segunda-feira, 18 de outubro de 2021

A tragédia neoliberal da Ásia Central


 


    Michael Hudson [*]


Em meados da década de 1980, responsáveis soviéticos viam uma
necessidade de abrir a sua economia na esperança de alcançar inovação e
produtividade em estilo ocidental. Aquela foi a década em que Margaret
Thatcher e Ronald Reagan patrocinavam as políticas neoliberais
pró-financeiras que polarizaram os EUA, a Grã-Bretanha e outras
economias, carregando-as com despesas gerais de rentistas /(rentier)./

A União Soviética seguiu uma política de privatização muito mais extrema
do que qualquer outra coisa que o Ocidente social-democrata tivesse
tolerado. Em Dezembro de 1990 concordou em adoptar o projecto neoliberal
apresentado em Houston pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco
Mundial, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico
(OCDE) e Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento (BERD) para
transferir propriedade até então pública para mãos privadas[1] <#notas>.
A promessa era que os privatisadores teriam interesse em produzir novas
habitações abundantes, bens de consumo e prosperidade.

Os líderes soviéticos acreditavam que o conselho neoliberal recebido era
sobre como seguir o caminho pelo qual as nações industrializadas
avançadas se haviam desenvolvido e feito a sua prosperidade parecer tão
atraente. Mas os conselhos acabaram por ser sobre como abrir as suas
economias e permitir aos EUA e a outros investidores estrangeiros ganhar
dinheiro com as antigas repúblicas soviéticas, criando oligarquias
clientes da espécie que a diplomacia americana havia instalado na
América Latina e noutros Estados fantoches. O isolamento da ex-União
Soviética em relação à Guerra Fria deu lugar à transformação das suas
repúblicas em presas para exploração financeira e de recursos naturais
pelos EUA e outros bancos e corporações ocidentais.

O resultado foi cleptocracia, eufemisada como “mercado livre”. Banca,
bens imobiliários, recursos naturais e serviços públicos foram
privatizados nas mãos de apropriadores que geriram as suas aquisições no
seu próprio interesse, aos quais juntaram-se o dos investidores e bancos
estrangeiros. Como uma piada russa dos anos 90 expressou a crise que se
seguiu: "Tudo o que eles nos contaram sobre o comunismo era falso; mas
tudo o que eles nos disseram sobre o capitalismo era verdade!

Vladimir Putin descreveu a destruição da antiga União Soviética como a
grande tragédia do final do século XX. O que a tornou uma tragédia grega
clássica foi quão inevitável, mas também quão imprevisto, era o seu
destino quando em 1991 as repúblicas soviéticas aceitaram a terapia de
choque e aboliram o papel do governo como investidor, criador de crédito
e regulador. A privatização não acabou com o planeamento disfuncional.
Ela simplesmente limitou-se a privatizar a disfunção social,
revelando-se em breve tão económica e demograficamente destrutiva como
teria sido um verdadeiro ataque militar.

Cada economia é gerida por uma classe ou por outra. Na ausência de
autoridade pública, o planeamento passa para quem quer que esteja no
controlo dos bancos, terras e fontes de riqueza relacionadas, e acima de
tudo a atribuição de crédito. Hoje, três décadas após o início do
dilaceramento pós-soviético, a concentração da banca devastou, endividou
e empobreceu a população, levando a uma duração de vida mais curta e a
uma emigração crescente.

.

Este livro [2] <#notas> excelente mas doloroso descreve a tragédia
provocada pela reconstrução neoliberal pós-soviética do Cazaquistão e do
Quirguistão. Sanghera e Satybaldieva descrevem como funcionários dos
EUA, do Banco Mundial e do FMI, fazendo-se passar por conselheiros úteis
que afirmam ajudar estas repúblicas a adoptar o modelo pelo qual as
economias ocidentais haviam crescido prósperas, pressionaram estes
países a actuar em favor mais de instituições financeiras e corporações
estrangeiras do que em prol das suas próprias populações. Estas
"instituições de ajuda" (ou, mais precisamente, de criação de dívida)
actuaram por conta dos bancos e investidores ocidentais para promover o
despojamento e a financeirização das terras pós-soviéticas, bens
imobiliários, petróleo e riqueza mineral.

O planeamento soviético havia garantido a habitação como um direito,
juntamente com o acesso à educação e aos cuidados básicos de saúde. Não
havia mercado para habitação e não havia dívida hipotecária. O
financiamento governamental da habitação através da sua própria criação
de crédito mantinha baixos os encargos com a habitação. Havia
sobrelotação, mas pelo menos as famílias não eram levadas a endividar-se
a fim de obterem habitação, educação ou tratamento médico. Esta é uma
das principais razões pelas quais tantos russos e outras populações
pós-soviéticas sentem agora uma certa nostalgia dos tempos soviéticos,
ainda que parecesse má em 1991.

O mal-estar que se seguiu era desnecessário. As economias pós-soviéticas
poderiam facilmente ter-se tornado vibrantes e prósperas. Poderiam ter
dado título de propriedade imobiliária aos ocupantes e utilizadores
existentes. No rescaldo imediato da União Soviética, os ocupantes e
utilizadores de bens imobiliários receberam títulos, obtendo
propriedades livres de dívidas. Mas se os controlos estatais sobre
rendas e especulação tivessem permanecido em vigor e a construção de
habitações sociais tivesse sido adequadamente financiada, as pessoas não
teriam de acumular dívidas enormes para possuírem as próprias casas,
edifícios e terrenos. Isto teria minimizado o custo de vida da economia,
ajudando os estados pós-soviéticos a desenvolver uma agricultura e
indústria de baixo custo.

Os planificadores soviéticos prestaram pouca atenção à forma como o
processo de pagamento de rendas e juros estava a polarizar as economias
ocidentais. A não cobrança de encargos pelo arrendamento da terra ou
pelos juros levou-os a perder a grande vantagem da sua economia em
comparação com o capitalismo financeiro ocidental: a liberdade de
arrendar a terra, o monopólio do arrendamento, dos juros e das práticas
financeiras usurárias. Foram estes rendimentos rentistas que acabaram
por polarizar e empobrecer as economias pós-soviéticas.

As repúblicas pós-soviéticas poderiam ter utilizado os seus próprios
sistemas bancários centrais para financiar a reestruturação, mantendo a
criação de crédito como um serviço público, como era na época soviética.
Isso teria libertado estas economias da dependência de bancos
estrangeiros para a concessão de crédito em dólares a serem gasto
localmente. Sem salários a serem pagos ou o recebimento de outros
rendimentos depois o colapso da sua divisa ter eliminado as poupanças
internas, havia uma necessidade imediata de financiamento através de
dívida para sobreviver. A banca pública teria libertado as economias da
necessidade de contrair empréstimos em dólares ou outra divisa
estrangeira, especialmente para obter habitação.

Os tesouros nacionais poderiam ter dado valor a este dinheiro através da
tributação das rendas económicas criadas no sector imobiliário, agrícola
e industrial. Esse era, afinal, o ideal dos economistas clássicos.
Tributar o valor da renda da terra teria impedido que esta se tornasse
um objecto de especulação. Em vez disso, rendimentos rentistas eram
pagos aos banqueiros comerciais que surgiram, financiados pelos bancos
ocidentais, ao invés de um novo banco central nacional. Os sistemas
fiscais pós-soviéticos sobrecarregaram o trabalho e a indústria,
enquanto que os donos de propriedades ficaram em grande parte isentos de
impostos, orientando as suas economias em linhas rentistas.

A “regra da lei” patrocinada por financiadores ocidentais permitiu aos
gestores e aos iniciados políticos registarem terras públicas, recursos
petrolíferos e minerais, serviços públicos e fábricas em seus próprios
nomes, e recolher o dinheiro em divisas forte através da venda de muitas
(por vezes a maioria) acções das suas novas empresas a ocidentais. A
maior parte das receitas foi mantida no estrangeiro, deixando as
economias locais com necessidade de crédito estrangeiro para funcionarem.

Para tornar irreversível esta captura de activos, a regra da lei
neoliberal e a "segurança do contrato" eram coletes de forças legais que
davam aos credores o direito de executar a propriedade dos devedores –
sem direitos para os devedores e arrendatários, os quais eram despejados
se não pudessem cumprir os pagamentos das suas hipotecas ou pagar rendas
mais elevadas quando a habitação era gentrificada. Como Sanghera e
Satybaldieva resumem, "Ao instituir políticas financeiras neoliberais,
os Estados da Ásia Central reescreveram o contrato social e criaram uma
nova dependência de classe entre as elites financeiras e os devedores.
Foram estabelecidos Estados devedores que facilitaram, justificaram e
normalizaram relacionamentos de classe desiguais para assegurar a
acumulação de capital liderada pela dívida. Eles minimizaram a
supervisão do sector financeiro e eliminaram fortes protecções contra
empréstimos predatórios. As elites políticas legitimaram o enquadramento
neoliberal da dívida como "fortalecimento". O efeito não foi fortalecer
a população, mas o de marginalizá-la, ao mesmo tempo que levavam os
pequenos proprietários a endividarem-se e os privavam das suas casas.

O que se perdeu foi o conceito de habitação e de outras necessidades
básicas como um direito humano. Na União Soviética havia um conjunto
definido de direitos de propriedade em que as pessoas podiam confiar, e
o Estado respeitaria e implementaria', descrevem os autores. O pacote de
direitos incluía direitos à terra e à habitação, bem como direitos de
ocupação e utilização para inquilinos e suas famílias. Rendas, juros e
ganhos especulativos eram rendimentos 'não-laborais' e não eram permitidos'.

Contudo, depois de 1991, a habitação em todas as antigas repúblicas
soviéticas teve de ser obtida através da assunção de dívidas. Assim,
trocaram a auto-suficiência financeira, fiscal e imobiliária nacional
patrocinada pelo Estado para seguir o sonho de obter uma prosperidade
generalizada ao estilo americano, não se apercebendo de quão
polarizadora seria a política de financiamento por dívida. Na ausência
de poupanças internas (que haviam sido exterminadas pela hiperinflação),
os bancos comerciais obtiveram fundos emprestados através da contracção
de empréstimos ao estrangeiro. A dívida interna do sector privado
encontrou assim a sua contrapartida no aumento das dívidas a bancos
estrangeiros.

Descrevendo como indivíduos ambiciosos obtiveram títulos de propriedade
de habitações, centros comerciais e mercados antes de assumirem cargos
políticos, os autores fornecem uma lista de autarcas locais que se
enriqueceram ainda mais com a venda de terras públicas e activos
municipais. As habitações de empresas tornaram-se um veículo para os
proprietários despejarem antigos empregados e inquilinos de longa data,
gentrificando os bens imobiliários, tal como no U.S. Rust Belt, onde as
fábricas estavam a ser encerradas. Os novos proprietários estavam livres
para maximizar tudo o que pudessem extorquir, sem qualquer tentativa de
proporcionar as protecções sociais que o Ocidente considerava como
garantidas aos devedores ou arrendatários.

A obtenção de habitação depois de 1991 exigia a contracção de dívidas.
Ao contrário da amplitude de 5% de taxas hipotecárias no Ocidente,
grande parte da população contraiu empréstimos a taxas de juro efectivas
entre 25 e 50%. Era como tentar comprar uma casa recorrendo a /payday
loans/ [NT] <#nt> no estilo americano. Havia pouca forma de os pagar.
Além disso, as mulheres e o influxo rural de não ricos para as cidades
tinham de confiar no microcrédito, tipicamente a arcar com juros anuais
de 80%.

Sanghera e Satybaldieva destacam a Corporação Financeira Internacional
do Banco Mundial e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento
Internacional (USAID) pelos seus esforços para legitimar tal usura,
enquanto afirmam hipocritamente que isto "fortalece" as mulheres como
devedoras. A realidade, salientam, é que, "a Corporação Financeira
Internacional e outros doadores internacionais mandataram estas
instituições de microfinanças (IFM) para se tornarem plenamente
comercializadas a fim de atingirem elevados retornos sobre o capital
próprio. A taxa de juro média era de 44%". O resultado, tal como
Satybaldieva assinalou noutro local, foi um desastre:

Muitas mulheres, que anteriormente estavam empregadas como operárias de
fábrica, trabalhadoras agrícolas, professoras e especialistas em
cuidados de saúde foram forçadas a fazer pequeno comércio através de
esquemas de microcrédito patrocinados pelo Ocidente. ...

Em segundo lugar, muitas mulheres pediram dinheiro emprestado para pagar
serviços, tais como cuidados de saúde e educação, que anteriormente
estavam disponíveis gratuitamente. Os principais serviços sociais
sofreram cortes significativos nas despesas do Estado, que não só
reduziram os salários do sector público como privatizaram e
mercantilizaram as necessidades básicas, permitindo aos grupos abastados
o acesso a serviços de melhor qualidade enquanto os grupos com baixos
rendimentos foram privados deles. ... Um inquérito de 2021 aos mutuários
de microcrédito online no Cazaquistão mostrou que 29% dos inquiridos
contraíram empréstimos para pagar despesas de emergência, 21% para fazer
face às despesas, e 16% para liquidar dívida sobre empréstimos
bancários. Os restantes utilizaram os empréstimos para pagar tratamentos
médicos, serviços públicos, taxas escolares. Apenas uma pequena minoria
dos empréstimos estava ligada à compra de bens de consumo[3] <#notas>.

Para impor a cobrança, os credores locais de microcrédito mobilizaram
funcionários distritais locais e anciãos para envergonhar as mulheres
por faltarem aos seus reembolsos, chegando mesmo a cair sobre famílias
em funerais para insistir em que assumissem a responsabilidade colectiva
pelas dívidas do falecido. Os montantes envolvidos são enormes, relatam
os autores. "Entre 1995-2012 o microcrédito permitiu uma transferência
de até US$125 mil milhões de comunidades pobres no Sul Global para
centros financeiros no Norte Global".

As mulheres tornaram-se as adversárias mais radicais das reformas
neoliberais ao estilo ocidental. Em Bishkek, a capital e maior cidade do
Quirguistão:   "A 26 de Maio de 2016 cerca de 700 pessoas, na sua
maioria mulheres rurais, protestaram perante a Embaixada dos EUA
exigindo amnistia da dívida de bancos e IFM que haviam sido criados e
apoiados pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento
Internacional (USAID) e pela Corporação Financeira Internacional do
Banco Mundial. Ostentando cartazes que diziam "Occupy FINCA", "Debt
kills", "Save our homes from banks" e "Humans above profit", os
manifestantes fizeram algo muito significativo nesse dia'. Atribuíram a
responsabilidade e a culpa pela sua situação às instituições financeiras
ocidentais e não às suas falhas pessoais. Protestos e atribuições
anti-dívidas semelhantes ocorreram no vizinho Cazaquistão.

O que tornou o peso da dívida um problema nacional foi que os
compradores de casas e empresas normalmente concordaram em denominar as
suas dívidas em dólares, a fim de baixar as taxas de juro exorbitantes
cobradas por empréstimos em moeda local. À medida que as economias eram
dolarizadas, as suas taxas de câmbio locais depreciavam-se em resultado
dos défices da balança de pagamentos resultantes da dependência
comercial e do desequilíbrio económico geral. O custo do serviço das
dívidas em moeda estrangeira aumentava proporcionalmente à depreciação
da taxa de câmbio.

A pobreza levou a mão-de-obra a emigrar. Ironicamente, isto ajudou a
estabilizar a balança de pagamentos de muitos países da Ásia Central. As
remessas do êxodo de trabalhadores migrantes do Quirguistão representam
cerca de 30% do seu PIB, e o Casaquistão tinha um rácio semelhante de
33%. Isto era típico da Ásia Central. Do mesmo modo, trabalhadores
migrantes do Tajiquistão na Rússia enviavam às suas famílias rendimentos
que montavam a mais de 30% do seu PIB.

A Ásia Central pós-soviética carece das reformas básicas quase
universais desde há milhares de anos. Já por volta de 2350 AC, o
governante sumério Urukagina proclamou uma reforma que impedia os
credores de entrarem nas casas dos devedores e simplesmente agarrar os
seus bens e animais. Desde a Mesopotâmia e o Egipto até à época romana,
os direitos dos devedores eram protegidos pela exigência de registos
escritos para documentar todos os créditos dos credores e pela limitação
das taxas de juro. Mas os conselheiros ocidentais não fizeram qualquer
tentativa para criar um tal Estado de direito na Ásia Central. O que o
seu sistema jurídico alcançou está mais próximo da barbárie, como
concluem Sanghera e Satybaldieva:

Ao procurar libertar a população da dependência do estado social
soviético, os arquitectos neoliberais produziram novas formas
parasitárias e exploradoras de dependência do mercado, nas quais a
classe poderosa apropriou-se e explorou a mais-valia que outros geravam.
O capital rico em activos e transnacional tornou-se mais rico, tomando
do pobre em activos através de juros, rendas, ganhos de capital e baixos
salários. A transferência maciça de riqueza deixou grande parte da
população num estado de endividamento, pobreza, miséria e angústia.

A nível internacional, a regra neoliberal do direito é o que os
advogados corporativos escreveram para permitir aos tribunais de
Resolução de Litígios entre Investidores e Estados /(Investor-State
Dispute Settlement, ISDS)/ bloquear as tentativas do governo de multar
ou cobrar aos investidores estrangeiros pelos danos ecológicos e sociais
que estes causam. Os monopólios petrolíferos e mineiros globais
enfrentam os governos numa frente unida, tendo mobilizado o Banco
Mundial, o FMI e a Organização Mundial do Comércio para pressionar os
países anfitriões a respeitarem regras pró-corporativas que limitam os
direitos dos seus governos e que bloqueiam a supervisão ou pressão
eleitoral democrática. Face a estes tribunais e aos contratos
frequentemente ingénuos (ou corruptos) assinados com o governo, nenhuma
tentativa compensatória foi feita para criar agências reguladoras
estatais, tribunais ou direito internacional para dar às economias
pós-soviéticas as protecções comuns nos Estados Unidos e na Europa.

O que os investidores ocidentais mais desejavam da Ásia Central era a
sua riqueza em recursos naturais. Os autores descrevem como os EUA, o
Banco Mundial e os consultores das ONG impuseram contratos que
favoreciam os interesses das empresas petrolíferas e mineiras
ocidentais. A Chevron pôs os olhos nas vastas reservas de petróleo no
campo petrolífero de Tengiz, no Cazaquistão. O que o Cazaquistão queria
era perícia ocidental como empreiteiros e investidores minoritários. Mas
a Chevron queria controlo – e deixar o governo do país anfitrião com o
menor rendimento possível com a venda do seu petróleo.

O resultado foi um dos contratos petrolíferos mais predatórios do mundo
– nada daquilo que o que o Cazaquistão pensava que iria obter, mas uma
bonança para a Chevron. O contrato prometia que o governo receberia 80%
da produção, reflectindo os acordos normais de 80%-20% de partilha de
produção para os países europeus e do Médio Oriente. No entanto,
descrevem os autores, o Cazaquistão acabou por receber apenas 2% das
receitas do projecto. Advogados empresariais elaboraram um contrato que
obrigava o governo do Cazaquistão a não receber quaisquer lucros até que
tivesse suportado os imensos custos de desenvolvimento do próprio campo
petrolífero (empréstimo do FMI) e cumprido um objectivo de produção a
longo prazo – altura em que quase um quarto das reservas de petróleo de
Tengiz estaria esvaziada e vendida.

A operação da Chevron provou ser uma história de terror ecológico tão
desastrosa como a que havia causado no Equador. Foi multada em 303
milhões de dólares por violação das leis de protecção ambiental, mas
pressionou o presidente Nazarbayev a revogar a multa para mostrar ao
mundo como o Cazaquistão era "amigo do investidor"! Quando a oposição
popular surgiu para exigir um contrato justo, os investidores
internacionais, a resposta dos investidores internacionais e dos
funcionários do governo ocidental e dos seus homens de frente no FMI,
Banco Mundial e USAID foi a de alegar que a renegociação violaria o
Estado de direito e a santidade dos contratos.

O Quirguistão sofreu de forma semelhante com os poluidores estrangeiros
das minas de ouro. Estas "externalidades" foram suportadas pelos países
de acolhimento, sem custos para os investidores estrangeiros pelo seu
comportamento ilegal, irresponsável e predatório. Se o Ocidente tivesse
verdadeiramente procurado ajudar os Estados pós-soviéticos a prosperar,
os seus diplomatas teriam ajudado a negociar acordos justos de
investimento em recursos naturais, protecção ambiental, segurança dos
trabalhadores e outra regulamentação pública. Em vez disso, Sanghera e
Satybaldieva concluem: "O regime neoliberal de regras de investimento
obriga os governos a acordos assinados com empresas transnacionais . . .
Se os acordos forem violados, os investidores sentem-se justificados a
levar os Estados anfitriões à arbitragem internacional por danos. ... A
regra da lei ... alegava que ... o Estado não podia infringir os
direitos e liberdades individuais, e o domínio da propriedade privada
deve ser protegido de políticas maioritárias". Assim, o neoliberalismo
não se livrou do planeamento estatal. Estabeleceu o domínio empresarial
sobre o Estado, forçando os governos dos países anfitriões a dar
"prioridade aos interesses do capital transnacional [sobre os da sua
própria população], e cooperar com empresas estrangeiras para limitar as
vozes democráticas e enfraquecer a resistência".

Alguns países conquistados recuperam-se, como a Alemanha e o Japão
depois de 1945. Mas a conquista dos antigos Estados soviéticos tomou a
forma de corrompção da sua estrutura económica, instalando uma
cleptocracia. O destino da Ásia Central e de outros Estados
pós-soviéticos continua a ser moldado pela forma como as suas terras,
recursos minerais e empresas públicas foram privatizadas às mãos de uma
cleptocracia cliente em aliança com o capital estrangeiro. Tal como as
concessões de terras criadas pela Conquista Normanda e as de Espanha no
Novo Mundo, a apropriação de bens pós-soviética criou uma nova
oligarquia com poderes para recolher terras e rendas de recursos
naturais para si próprios e para os accionistas e credores americanos e
outros estrangeiros. O agravamento da má distribuição da propriedade e
da dependência da dívida é susceptível de bloquear o seu desenvolvimento
durante muitas décadas.

A acusação que Tácito colocou na boca do adversário de Roma, o líder
celta Calgacus há dois mil anos – 'Eles fizeram um deserto e
chamaram-lhe paz' – pode ser feita contra os neoliberais ocidentais que
impõem a austeridade financeirizada, a dependência e a servidão da
dívida, e chamam à tomada do governo por parte dos rentistas uma regra
natural e inerente à lei. O desafio para a Ásia Central é como reformar
face aos interesses instalados ao longo dos últimos trinta anos. A
reforma é resistida não só pelos novos interesses dos rentistas e seus
patrocinadores estrangeiros, como também pela estreita "classe média",
que não encontra o seu interesse em juntar-se à maioria para reavivar a
despesa pública e tributar o arrendamento de terrenos e outras rendas
económicas.

A resiliência não pode ser restaurada sem despesa pública, mas o plano
de negócios do rentista /(rentier)/ consiste em minimizar os impostos
reduzindo o governo, especialmente através da privatização dos seus
serviços públicos e outras funções a fim de criar oportunidades de
cobrar rendas monopolistas – e opor-se à tributação das rendas
económicas. A filosofia económica dominante e o currículo académico
actual em todo o Ocidente apoiam este programa neoliberal, negando a
existência de qualquer coisa como rendimento ou riqueza não merecida do
rentista.

No entanto, só um imposto sobre as rendas pode recuperar o que os
iniciados se apropriaram. O que está em causa acima de tudo é se o
crédito, o sistema bancário e fiscal será gerido como um serviço público
ou para ganho privado. Um tesouro nacional ou um banco central deve ter
poderes para criar dinheiro de modo a não depender de bancos
estrangeiros. A directriz deve ser que nenhuma economia deveria contrair
empréstimos numa moeda estrangeira que ela não ganhe, por exemplo, pela
exportação para ganhar a divisa estrangeira necessária ao pagamento das
dívidas. Não há necessidade de depender de bancos estrangeiros para
emprestar dólares a serem convertidos em moeda nacional. Em tais casos,
o banco central tem de criar a moeda nacional de qualquer forma. O
crédito estrangeiro é necessário apenas para pagar os défices comerciais
e de pagamentos, não para investimento ou consumo interno.

Estas reformas fiscais e financeiras falharam, uma vez que a economia
clássica foi rejeitada após a Primeira Guerra Mundial. O mundo de hoje
precisa de recuperar a sua abordagem básica a fim de se libertar do
desvio pró-rentista que a apossou, não só nas repúblicas pós-soviéticas
mais visivelmente, mas agora também a praguejar a Europa e a própria
economia pós-industrial dos EUA.

Para evitar a dependência externa inerente ao neoliberalismo patrocinado
pela diplomacia americana, pelo Banco Mundial e pelo FMI é preciso um
corpo alternativo de teoria económica, acima de tudo [que faça] a
distinção entre rendimento merecido e não merecido e o conceito de renda
económica como o excesso de preço de mercado sobre o valor de custo
intrínseco. Este foi o impulso da economia política clássica no século
XIX – para libertar os mercados da classe rentista. A teoria do valor e
do preço eram as ferramentas analíticas para isolar a renda económica
como rendimento não merecido. Estes conceitos fornecem a base para a
gestão de uma economia mista público/privada, investimento público e
criação de crédito, bem como para a protecção do trabalho interno, da
indústria e da agricultura. Ao elaborar uma teoria para orientar a
política, a desastrosa promoção neoliberal dos interesses dos rentistas
em todos os estados pós-soviéticos proporciona uma lição objectiva do
que evitar.


        Junho/2021/Nova York

[1] The Economy of the USSR. A study undertaken to a request by the
Houston Summit: Summary and Recommendations (Washington, D.C.: The World
Bank, December 19, 1990).
[2] /Rentier Capitalism and Its Discontents : Power, Morality and
Resistance in Central Asia/
<https://www.bookdepository.com/Rentier-Capitalism-Its-Discontents-Balihar-Sanghera/9783030763022?ref=grid-view&qid=1634419158290&sr=1-1>,
de Balihar Sanghera e  Elmira Satybaldieva
[3] Elmira Satybaldieva, /The Debt Oppression in Central Asia,/ Naked
Capitalism, 7/Junho/2021.

[NT] Payday loans: empréstimos de curto prazo e de alto custo,
geralmente de valores pequenos.


    [*] Economista. As suas obras principais estão aqui
    <https://www.bookdepository.com/search?searchTerm=Michael+Hudson&search=Find+book>.


    O original encontra-se em
    thesaker.is/central-asias-neoliberal-tragedy-a-review/
    <https://thesaker.is/central-asias-neoliberal-tragedy-a-review/>

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/m_hudson/tragedia_15out21.html
18/10/2021

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