sábado, 10 de maio de 2014

O retorno da geopolítica



Atilio Boron

Uma olhada nas novidades editoriais produzidas no estudo das
relações internacionais – ou, se quisermos usar uma linguagem
“politicamente incorreta”, porém, mais clara e acessível: o
imperialismo – revela a crescente presença de obras e autores
que apelam à problemática geopolítica. A súbita irrupção dessa
temática nos move a compartilhar uma breve reflexão, por duas
razões.

Primeiro porque o assunto e a palavra há tempos tinham sido
expulsos, aparentemente para sempre, do campo dos estudos
internacionais e agora estão de volta. Propomos a hipótese, em
segundo lugar, de que sua reincorporação não tem nada de
casual ou acidental, mas é um sintoma de um fenômeno que
transcende o plano da teoria e a semiologia: a decadência do
império norte-americano.

Em relação ao primeiro, digamos que o abandono da perspectiva
geopolítica não só se verificou nas elaborações dos mandarins
da academia, o que não é motivo algum de preocupação, mas que
também se fez sentir nas obras dos pensadores da esquerda,
isto sim motivo de inquietude. Tanto era assim, e tanto mudou
em tão pouco tempo, que ao terminar a edição do meu livro
“América Latina na Geopolítica do Imperialismo”, em meados de
2012, e proceder à última revisão do texto antes de enviá-lo
para impressão, pensei ser necessário introduzir um largo
parágrafo, que reproduzirei parcialmente a seguir, para
responder aos muitos amigos e camaradas que, sabedores da
problemática que investigava, me fizeram conhecer sua
surpresa, e em alguns casos desacordos, por dirigir minha
atenção a um tema, a geopolítica, associada às colocações da
direita mais reacionária e racista. Daí que senti a
necessidade de dizer o seguinte, no início do livro:

“Umas palavras, precisamente, sobre a problemática
geopolítica. Trata-se de uma questão que em geral a esquerda
demorou mais do que o conveniente em estudar, por uma série de
razões que não podemos senão apenas enunciar aqui:
concentração no exame de temas ‘nacionais’; visão economicista
do sistema internacional e do imperialismo; menosprezo da
geopolítica pela gênese reacionária deste pensamento e pela
utilização que dela fizeram as ditaduras militares
latino-americanas dos anos 70 e 80 do século passado.

A generalização do conceito e as teorias da geopolítica se
encontram na obra de um geógrafo e general alemão, Karl Ernst
Haushofer, quem propôs uma visão fortemente determinista das
relações entre os diferentes Estados para assegurar o que, em
um conceito de sua autoria, qualificou como ‘espaço vital’
(Lebensraum). O desprestígio dessa teorização se relaciona com
o fato de que foi esse conceito de Lebensraum o empregado por
Hitler para justificar o expansionismo alemão, que culminou
com a tragédia da Segunda Guerra Mundial. Hauschofer teve como
fonte de inspiração a obra de um geógrafo e politico
britânico, Halfor John Mackinder, que em 1904 havia escrito um
muito influente artigo sobre ‘o pivô geográfico da história’”
(1).

Em todo caso, o nascimento dessa perspectiva teve lugar em um
momento histórico marcado pelo predomínio das concepções
colonialistas, imperialistas e racistas, de finais do século
19 e começo do século 20. Se hoje reaparece, completamente
ressignificada no pensamento contestador, é porque traz uma
perspectiva imprescindível para elaborar uma visão crítica do
capitalismo em uma fase como a atual, marcada pelo caráter já
global desse modo de produção, sua febril depredação do meio
ambiente e as práticas selvagens de despossessão territorial,
padecidas pelos povos nas últimas décadas. Não deveria
surpreender-nos, então, que dois dos principais pensadores do
nosso tempo sejam geógrafos marxistas: David Harvey e Milton
Santos.

É que a política e a luta de classes, tanto no nacional como
no internacional, não se desenvolvem no plano das ideias ou da
retórica, mas sobre bases territoriais, e o entrelaçamento
entre território (com os “bens públicos ou comuns” que nos
caracterizam), projetos imperialistas de exploração e
despossessão e resistências populares ao despejo requerem
inevitavelmente um tratamento onde a análise da geografia e o
espaço se articulem com a consideração dos fatores econômicos,
sociais, políticos e militares.

Em tempos como os atuais, nos quais a devastação capitalista
do meio ambiente chegou a níveis desconhecidos na história,
uma reflexão sistemática sobre a geopolítica do imperialismo é
mais urgente e necessária do que nunca. Tal como recordara o
comandante Fidel Castro em sua profética intervenção na Cúpula
da Terra – Rio de Janeiro, junho de 1992 –, “uma importante
espécie biológica está em risco de desaparecer pela rápida e
progressiva liquidação de suas condições naturais de vida: o
homem”.

Creio que as razões pelas quais, a partir da esquerda, temos
de recuperar a problemática geopolítica – que estava presente,
ainda que expressada com outra linguagem, no marxismo
clássico! – são por demais convincentes. Mas, a que se deve o
fato de a direita ter feito isso por conta própria e de a obra
de intelectuais orgânicos do império (Zbigniew Brzezinski e
Henry Kissinger, para nominar só dois de maior gravitação) e
dos acadêmicos do mainstream norte-americano recorrerem a
considerações geopolíticas em seus estudos e pesquisas cada
vez com mais com frequência? Trata-se de uma superficial e
efêmera moda intelectual, para substituir o já defunto
conceito de “globalização”, cuja morte foi anunciada
simultaneamente a seu advento, ou há algo mais?

Efetivamente, há algo mais. Não é um tema de modas
intelectuais ou escolásticas, e esta é a segunda questão que
queríamos colocar. A reflexão geopolítica no campo do
pensamento imperial é filha de uma dolorosa (para alguns)
comprovação: o império norte-americano superou seu zênite e
começou a percorrer o caminho de seu lento e irreversível
ocaso. Para os governantes e as classes dominantes dos Estados
Unidos, trata-se, portanto, de tomar os cuidados necessários
para evitar desenlaces inaceitáveis:

a) que o crepúsculo imperial precipite uma descontrolada
reação anárquica em cadeia no sistema internacional, onde um
bom número de Estados e uma quantidade desconhecida, mas
significativa, de atores privados dispõem de um arsenal
atômico capaz de eliminar na raiz toda forma de vida no
planeta;

b) que, produto da irreversível redistribuição do poder
mundial, a segurança nacional e o modo de vida dos Estados
Unidos possam ver-se irremediavelmente minados.

Essa é a razão de fundo pela qual os estrategistas militares
estadunidenses estão há mais de 10 anos se referindo
obliquamente ao tema e alertando, em seus cenários bélicos
prospectivos de longo prazo, que esse país deverá estar
preparado para guerras, nos mais diversos rincões do planeta,
durante os próximos 20 ou 30 anos. Doutrina da “guerra
infinita”, cujo objetivo não será acrescentar sua primazia
mundial mediante a incorporação de novas áreas de influência
ou controle, mas apenas preservar as já existentes, ou evitar
uma catastrófica derrubada dos parâmetros geopolíticos
globais.
Esses prognósticos tardaram mais de 10 anos para se
incorporarem às análises do mandarinato acadêmico e dos
publicistas do império, profundamente enquistados nos grandes
meios de comunicação. Porém, não mais. A teimosa realidade os
obrigou a falar do que até há pouco tempo era impensável,
quando uma camarilha de reacionários reunida no Projeto para o
Novo Século Americano, fundado por Dick Cheney em 1997, se
iludiu ao acreditar que o mundo que aparecia ante seus olhos
após a queda do muro de Berlim e a implosão da União Soviética
tinha chegado para ficar, para sempre, em uma típica
reiteração da incapacidade do pensamento burguês para
compreender a historicidade dos fenômenos sociais (2).

Foi uma ilusão infantil, assim julgou esse velho lobo do
império que é Zbigniew Brzezinski, que a realidade frustrou em
poucos anos. Os atentados de 11 de setembro derrubaram não só
as Torres Gêmeas, mas também as ilusões tranquilizadoras com
as quais se iludiam os “experts” do Projeto para o Novo Século
Americano. Não é por acaso que, em seu mais recente livro,
Brzezinski dedicou surpreendentes páginas introdutórias ao
tema da declinante longevidade dos impérios, e, ainda que não
o tenha dito explicitamente, está claro que, para ele, como
para muitos outros, os Estados Unidos são um império (3).

Claro que se trataria de um império de novo tipo, movido pelo
idealismo Wilsoniano, como assegura Henry Kissinger em seus
diversos escritos, idealismo que o levaria, segundo esta visão
autocomplacente, em um porta-estandarte das melhores causas da
humanidade: democracia, direitos humanos, liberdade,
pluralismo etc. Em uma palavra, o país a quem Deus confiou
supostamente a realização de um "destino manifesto" e em
virtude do qual se irradiariam os nobres valores e
instituições ao redor do planeta.

Um argumento muito semelhante foi formulado por Henry
Kissinger em um livro publicado em 1994 e traduzido para o
castelhano no ano seguinte: "Diplomacia". Nele, o
ex-secretário de Estado Richard Nixon advertia para a
precariedade dos sistemas internacionais, observando que "a
cada século diminui a duração dos sistemas internacionais. A
ordem que surgiu a partir da Paz de Vestefália durou 150 anos
... a do Congresso de Viena foi mantida por 100 anos ... a
Guerra Fria terminou, depois de 40 anos ", e conclui: "Nunca
antes os componentes da ordem global, a sua capacidade de
interagir e seus objetivos mudaram tão rapidamente ou tão
profundamente quanto globalmente” (4).

Dado este contexto, não surpreende a nota que dias atrás
publicou David Brooks no New York Times e que foi reproduzida
em Buenos Aires pelo La Nación e, certamente, em outros
diários da América Latina e Caribe. Brooks, um homem de clara
persuasão conservadora, cita em sua nota a opinião de Charles
Hill, um dos maiores peritos do Departamento do Estado, não
mais no cargo, que disse textualmente: “A grande lição
ensinada pela história da alta estratégia é que, quando um
sistema internacional estabelecido entra em fase de
deterioração, muitos líderes atuam com indolência e
despreocupação, felicitando-se a si mesmos. Quando os lobos do
mundo cheiram isso, supostamente começam a se mover para
sondar as ambiguidades do sistema que envelhece e assim
arrebatam as partes mais preciosas”.

Brooks reflete, desconfortavelmente, a literatura que cada vez
com maior frequência examina o processo de declínio imperial,
essa "fase de deterioração" à qual aludiu Hill, embora nem
todos os autores se atrevam a abandonar os eufemismos
tranquilizadores. A última edição da revista Foreign Affairs,
órgão conservador do establishment diplomático dos EUA,
apresenta um par de artigos de dois dos principais
especialistas em análises das relações internacionais e que,
para além de suas diferenças, concordam com o fato de que "a
geopolítica está de volta". [5]

E, se está, é precisamente porque a correlação de forças que
se cristalizou no plano internacional depois da Segunda Guerra
Mundial e, sobretudo, as fantasias que anunciavam o advento de
um "novo século americano" entraram em colapso.

Exemplos: Os Estados Unidos são derrotados irrecorrivelmente
(29 a 3) em uma votação na OEA que pretendia decretar a
intervenção desse organismo na crise que afeta a República
Bolivariana da Venezuela; assistem impotentes à reincorporação
da Criméia à Rússia, embora, em uma atitude incomum e
provocativa, sua Secretária de Estado para Assuntos
Euroasiáticos, Victoria Nuland, estivesse na Plaza Maidan em
Kiev, distribuindo biscoitos e bolachas para gangues
neonazistas, que então tomariam de assalto os edifícios
governamentais e constituiriam um novo governo, rapidamente
reconhecido pelas corruptas e decrépitas democracias
capitalistas; e suas bravatas e ameaças contra a Síria ruíram
como um castelo de cartas, enquanto a Rússia - e de maneira
mais cautelosa, a China – fizeram saber a Washington que não
ficariam de braços cruzados se a Casa Branca lançasse uma nova
aventura militar no região.

Mudanças inesperadas, muito profundas e ocorridas em tempo
muito curto, que nos obrigam a refletir sobre - e a atuar em -
uma transição geopolítica mundial que dificilmente pode ser
realizada de forma pacífica. Se olharmos para as lições da
história, todas as transições geopolíticas anteriores foram
violentas. Nada permite supor que hoje a história será mais
benigna para os nossos contemporâneos, especialmente se
reparada a desproporção fenomenal de recursos militares que
são retidos pelo centro imperial, comparativamente a todos os
outros países do planeta

Notas:
(1) Mackinder ( 1861-1947 ) argumentou que o planeta é uma
"Ilha Mundo ", que é onde a maior riqueza natural está
concentrada e que é formado pela grande massa euroasiática e
africana. No interior deste enorme espaço, recorta-se, de
acordo com este autor, um território que se estende do Volga,
a leste, até o rio Yangtze, na China, e do Himalaia ao Oceano
Ártico e a Sibéria. Quem controla este território, sustenta
Mackinder, controla a Ilha Mundial, e quem exerce esse
controle pode estender-se a todo mundo. Tempos depois, o
geopolítico americano Nicholas Spykman (1893-1943) reelaborou
as concepções de Mackinder e destacou a importância das terras
e mares do anel em torno do pivô central. Se o cerco for bem
sucedido, diz Spykman, a potência vencedora dominará a
Eurásia, e quem controla a Eurásia governará os destinos do
mundo. Zbigniew Brzezinski é o maior seguidor desta tradição
que atribui ao eixo central da massa eurasiana um papel
crucial no domínio do planeta. A obsessão por cercar este
território com todos os tipos de alianças político-militares
alimentou a política externa dos Estados Unidos desde o
triunfo da Revolução Russa, em 1917, até os dias atuais, como
provam os mapas usados ​​por Brzezinski em sua referida obra.

(2) Lembre-se que Cheney se tornaria, sob a presidência de
George W. Bush, o vice-presidente dos Estados Unidos durante
seus dois mandatos e um dos personagens mais influentes no
processo decisório da Casa Branca, algo incomum, se se recorda
o caráter eminentemente protocolar, quase cerimonial, dos
vice-presidentes da república imperial americana

(3) Pode-se consultar essa questão da declinante longevidade
dos impérios em Zbigniew Brzezinski, Strategic Vision.America
and the Crisis of Global Power (New York: Basic Books, 2012),
pp. 21-26.

(4) Henry Kissinger, La Diplomacia (México: Fondo de Cultura
Económica, 1995), p. 803.

(5) Ver John Ikenberry, “The Illusion of Geopolitics. The
Enduring Power of the Liberal Order” e Walter Russell Mead,
“The Return of Geopolitics. The Revenge of the Revisionist
Powers”, ambos en Foreign Affairs, Mayo-Junio de 2014.
http://www.atilioboron.com.ar/2014/05/el-retorno-de-la-geopolitica-y-sus_2.html

Atilio A. Boron, Diretor do PLED, Programa Latino-americano de
Educação à Distância em Ciências Sociais, Argentina.

In:
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9596:submanchete090514&catid=72:imagens-rolantes
10/5/2014

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