terça-feira, 28 de outubro de 2014

Metástase da corrupção e eleição da hipocrisia




por Correio da Cidadania [*]

Na ausência de diferenças substanciais, o debate do 2º turno das eleições
presidenciais tem sido dominado pelo esforço mútuo de desconstruir a
idoneidade do adversário. As acusações recíprocas de malversação de
dinheiro público e de aparelhamento do Estado não têm fim. A cada ataque
corresponde um contra-ataque. O "mensalão" petista é rebatido com o
"mensalão" tucano. O "propinoduto" da Petrobrás, com o generoso "trem da
alegria" da Alstom. É cara e coroa.

Os candidatos defendem-se de maneira conhecida. Negam peremptoriamente
qualquer malfeito e juram ir até as últimas consequências para apurar os
fatos, definir as responsabilidades e punir os culpados, doe a quem doer.
Até as pedras sabem que nada será feito. Os denunciados são homens-bomba.
Se abrirem a boca, a casa cai.

O próprio conteúdo do debate revela a cumplicidade dos candidatos com o
sistema da corrupção. Ao personalizar e particularizar os escândalos,
associando-os a desvios de conduta individuais, lacunas na legislação e
falhas nos procedimentos de fiscalização, o discurso sugere que a pilhagem
do Estado decorre de problemas que poderiam ser corrigidas caso houvesse
vontade política. Enquanto falam, Dilma e Aécio sabem que mentem. Não
existe um chefe político brasileiro que não tenha à sua sombra a figura
sinistra e misteriosa do "operador" responsável pelas finanças da
campanha. Nas altas esferas do poder, o homem do dinheiro é conhecido e
goza de grande prestígio entre os pares.

Travestida de guardiã dos interesses gerais da população e defensora da
moralidade, a mídia é parte orgânica do sistema de corrupção. Sem um
sistema venal e degradado de formação da opinião pública não haveria
corrupção generalizada como modo de funcionamento do sistema político,
pois não haveria como circular (ou deixar de circular), no momento
conveniente, as denúncias, dossiês, intrigas, insinuações, ameaças e
chantagens que constituem a munição pesada da guerra entre as camarilhas
que disputam o poder do Estado.

A luz intensa lançada sobre os escândalos de corrupção não tem a
finalidade de elucidar o problema, mas, antes o contrário, objetiva
desviar a atenção para aspectos secundários e personagens de menor
relevância, a fim de ofuscar as relações que explicitam as engrenagens que
subordinam os homens de Estado à lógica dos grandes e pequenos negócios.
Ventríloqua de interesses escusos que permanecem sempre na penumbra, a
grande mídia manipula a opinião pública com informações parciais,
distorcidas e descontínuas, gerando uma visão apocalíptica e moralista do
problema. Ao reduzir as causas do assalto aos cofres públicos à fraqueza
de caráter, a corrupção é naturalizada. A imprensa marrom – quase a
totalidade de nossa imprensa – esbalda-se e transforma a indústria da
chantagem num grande negócio. "Se ninguém tem compostura, então, nos
locupletamos todos" – uma moral que calha bem com a degeneração da res
pública.

Se houvesse realmente vontade política de enfrentar a corrupção, seria
preciso mostrar à população seu caráter sistêmico e desnudar os interesses
de classe que lhe dão sustentação. Para tanto, bastaria não desperdiçar as
raras oportunidades abertas pelos homens bombas que quebram o pacto de
silêncio e expor à população a fisiologia que rege o aparelho digestivo do
sistema político brasileiro.

A propósito, os depoimentos recentes do ex-diretor de Abastecimento da
Petrobras, Paulo Roberto Costa, e do doleiro Alberto Youssef são pérolas
que deveriam ser bem aproveitadas. Seus testemunhos ao Ministério Público
expõem com requintes de detalhes como funcionava e quem comandava o
esquema de desvio de recursos na Petrobras. As primeiras lições são
reveladoras:


a) A corrupção é um sistema que aprisiona os partidos políticos da
burguesia e os aparelhos de Estado aos interesses do grande capital. Por
trás da quadrilha que se apoderou de cinco diretorias da Petrobras,
encontram-se os partidos da base de sustentação do governo federal e treze
grandes empresas, entre as quais as principais empreiteiras do país – OAS,
Andrade Gutierrez, Mendes Júnior e Camargo Correia;

b) O centro nervoso que comanda as grandes negociatas encontra-se no
controle do Legislativo pelo poder econômico e no controle do Executivo
pelo Legislativo. Ainda no começo do governo Lula, em 2004, uma greve
parlamentar de noventa dias forçou o presidente a nomear Paulo Roberto
Costa, com mandato meticulosamente definido para arrecadar recursos para
os partidos da base. É a prova dos nove de que a chamada "governabilidade"
requer necessariamente conivência e cumplicidade incondicionais com a
corrupção;

c) A corrupção é um sistema que envolve todos os partidos da ordem, mesmo
os da oposição. A propina paga a altos cardeais do PSDB para que
colaborassem na operação abafa da CPI da Petrobrás no Senado Federal deixa
patente que ninguém escapa aos tentáculos da corrupção. A guerra de
acusações recíprocas é uma farsa. No jogo do toma lá dá cá, a arte da
política transforma-se na arte da malandragem e da impostura.

O debate eleitoral da corrupção não pode ser levado às últimas consequências
porque a população não pode saber que a corrupção é um pressuposto do
sistema representativo. Pois a promiscuidade entre o público e o privado –
seu determinante histórico – é uma das pedras angulares da organização do
Estado brasileiro.


20/Outubro/2014

[*] Jornal online publicado em S. Paulo. Este editorial, anterior às
eleições presidenciais de 27/Outubro, é agora transcrito por manter a sua
plena validade.

www.correiocidadania.com.br/...

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