tejal Kanitkar
<https://www.newsclick.in/understanding-wide-gap-india-need-supply-covid-vaccines>,
professor do Instituto Nacional de Estudos Avançados
<https://www.nias.res.in/associate-professor/tejal-kanitkar> – no ritmo
atual, a Índia não completará sua campanha de vacinação antes de
novembro de 2022. Esta é uma situação confusa. Kanitkar faz três
sugestões de política que são sensíveis e devem ser endossadas
imediatamente:

 1. Compra em grande escala de vacinas pelo governo indiano a preços
    regulados.
 2. Um programa de distribuição transparente, entre os 28 estados e 8
    territórios da Índia, em discussão com especialistas em saúde
    pública e governos estaduais para determinar a necessidade e a taxa
    de fornecimento, a fim de garantir a equidade em todo o país.
 3. Estratégias dirigidas pelo governo local para aumentar a ingestão de
    vacinas entre as massas trabalhadoras para garantir o acesso
    equitativo entre as classes econômicas.

Este é um programa que faz sentido não apenas para a Índia, mas para a
maior parte do mundo.


O clima em Kerala é de alegria, com pessoas sensíveis em toda a Índia
olhando para a forma como o governo de esquerda está lidando com a
pandemia e promove a agenda popular. Um jovem poeta, Jeevesh M., captou
o espírito da vitória:

/Ei, flor,/
/Por que você está tão vermelha?/
/As raízes se aprofundaram,/
/Tocando a base./
/E isso é tudo./

Poucos dias antes da eleição, o ministro da Saúde de Kerala, K. K.
Shailaja, foi questionado sobre o estado da pandemia. Suas palavras
encerram esta carta semanal:

    Acho que há duas lições importantes dessa pandemia. Uma, que o país
    precisa de planejamento adequado e mecanismos de implementação
    descentralizados para melhorar nosso sistema de saúde; a segunda
    lição é que não pode haver demora em aumentar o investimento público
    em saúde. Gastamos apenas 1% de nosso PIB em saúde; deve ser
    aumentado para pelo menos 10%. Países como Cuba investem muito mais.
    O sistema de médicos de família cubano me influenciou quando
    iniciamos os Centros de Saúde da Família aqui em Kerala. Os cuidados
    de saúde devem ser universais, com alguns regulamentos nas unidades
    terciárias de saúde. Deve haver mais investimento nos níveis
    primário, secundário e terciário. Deve haver um planejamento
    descentralizado com regulamentação. Cuba conquistou muito por causa
    de seu planejamento centralizado e implementação descentralizada.
    Seu sistema de saúde é focado nas pessoas e no paciente. Seu
    conceito de igualdade e descentralização podem ser emulados aqui.

    Eu sou de esquerda. Minha palavra não tem nenhum valor na política
    sanitária desse país no momento. Mas se a esquerda estivesse no
    poder central agora, teríamos nacionalizado a saúde e a educação. O
    governo deve ter controle sobre os cuidados de saúde para que todos
    – pobres e ricos – recebam tratamento equitativo.

Cordialmente,

Vijay.

In
TRICONTINENTAL
https://thetricontinental.org/pt-pt/newsletterissue/cartasemanal-18-kerala-eleicoes/
6/5/2021

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