terça-feira, 27 de junho de 2023

Marxismo ocidental: a tentação doentia

 

 
 
Greg Godels

 

    /Outra excelente crítica contemporânea ao marxismo ocidental pode
    ser encontrada nos escritos do autor marxista Gabriel Rockhill.
    Rockhill //desacredita//hábil e completamente/ /a Escola de
    Frankfurt do neo-marxismo, especialmente os seus pensadores mais
    célebres, Horkheimer, Habermas, Adorno e Marcuse, denunciando a sua
    fidelidade a vários patrocinadores. Aqueles que pagavam as contas
    desfrutavam de ideias simpáticas, um resultado frequentemente
    encontrado nos praticantes do marxismo ocidental./

 

 



A história do marxismo tem uma história paralela do contra-Marxismo –
correntes intelectuais que se posicionam como sendo o /verdadeiro/ marxismo.

Mesmo antes do marxismo surgir como uma ideologia coerente, Marx e
Engels dedicaram uma secção muitas vezes negligenciada de seu /Manifesto
Comunista /de 1848 para desmascarar os opositores existentes que se
diziam do /verdadeiro /socialismo.

Enquanto o movimento operário procurava dolorosamente um sistema de
crenças para animar a sua resposta ao capitalismo, as ideias de Karl
Marx e Friederich Engels conquistaram gradualmente trabalhadores,
camponeses e oprimidos. Não foi uma vitória fácil. O liberalismo –
ideologia dominante da classe capitalista – foi útil aos trabalhadores e
camponeses na sua luta contra a tirania absolutista.

 

Com o capitalismo e as instituições liberais firmemente estabelecidos, o
anarquismo – a ideologia dos pequeno-burgueses descontentes – rivalizava
com o marxismo pela liderança do movimento operário. Contraditoriamente,
abraçando o individualismo extremo e a democracia utópica destilada do
capitalismo, mas expressando um ódio amargo às instituições capitalistas
e aos arranjos económicos, os anarquistas não conseguiram oferecer uma
saída viável do peso esmagador do capitalismo.

 

Quando o bolchevismo tomou o poder em 1917, o movimento operário
encontrou um exemplo de socialismo real-existente, liderado por
marxistas declarados reais, um poderoso farol para o caminho a seguir na
luta contra o capitalismo. A vitória da Revolução Russa estabeleceu o
marxismo como o caminho mais promissor para uma maioria explorada, sendo
o leninismo a única ideologia bem-sucedida para a mudança revolucionária
e o socialismo. Até hoje, o leninismo permaneceu o único guia comprovado
para o socialismo.

 

Imediatamente após a revolução, surgiram os "marxismos" rivais.

O fracasso das revoluções europeias subsequentes fora da Rússia,
especialmente da Alemanha, afastou numerosos intelectuais, como Karl
Korsch e György Lukács, que imaginavam um caminho diferente,
supostamente melhor, para a revolução proletária. Impulsionados pelo
apoio material de benfeitores, nomeações universitárias e pelos muitos
patrocinadores ávidos da traição de classe, os críticos e detratores do
leninismo abundavam.

 

Especialmente no Ocidente – América do Norte e Europa – onde a classe
trabalhadora era significativa e crescia dramaticamente, a dissidência,
a traição de classe e o oportunismo   mostraram-se forças disruptivas no
movimento comunista mundial, forças que os governantes capitalistas
estavam ansiosos por apoiar. Os jovens, os trabalhadores inexperientes,
os aspirantes a intelectuais e os que tinham descido na escala social
eram especialmente vulneráveis ao apelo da independência, pureza,
idealismo e valores liberais. Dinheiro, oportunidades de carreira e
celebridade estavam prontamente disponíveis para aqueles que estavam
dispostos a vender essas ideias.

 

De facto, nem todos os críticos do marxismo-leninismo – comunismo
revolucionário – foi ou é  desonesto ou não tem mérito, mas a
honestidade exige o reconhecimento de que nenhum defensor real do
derrube do capitalismo poderia alcançar destaque, celebridade ou o que
quer que fosse no Ocidente capitalista. Ele ou ela pode ser uma
curiosidade ou um símbolo em prol das aparências – um fantoche.

 

Por outro lado, qualquer figura intelectual ou política que alcance
ampla proeminência ou influência não pode representar um sério desafio
existencial ao capitalismo quando o caminho para a proeminência e
influência é patrulhado pelos guardiões do capitalismo.

No entanto, o movimento operário tem sido atormentado por tendências
ideológicas divisionistas ou modismos gerados por vozes independentes
que, intencionalmente ou não, são exploradas e prestam serviço à classe
capitalista.

No Ocidente, é quase impossível ser um jovem radical e não ser tentado
por um verdadeiro mercado ideológico de supostas teorias
anti-capitalistas ou socialistas, disputando entre si a lealdade. Desde
o fim do socialismo real na União Soviética e a desorientação de muitos
partidos comunistas e operários, a competição de ideias criou ainda mais
confusão.

Claramente, o movimento operário, o movimento socialista revolucionário,
precisa de orientação para evitar distrações, teorias falsas e ideias
corrompidas. A marcha dos neófitos políticos pelo caminho das ideias
capsiosas e fantásticas é uma grande tragédia, especialmente no que diz
respeito àquelas ideias que se apresentam como marxistas.

 

Felizmente, uma nova geração de pensadores marxistas está a desafiar o
fascínio dos pretendentes marxistas, mais especificamente, aqueles
associados ao que veio a ser chamado "marxismo ocidental". Um simpático
artigo da /Wikipédia /oferece uma definição tão precisa das palavras
quanto se poderia desejar: "O termo denota uma coleção solta de teóricos
que avançaram uma interpretação do marxismo distinta do marxismo
clássico e ortodoxo e do marxismo-leninismo da União Soviética". Não
poderia ficar mais claro: o marxismo ocidental é tudo /menos /o
marxismo-leninismo que sustenta os partidos revolucionários
comprometidos com os trabalhadores desde a época da revolução bolchevique!

 

O historiador e jornalista marxista Vijay Prashad ministrou um seminário
na Biblioteca Memorial Marx em 21 de novembro de 2022, no qual criticou
o marxismo ocidental dos anos 1980:

 

/Houve um ataque sustentado ao marxismo nesse período, liderado pela New
Left Books, hoje Verso Books, em Londres, que publicou Hegemonia e
Estratégia Socialista/,/de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, em 1985. O
livro utilizou maliciosamente a obra de Antonio Gramsci para fazer um
ataque ao marxismo, para, de facto, defender algo a que eles chamavam
"pós-marxismo". Pós-estruturalismo, pós-marxismo, pós-colonialismo:
esse   tornou-se o sabor da literatura académica vinda dos países
ocidentais a partir dos anos 1980... Particularmente após o colapso da
União Soviética, houve uma grande fraqueza na nossa capacidade de lutar
contra essa difamação do marxismo em nome do pós-marxismo... Quando eles
[Laclau e Mouffe] falam sobre "agência" e "o sujeito" e assim por
diante, afastaram-se basicamente do impacto estruturante da economia
política e voltaram a um tempo pré-marxista; na verdade, eles não foram
além do marxismo, mas voltaram a um tempo anterior ao marxismo. (/Vendo
a descolonização através de uma lente marxista, publicado na /Revista
Comunista/, Inverno 2022/2023/)/

 

Prashad situa as obras influentes de Hardt e Negri e Deleuze e Guattari
na mesma mistura pós-marxista.

 

Ele lamenta a guinada do multiculturalismo porque "basicamente tirou as
entranhas da crítica anticolonial, antirracista, ao nível global
apareceu o pensamento 'pós-colonial', e também a 'descolonialidade' –
por outras palavras, vamos olhar para o poder, vamos olhar para a
cultura, mas não vamos olhar para a economia política que estrutura a
vida quotidiana e o comportamento e reproduz a mentalidade colonial;
isso tem de estar fora da mesa... Então, entramos numa espécie de
pântano académico, onde o marxismo, de certa forma, não tinha  permissão
de entrar."

 

Prashad poderia muito bem ter acrescentado a intromissão da teoria da
escolha-racional no marxismo na década de 1980, uma análise não
convidada da teoria marxista através das lentes do individualismo
metodológico e do igualitarismo liberal. Um dos principais expoentes do
que veio a ser chamado de "marxismo analítico" eviscerou o robusto
conceito marxista de exploração ao provar que, se tivermos a
desigualdade como condição inicial, reproduziremos logicamente a
desigualdade – uma derivação trivial com pouca relevância para a
compreensão do conceito historicamente evoluído de exploração do trabalho.

 

Prashad pode ter notado a influência contínua do relativismo pós-moderno
sobre a teoria marxista na década de 1980 em diante, uma depreciação de
qualquer afirmação de que o marxismo é a ciência da sociedade. Para o
pós-modernista, o marxismo só pode ser, na melhor das hipóteses, uma das
várias interpretações concorrentes da sociedade, coerente dentro dos
círculos marxistas, mas proibida de fazer qualquer reivindicação de
maior   universalidade. Além disso, o pós-modernista nega que possa
haver qualquer teoria abrangente válida do capitalismo, qualquer
"metanarrativa" que descreva a trajetória de um sistema socioeconómico.
Embora as suas falhas não possam ser abordadas aqui, a falecida
historiadora marxista Ellen Meiksins Wood expôs a tendência académica
com grande clareza.

 

Outra excelente crítica contemporânea ao marxismo ocidental pode ser
encontrada nos escritos do autor marxista Gabriel Rockhill. Rockhill
desacredita hábil e completamente a Escola de Frankfurt do neo-marxismo,
especialmente os seus pensadores mais célebres, Horkheimer, Habermas,
Adorno e Marcuse, denunciando a sua fidelidade a vários patrocinadores.
Aqueles que pagavam as contas desfrutavam de ideias simpáticas, um
resultado frequentemente encontrado nos praticantes do marxismo ocidental.

 

Rockhill também faz uma denúncia contundente do pedante marxista mais
proeminente da atualidade, Slavoj Žižek. Fiquei feliz por elogiar
Rockhill ao esvaziar o ego incomparável de Žižek  num artigo anterior.
Tanto o desmascaramento da Escola de Frankfurt por Rockhill como a sua
destruição do culto Žižek são leituras essenciais para contestar o
marxismo ocidental.

 

Mais recentemente, o filósofo Carlos L. Garrido aborda ambiciosamente o
marxismo ocidental no seu livro /The Purity Fetish and the Crisis of
Western Marxism//[O Fetiche da Pureza e a Crise do Marxismo Ocidental],
/Midwestern Marx Publishing Press, 2023). Central para o argumento de
Garrido é a noção de um "fetiche da pureza" que está no centro do ataque
dos marxistas ocidentais ao marxismo-leninismo. Essa tese perspicaz e
original, de facto, captura uma característica comum às principais luzes
do anticomunismo ocidental de esquerda; de Frederich Ebert a Slavoj
Žižek, os "marxistas" insistiram hipocritamente que os revolucionários
deviam ser mantidos num padrão mais elevado de governança democrática,
perfeição judicial, não-violência e perfeição política, para além de
qualquer coisa que fosse possível na sociedade burguesa ou razoavelmente
esperada de uma sociedade revolucionária fora da pura fantasia.

 

Os marxistas ocidentais podem convenientemente ignorar a história do
capitalismo  repleta de pecados genocidas, antidemocráticos e
exploradores, enquanto criticam os apoiantes de Fidel por acertarem
contas com algumas centenas de torturadores de Batista. Deploram as
mudanças radicais que os comunistas soviéticos e chineses implementaram
na agricultura para superar as frequentes fomes que devastaram os seus
países quando, infelizmente, as mudanças coincidiram com fomes severas,
como se grandes mudanças para melhor pudessem escapar aos acontecimentos
naturais e às tragédias em qualquer lugar que não fosse a sua imaginação.

 

Fecham os olhos aos custos humanos impostos à humanidade pela
resistência a grandes mudanças das elites dominantes, enquanto denunciam
os revolucionários por  procurarem essa mudança e arriscarem um futuro
melhor. O marxismo ocidental diminui as grandes realizações do
socialismo real existente, ao mesmo tempo que denuncia implacavelmente
os erros cometidos na construção socialista. Garrido efetivamente
ressalta as dores e os erros necessários construção de um novo mundo, na
fuga das garras do capitalismo implacável.

 

Como observa Garrido:

 

/Esse é o tipo de "marxismo" que o imperialismo aprecia, o tipo que o
agente da CIA, Thomas Braden, chamou  "esquerda compatível". Este é o
"marxismo" que funciona como a vanguarda da contra-hegemonia controlada./

* *

Resume ele de forma eloquente:

 

/O socialismo para os marxistas ocidentais é, nas palavras de Marx, uma
questão puramente escolástica. Eles não estão interessados na luta real,
em mudar o mundo, mas em purificar continuamente uma ideia, que é
debatida entre outros marxistas da torre de marfim e que é utilizada
para avaliação face ao mundo real. O rótulo de "socialista" ou
"marxista" é sustentado apenas como uma identidade contra-cultural e
ousada que existe nas franjas da sociedade quotidiana. É a isso que o
marxismo é reduzido no Ocidente – uma identidade pessoal./

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Posso acrescentar que também é um lugar comum para os marxistas
ocidentais  apostar com força no socialismo de outros povos. Em vez de
influenciar as suas próprias classes trabalhadoras, os marxistas
ocidentais lutam pelo socialismo através do movimento de solidariedade,
escolhendo as lutas "mais puras" e debatendo  indiretamente os méritos
de vários socialismos.

 

Garrido discorre sobre o socialismo-como-investimento-na-identidade:

 

/No contexto do tratamento que o Ocidente hiperindividualista dá ao
socialismo como uma identidade pessoal, a pior coisa que pode acontecer
a esses "socialistas" é que o socialismo seja alcançado. Isso
significaria a destruição total da sua identidade marginal
contra-cultural. O seu total distanciamento das massas trabalhadoras do
país pode, em parte, ser lido como uma tentativa de tornar as ideias
socialistas suficientemente marginais para nunca convencer os
trabalhadores e, portanto, nunca conquistar o poder político./

/ /

/O sucesso do socialismo implicaria uma perda de autonomia, uma
destruição da identidade socialista-interior-capitalista. O socialismo
do Ocidente assenta numa identidade que odeia a ordem existente, mas
odeia ainda mais a perda de identidade que a sua transcendência implicaria./

* *

Os objetivos de Garrido não se completam com a sua magistral dissecação
do marxismo ocidental. Além disso, dedica grande atenção à crítica do
marxismo ocidental à República Popular da China (RPC) numa secção
intitulada/A C//hina e o fetiche da pureza do marxismo ocidental/. É
claro que ele está correto ao deplorar a colaboração sem princípios do
marxismo ocidental com ideólogos burgueses ao atacar todas as políticas
ou atos da China Popular desde a sua revolução em 1949. Tal como
acontece com a URSS, qualquer estimativa honesta e profundamente
ponderada da trajetória da RPC deve –  para o bem e para o mal – vê-la
como positiva na necessária transcendência do capitalismo pela humanidade.

 

Como anti-imperialistas, devemos defender o direito da RPC (e o direito
de outros países) a escolher o seu próprio rumo. Como marxistas, devemos
defender o direito do Partido Comunista Chinês a encontrar o seu próprio
caminho para o socialismo.

 

Mas Garrido vai além, montando uma defesa apaixonada, mas unilateral, do
socialismo chinês. Como militante defensor do método dialético, trata-se
de um afastamento estranho. Como argumentou o estimado marxista R. Palme
Dutt na década /de /1960, a questão mais frutuosa para um materialista
dialético é:  /para/ /onde vai a //China? /E não: A RPC corresponde a
alguma forma pura Platónica de socialismo?

/ /

Uma visão mais equilibrada do caminho da RPC faria referência à
importância da base de classe maioritariamente camponesa do Partido
Comunista na sua fundação, o seu  comprometimento com o nacionalismo
chinês e a forte tendência voluntarista no pensamento de Mao Tsé-Tung.
Consideraria a rutura dos anos 1960 com o movimento comunista mundial e
a aproximação com os elementos mais reacionários dos círculos dirigentes
dos EUA na década de 1970, coroada pelo vergonhoso apoio material aos
agentes dos EUA e da África do Sul nas guerras de libertação da África
Austral. A RPC financiava Jonas Savimbi e a UNITA, enquanto os
internacionalistas cubanos morriam a lutar contra eles e os seus aliados
do /apartheid/. O que sugere a pergunta: a China  poderia fazer mais
para ajudar Cuba a superar o bloqueio dos EUA, como fez a União Soviética?

 

Um relato justo abordaria a invasão do Vietname pela RPC em 1979 e a
defesa inabalável dos Khmer Vermelhos pela China Popular. Certamente,
todos esses fatores desempenham um papel na avaliação do caminho da RPC
para o socialismo.Esses factos incómodos tornam difícil concordar com
Garrido em que a RPC tem sido "um farol na luta anti-imperialista".

 

Claro que hoje é outra questão. A minha própria opinião é que a
liderança do Partido Comunista Chinês está "a cavalgar o tigre" de um
setor capitalista substancial, para usar imagens que lembram o puro
maoísmo. Pode-se questionar o quão bem estão eles a montar, mas eles
estão de facto a montá-lo. Há muitos desenvolvimentos promissores, mas
também alguns que são preocupantes.

 

De qualquer forma, os camaradas críticos ou céticos em relação ao
caminho chinês não devem ser sumariamente arrastados para o caixote do
lixo com o Marxismo Ocidental.

 

Garrido traz o seu fetiche da pureza para casa quando discute a
organização socialista nos EUA. Ele lança um olhar crítico sobre o
caráter de classe da maior parte da esquerda norte-americana,
enraizando-a na pequena burguesia e na influência das ideias
pequeno-burguesas. Situa os transmissores dessas ideias na academia, na
media e nas ONG. O apoio material adicional à ideologia pequeno-burguesa
vem de organizações sem fins lucrativos e, claro, do Partido Democrata.

 

O viés pequeno-burguês da esquerda norte-americana reforça a sua atitude
hipercrítica em relação aos movimentos que tentam realmente assegurar um
futuro socialista. Onde quer que socialistas ou militantes de orientação
socialista enfrentem os enormes obstáculos que têm pela frente, muitos
na esquerda insistirão em aderir a padrões liberais de bom
comportamento, uma exigência irrealista que garante o fracasso. Garrido
ironiza a insistência na pureza revolucionária: "... O problema é que
essas coisas no mundo real chamadas socialismo nunca foram realmente
socialismo; O socialismo é realmente essa bela ideia que existe de forma
pura na minha cabeça…"

 

O fetiche da pureza das camadas médias estende-se aos radicais que
desprezam os trabalhadores como "atrasados" ou "deploráveis". Garrido
contrapõe essa obsessão pela pureza com uma maravilhosa citação de
Lenine: "pode-se (e deve-se) começar a construir o socialismo, não com
material humano abstrato, ou com material humano especialmente preparado
por nós, mas com o material humano que nos foi legado pelo capitalismo".

 

Sobre o voto de Trump e a classe trabalhadora, Garrido repreende a
esquerda americana:

/... eles não veem que o que está implícito nesse voto é um desejo de
algo novo, algo que só o movimento socialista, não Trump ou qualquer
partido burguês, pode proporcionar. Em vez disso, eles veem nessa
parcela da classe trabalhadora um bando de racistas trazendo à tona uma
ameaça "fascista" que só pode ser derrotada desistindo da luta de
classes e perseguindo os democratas. Por mais tolo que possa parecer,
essa política domina o movimento comunista contemporâneo nos EUA./

* *

Embora nem toda a esquerda seja culpada por esse fracasso, a acusação
não está longe da verdade.

 

Finalmente, Garrido culpa grande parte da esquerda dos EUA pela sua
rejeição geral de tendências e conquistas progressistas na história dos
EUA. Muita gente de esquerda rebaixa lutas heroicas na história dos EUA
ao pintar um retrato de uma trajetória implacável de reação, racismo e
imperialismo. Garrido vê isso corretamente como uma instanciação de um
fetiche de pureza negativa – denunciando cada página da história dos EUA
como fatalmente carente e não autêntica: "... Os marxistas do fetiche da
pureza aumentam a sua futilidade em desenvolver condições subjetivas
para a revolução, desligando-se completamente das tradições que as
massas americanas passaram a aceitar."

 

Embora isso seja verdade, é preciso lembrar que há sempre o perigo de
que a história dos EUA seja celebrada com tanto vigor que o legado de
crueldade e massacre sangrento do país possa ser silenciado pelo zelo
patriótico. Durante a era da Frente Popular, por exemplo, a palavra de
ordem do líder comunista Earl Browder de que "o comunismo é o
americanismo do século XX" apostou muito na justiça social do
americanismo e muito pouco no comunismo.

 

A história e a tradição dos EUA são contraditórias e os marxistas devem
sempre expor essa contradição – um legado de grandes mudanças sociais
históricas e de uma desumanidade horrível. A origem do país compartilha
um trágico passado colonialista com países como a Austrália e a África
do Sul no seu tratamento genocida dos povos indígenas. Esses mesmos
colonos estabeleceram ou toleraram a exploração brutal dos africanos
forçados à escravidão. Embora pudéssemos colocar a culpa à porta da
classe dominante dos EUA, é a história dos EUA também.

 

Ao mesmo tempo, a revolução norte-americana foi a mais radical para a
sua época e cada geração produziu um movimento consequente para corrigir
as falhas do legado ou avançar no horizonte do progresso social. Uma
guerra civil emancipadora, a expansão do sufrágio, as conquistas dos
trabalhadores contra as grandes empresas, o bem-estar social e os
seguros, e uma série de outros marcos assinalam a história do povo.

 

Enquanto escrevia e refletia sobre os 200 anos da Revolução Francesa
(/Ecos da Marsellaise),//o /historiador marxista Eric Hobsbawm não pôde
deixar de ficar impressionado com a menor influência global da revolução
norte-americana anterior sobre a mudança social do século XIX. Ele
pensava que os reformadores e revolucionários da época poderiam
reconhecer o seu ponto de partida "mais facilmente no /Ancien Régime
//[Antigo Regime] /da França do que nos colonos livres e proprietários
de escravos da América do Norte". Sem dúvida, a mancha do genocídio dos
povos indígenas e da escravidão brutal influenciou essa disposição.

 

De facto, a observação de Hobsbawm ressalta o caráter contraditório do
passado norteamericano. Não é um "fetiche da pureza" que explica esse
julgamento, mas os factos frios e duros da história dos EUA.

 

No entanto, é apropriado que Garrido nos lembre dos muitos
revolucionários – Marx, Lenine, Mao, Ho Chi Minh, William Z. Foster,
Herbert Aptheker, Fidel e outros– que não só  se inspiraram como
ofereceram inspiração às vitórias do povo, bem como na feroz resistência
à opressão da classe dominante contida na história dos EUA. Ele
efetivamente cita o líder comunista Georgi Dimitrov que rejeita a
prática do /niilismo nacional /- a depreciação de todas as expressões de
orgulho e realização nacionais. Dentro de cada identidade nacional há
uma identidade a ser celebrada na sua resistência à opressão e na sua
dedicação a um modo de vida melhor. Os trabalhadores devem extrair
humildade nacional dos fracassos do passado, ao mesmo tempo em que
extraem orgulho nacional das vitórias sobre a injustiça. Uma esquerda
que atenda apenas a um e não a ambos faltará à classe trabalhadora.

 

O marxismo ocidental – escolástica marxista, desconectado da prática
revolucionária – distrai muitos aliados bem-intencionados e famintos por
mudanças no árduo caminho para o socialismo. É animador encontrar vozes
a levantar-se para desafiar o obscurantismo estéril dessa distração,
enquanto defendem e promovem a tradição do marxismo-leninismo e do
comunismo. Devemos encorajar e apoiar marxistas como Prashad, Rockhill e
Garrido na condução dessa luta.

Em
PELO SOCIALISMO
https://pelosocialismo.blogs.sapo.pt/marxismo-ocidental-a-tentacao-doentia-256385#cutid1
26/6/2023

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