sábado, 16 de agosto de 2014

Tiananmen 20 anos depois. O fracasso da primeira “revolução colorida”


Os Editores

Há umas semanas, a imprensa dominante assinalava novamente o aniversário daquilo
a que chama agora a revolta de Tiananmen. A propaganda atlantista impôs a imagem
de um ‘levantamento popular’ afogado em sangue pela ‘ditadura comunista’. Aquela
que estava destinada a ser a primeira “revolução colorida” da História acabou em
fracasso.


Nestes últimos dias, a grande imprensa de “informação” empenhou-se em recordar o
vigésimo aniversário do “massacre” da praça Tiananmen. As alusões “emocionadas”
àqueles acontecimentos, as entrevistas com os “dissidentes”, os editoriais
“indignados”, assim como os múltiplos artigos que se sucedem e se encontram em
preparação procuram cobrir de perpétua infâmia a República Popular da China e
render solene homenagem à superior civilização do Ocidente liberal.
Mas, o que aconteceu realmente há 20 anos?
Em 2001, foram publicados e posteriormente traduzidos nas principais línguas do
mundo os assim chamados Tiananmen Papers [1] que, segundo as declarações dos
seus curadores, reproduzem relatórios secretos e reservados do processo de
tomada de decisão que resultou na repressão do movimento de contestação. É um
livro que, sempre de acordo com as intenções dos curadores e dos editores,
deveria mostrar a extrema brutalidade de uma direção (comunista) que não hesita
em submergir num banho de sangue um protesto “pacífico”. No entanto, uma leitura
atenta do livro em questão acaba por fazer surgir um quadro bem diferente da
tragédia consumada em Pequim entre maio e junho de 1989.
Vejamos algumas páginas:
“Mais de 500 camiões do exército foram incendiados simultaneamente em dezenas de
cruzamentos […] Na avenida Chang’na, um camião do exército parou devido a um
problema no motor e duzentos revoltosos assaltaram o condutor golpeando-o
mortalmente […] No cruzamento Cuiwei, um camião que transportava seis soldados
abrandou para evitar atingir a multidão. Um grupo de manifestantes começou então
a lançar pedras, cocktails molotov e tochas contra o camião, que em pouco tempo
tombou sobre o lado esquerdo porque um dos dois pneus tinha sido furado pelos
pregos que os revoltosos tinham espalhado. Então, os manifestantes pegaram fogo
a diversos objetos que lançaram contra o veículo fazendo explodir o depósito do
combustível. Todos os seis soldados morreram no meio das chamas” [2].
Os manifestantes não só recorreram à violência, como também utilizaram armas
surpreendentes:
“Levantou-se subitamente um fumo verde amarelado no extremo da ponte. Provinha
de um blindado avariado que provocava agora o bloqueamento da rua […] Os
blindados e tanques que tinham acudido para desimpedir a via não puderam evitar
o engarrafamento na cabeça da ponte. De repente, chegou um jovem que lançou algo
sobre um dos blindados e fugiu. Em questão de segundos, saiu do veículo o mesmo
fumo verde amarelado enquanto os soldados se arrastavam para fora, deitando-se
no chão agarrados à garganta e agonizantes. Alguém disse que tinham inalado gás
tóxico. Mas, os oficiais e os soldados, apesar da raiva sentida, conseguiram
manter o autocontrolo.” [3]
Estes atos de guerra, com repetido recurso a armas proibidas pelas convenções
internacionais, combinam-se com iniciativas que dão ainda mais que pensar, como
a “contrafação da primeira página do Diário do Povo”. [4]
Vejamos agora, do outro lado, as diretivas dirigidas pelos dirigentes do Partido
Comunista e do governo chinês às forças militares encarregadas da repressão:
“Se chegar a acontecer que as tropas sofram pancadas e maus tratos até à morte
por parte das massas obscurantistas, ou se forem atacadas por elementos fora da
lei com barras, pedras ou cocktails molotov, [as tropas] devem manter o controlo
e defender-se sem usar armas. As suas armas de autodefesa serão os bastões e as
tropas não devem abrir fogo contra as massas. As transgressões serão
imediatamente punidas” [5].
Se é verdadeiro o quadro traçado por este livro publicado e promovido no
Ocidente, quem dá provas de prudência e moderação não são os manifestantes, mas
o Exército Popular de Libertação.
Nos dias seguintes, torna-se mais evidente o caráter armado da revolta. Um
dirigente de primeiríssimo plano do Partido Comunista chama a atenção para um
facto particularmente alarmante: “Os revoltosos capturaram alguns blindados e
montaram metralhadoras com o objetivo de se exibir”. Limitar-se-ão à exibição de
ameaças? E contudo as disposições fornecidas ao exército não mudaram
substancialmente: “O comando da Lei Marcial quer tornar claro a todas as
unidades que só em última instância é necessário abrir fogo”. [6]
O próprio episódio do jovem manifestante que bloqueia com o corpo um carro
armado, celebrado no Ocidente como símbolo do heroísmo não-violento em luta
contra uma violência cega e indiscriminada, é visto pelos dirigentes numa
perspetiva muito diferente e oposta, também segundo o citado livro:
“Todos vimos as imagens do jovem que bloqueia o carro armado. O nosso carro
armado cedeu o passo várias vezes, mas ele punha-se sempre ali no meio da
estrada e inclusivamente quando tentou subir para o tanque os soldados
contiveram-se e não dispararam. Isto é muito significativo! Se os militares
tivessem feito fogo, as repercussões teriam sido muito diferentes. Os nossos
soldados seguiram à perfeição as ordens do Partido. É espantoso como conseguiram
manter a calma numa situação como aquela!” [7]
O recurso por parte dos manifestantes a gás asfixiante ou venenoso e sobretudo a
edição pirata do “Diário do Povo” demonstram claramente que os incidentes da
praça Tiananmen não são uma questão exclusivamente interna da China. Outros
pormenores significativos emergem do livro celebrado no Ocidente: “A [rádio
governamental americana] “Voice of America” teve um papel bastante inglório com
a sua maneira de deitar lenha para o fogo”, não parando de “difundir notícias
infundadas e instigando às desordens”. E não é tudo: “Da América, da
Grã-Bretanha e de Hong Kong chegaram mais de um milhão de dólares hong-kong.
Parte dos fundos foi utilizada para a compra de tendas de campanha, alimentos,
computadores, impressoras rápidas e material sofisticado de comunicações” [8].
O que o Ocidente e sobretudo os EUA pretendiam pode ser deduzido de um outro
livro, escrito por dois autores americanos ferozmente anticomunistas. Estes
autores recordam que naquela época Winston Lord, ex-embaixador em Pequim e
conselheiro de primeiro plano do futuro presidente Clinton, não se cansava de
repetir que a queda do regime comunista na China era “uma questão de semanas ou
meses”. Tanto mais fundada parecia esta previsão quanto no vértice do governo e
do Partido se destacava a figura de Zhao Ziyang, o qual, segundo os dois citados
autores americanos, era de considerar “provavelmente o dirigente chinês mais
filo-americano da história recente” [9].
Recentemente, falando para o “Financial Times”, Bao Tong, o ex-secretário de
Zhao Ziyang e atualmente sob prisão domiciliária em Pequim, parece lamentar o
fracassado golpe de estado ao qual aspiravam em 1989 personalidades e círculos
importantes na China e nos EUA, enquanto o “socialismo real” se desmoronava:
“Nem um soldado prestou atenção a Zhao”, os soldados “seguiam os seus oficiais,
os oficiais seguiam os seus generais e os generais seguiam Deng Xiaoping” [10].
Vistos em retrospetiva, os incidentes da praça Tiananmen de há vinte anos
apresentam-se como uma tentativa falhada de golpe de estado e instauração de um
império mundial para desafiar os séculos…
Dentro em pouco, outro vigésimo aniversário vai ter lugar. Em dezembro de 1989,
sem sequer terem sido precedidos por uma declaração de guerra, bombardeiros
americanos descarregavam fogo sobre o Panamá e a sua capital. Conforme demonstra
o trabalho de reconstituição uma vez mais de um autor americano, bairros
densamente povoados foram surpreendidos de noite pelas bombas e incêndios,
perdendo a vida em grande parte “civis, pobres e de pele escura”. Pelo menos 15
mil pessoas ficaram sem teto. De facto, trata-se do “episódio mais sangrento” na
história do pequeno país. [11] É fácil prever que os jornais que tanto empenho
põem em chorar pela praça Tiananmen passaram por cima do aniversário do Panamá,
como de resto tem acontecido todos estes anos. Os grandes órgãos de “informação”
são grandes órgãos de seleção da informação e de orientação e controlo da
memória.1 de Junho de 2009Referências bibliográficasJamil Anderlini 2009
«Tanks were roaring and bullets flying», in «Financial Times», p. 3 («Life and
Arts») Richard Bernstein, Ross H. Munro 1997
The Coming Conflict with China, Knopf, New YorkKevin Buckley 1991
Panama. The Whole Story, Simon & Schuster, New YorkAndrew J. Nathan, Perry Link
(eds.) 2001
The Tiananmen Papers (2001), tr. it., di Michela Benuzzi et alii, Tienanmen,
Rizzoli, MilanoNotas
[1] “The Tiananmen Papers”, documentos apresentados por Andrew J. Nathan, Perry
Link, Orville Schell e Liang Zhang, PublicAffairs, 2000, 513 pp. Publicado em
francês com o título “Les Archives de Tiananmen”, apresentado por Liang Zhang,
éditions du Félin, 2004, 652 pp. [Nota da versão espanhola]
[2] Op. cit., p. 444-45.
[3] Op. cit., p. 435.
[4] Op. cit., p. 324.
[5] Op. cit., p. 293.
[6] Op. cit., p. 428-29.
[7] Op. cit., p.486.
[8] Op. cit., p. 391.
[9] “The coming Conflict with China”, por Richard Bernstein e Ross H. Munro,
Atlantic Books, 1997 (245 pp.), p. 95 e 39.
[10] «Tea with the FT: Bao Tong», por Jamil Anderlini, in Financial Times, 29 de
maio de 2009.
[11] “Panama. The Whole Story”, por Kevin Buckley, Simon & Schuster, 1991 (304
pp.).Tradução: Jorge Vasconcelos (a partir da versão original publicada em
http://www.domenicolosurdoblogtienanmen.blogspot.pt/2009/06/tienanmen-20-anni-dopo.html
complementada pela versão espanhola publicada por Red Voltaire em
http://www.voltairenet.org/article184950.html) Imprimir

In
O Diário.info
http://www.odiario.info/?p=3371
16/8/2014

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