sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O sexto turno eleitoral


por Mauro Iasi [*]

"Os presidentes são eleitos pela televisão, como sabonetes, e os
poetas cumprem função decorativa. Não há maior magia que a magia do
mercado, nem heróis maiores que os banqueiros. A democracia é um
luxo do Norte. Ao Sul é permitido o espetáculo".
Eduardo Galeano, O livro dos abraços

Uma vez mais o jogo previsível encontra seu desfecho esperado.
Circunscrita pelo poder econômico e midiático, as candidaturas da ordem se
encontrarão, mais uma vez, em um segundo turno. Um dos elementos de
garantia da ordem pode ser encontrado nos mecanismos de segurança que
limita as alternativas e depois as apresenta como liberdade de escolha.

No campo político isso foi descrito por Gramsci como "americanismo" e se
expressa classicamente na alternância entre um Partido Democrático e outro
Republicano nos EUA, num jogo de imagens no qual nem um é democrático, nem
o outro é de fato republicano. Ao sul do equador tal fenômeno pode ser
visto historicamente na suposta alternância entre liberais e
conservadores, na maldição já descrita na expressão "nada mais conservador
que um liberal no poder", ou na famosa ironia de que no ato de posse o
programa conservador é transferido para o partido de oposição, que entrega
o programa liberal para quem sai do governo.

Carlos Nelson Coutinho costumava chamar a versão brasileira desta
"democracia" de americanalhamento. A expressão parece pertinente.

A instituição do segundo turno no Brasil tem servido a este propósito. No
sistema norte americano todo mundo pode ser candidato, mas os filtros vão
se dando nas eleições dos convencionais (que de fato elegem o presidente
numa eleição indireta e absurdamente antidemocrática), até que só chegam à
disputa de fato os dois partidos oficiais citados. No Brasil não é
necessário tal engenharia política. Os filtros de segurança começam pelas
clausulas de barreira que impedem a organização partidária, depois a
legislação eleitoral absolutamente desigual e inconstitucional (mas isso
nunca foi problema em nosso país segundo o TSE), passa pelo financiamento
privado de campanha e chega na cobertura desigual da imprensa monopólica.

Não podemos esquecer o mecanismo que decide o voto antes da eleição pelo
controle dos cofres públicos, dos governos estaduais, prefeituras e cabos
eleitorais numa verdadeira chantagem de verbas, financiamentos e
facilidades que controlam regiões inteiras sem a necessidade de uma único
debate de programas ou ideias.

Como diz Galeano no texto que nos serve de epígrafe, a democracia é um
luxo reservado ao Norte, ao Sul cabe o espetáculo que não é negado a
ninguém, afinal, diz o autor uruguaio, "ninguém se incomoda muito, que a
política seja democrática, desde que a economia não o seja". Quando as
urnas se fecham, prevalece a lei do mais forte, a lei do dinheiro.

Mas, é essencial ao espetáculo que você sinta a sensação de estar
decidindo. É neste campo que se inscreve o chamado voto útil.

A máquina eleitoral burguesa não pode impedir movimentos de opinião, que
se expressam no primeiro turno e, mesmo, no segundo. É perfeitamente
compreensível que muitas pessoas pensem na lógica do mal menor, numa
análise comparativa entre as alternativas que restaram. Como sempre há
diferenças entre elas, convencionou-se que a esquerda deve votar no mais
progressista e evitar o risco da direita.

Analisemos mais detidamente as alternativas que o poder econômico, a
legislação restritiva e os meios de comunicação monopolizados
selecionaram.

De um lado Aécio Neves do PSDB, legenda conhecida pelos mandatos de FHC e
do próprio político mineiro em seu estado, assim como a longa dinastia
paulista. Neste caso não há dúvida sobre seu programa conservador, seu
compromisso com o mercado e os grandes grupos monopolistas, sua lógica
privatista e sua subserviência ao imperialismo. Trata-se de uma legenda
que nada tem de social democrata e tornou-se o centro aglutinador da
direita representada na aliança com o DEM, o PPS e outras que compuseram
sua base de governabilidade quando no governo, como o sempre presente
PMDB, PTB e outros.

De outro, o PT, partido que tem sua origem nos movimentos sociais e
sindicais dos anos 1970 e 1980, e que chegou à presidência em 2002 com a
eleição de Lula para aderir ao pacto e ao presidencialismo de coalizão
tornando-se o centro de um bloco do qual participam o PCdoB e o PSB,
garantindo sua governabilidade com o PMDB, o PTB, PP, PSC, e outras siglas
no mercado do fisiologismo político próprio do americanalhamento citado.
Difere do PSDB na medida em que defende uma maior presença do Estado para
garantir a economia de mercado, sustentando seu pacto de classes através
de medidas de cooptação e apassivamento, tais como a garantia do nível de
emprego e políticas sociais focalizadas e compensatórias de combate aos
efeitos mais agudos da miséria absoluta.

A mera comparação justifica a tendência do voto em Dilma de grande parte
dos que temem um governo do PSDB como expressão mais clara da política
conservadora.

Coloquemos, entretanto, as coisas numa perspectiva histórica. Este não é
um mero segundo turno, é o sexto turno. É a terceira vez que tal situação
se apresenta. Nas duas primeiras, em 2006 e 2010, o PCB, por exemplo,
indicou o voto crítico no candidato do PT, ou priorizou o combate à
direita no momento eleitoral, ainda que sempre se mantendo na oposição.
Não seria o caso agora?

Lembremos quais os discursos que acompanharam este processo. Quando da
passagem para o segundo mandato do Lula o discurso é que o primeiro
mandato havia sido para acertar a casa, mas agora viria uma guinada em
favor das demandas populares, o governo Lula estaria em disputa. Quando da
passagem para o mandato de Dilma o discurso é que, agora viria a guinada
na forma de uma opção pelo mítico "neodesenvolvimentismo".

No entanto, o que vimos nas duas oportunidades não foi uma reversão do
rumo do pacto social e das medidas conservadoras, pelo contrário. O fato é
que cada governo subsequente foi sendo mais à direita que o anterior. Os
governos eleitos para "evitar a volta da direita", a perda de direitos
para os trabalhadores, o aprofundamento das privatizações, a
criminalização dos movimentos sociais, o abandono da reforma agrária,
acabaram por impor um crescimento das privatizações, uma precarização do
trabalho, o ataque aos direitos dos trabalhadores (eufemisticamente
chamado de "flexibilização") e o aprofundamento da criminalização dos
movimentos sociais. Reforma da previdência, privatização do campo de
Libra, imposição da EBSERH, rendição do Plano Nacional de Educação à
lógica dos empresários e do sistema S, prioridade para o agronegócio, a
farra da Copa, as remoções, o aumento da violência urbana e a política
genocida das polícias militares contra a população jovem, pobre e negra, a
não demarcação das terras indígenas, as concessões ao fundamentalismo
religioso que impede a legalização do aborto, a criminalização da
homofobia…

Talvez a área mais emblemática seja a luta pela terra. Não apenas reduz-se
a cada mandato o número de famílias assentadas, como cada vez mais
assentamentos são abandonados à sua própria sorte, e os pequenos
produtores considerados "economicamente irrelevantes" (nas palavras de um
representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário em resposta às
demandas do MPA). Ao mesmo tempo dirige-se toda a política agrária para a
prioridade ao agronegócio, tornando aliado central na governabilidade e na
direção da política econômica, como mostram os apoios, ainda no primeiro
turno, de Kátia Abreu e Eraí Maggi (o rei da soja).

Algo estranho ocorre por aqui. Primeiro, trata-se de fazer reformas
possíveis no lugar da revolução necessária. Para tanto, um pacto social
que leva o governo, que deveria ser reformista de esquerda, para um perfil
de centro-esquerda – ou nos termos de André Singer, de um reformismo de
alta intensidade apoiado na classe trabalhadora para um reformismo de
baixa intensidade apoiado nas camadas mais pobres. Em seguida trata-se de
tomar medidas de um governo de centro-direita para enfrentar a crise do
capital com massivas doses de apoio ao capital por parte do Estado para
garantir a manutenção de um crescimento com emprego e geração de renda. E
agora uma clara composição de direita apoiada nos grandes bancos, nos
setores monopolistas, nas empreiteiras, no agronegócio, numa situação
parlamentar ainda mais conservadora que empurrará qualquer governo eleito
para posição ainda mais conservadoras para realizar os "ajustes
necessários" para enfrentar a crise que já se apresenta no horizonte.

O que é forçoso constatar é que a política do acumulo de forças não
acumulou forças. Pelo contrario, desarmou a classe trabalhadora e abriu
espaço para o crescimento da direita. O que era uma estratégia para evitar
a direita pode ter se tornado o caminho pelo qual pôde se garantir sua
"volta". De fato, ela nunca teve seus interesses ameaçados – porque nos
referimos a interesses de classe e não das legendas políticas que
representam seguimentos e facções das classes dominantes. A classe
dominante apoia as duas alternativas, fato que fica evidente na
distribuição dos financiamentos de campanha.

O tão falado crescimento da direita, ou a "onda conservadora", não se dá
por acidente, mas é o resultado previsível dos governos de pacto social e
da profunda despolitização que resulta de doze anos de governos petistas.
Como disse Ruy Braga em artigo recente, que a burguesia e a classe média
sejam conservadoras é perfeitamente compreensível, mas o que precisa ser
explicado é porque o conservadorismo tomou a consciência de setores da
classe trabalhadora. A candidata do PT perdeu no ABC paulista, somando os
votos de Aécio e Marina, perdeu em São Paulo, Rio, Minas e Rio Grande do
Sul.

Parte da classe trabalhadora, equivocadamente, aposta em candidaturas
conservadoras que são contra seus interesses de classe. Veja, ao invés de
infantilmente culpar a esquerda, os governistas deviam se perguntar por
que isso ocorreu. Parte da classe quer o fim do ciclo do PT e não há
discurso da esquerda que possa convencer este segmento que o governo atual
é que o representa, pelo simples fato que a sequência de medidas que
descrevemos indicam claramente outra coisa.

O que está acontecendo é que os meios de apassivamento e cooptação são
insuficientes para continuar mantendo o governo do PT com a aparência de
esquerda enquanto opera uma política de direita. Mantêm-se o nível de
emprego, mas os precariza, garante acesso ao crédito para manter o
consumo, mas gera endividamento das famílias, garante acesso precário às
universidades privadas ou através de uma expansão que não garante a
permanência e a qualidade necessária no setor público, tira-se as pessoas
da miséria absoluta para colocá-las na miséria.

A explosão do ano passado foi didaticamente um alerta, mas as forças
políticas, governistas ou de oposição no campo da ordem, literalmente
ignoraram as demandas que ali surgiram. Nenhuma demanda foi considerada,
desde a questão do transporte urbano, os gastos do Estado priorizando as
empreiteiras e bancos e não educação e saúde, a violência policial e os
limites da democracia de representação. Silencio total.

A esquerda – aquela que resistiu a este caminho suicida, foi
estigmatizada, atacada, criminalizada e excluída do centro do jogo
político – no seu conjunto não chegou aos 2% dos votos, e mesmo o voto
nulo e a abstenção ficaram nos níveis históricos das últimas eleições. Não
pode, portanto ser culpabilizada por uma eventual derrota do PT. A
insatisfação de 2013 se apresenta nas eleições como caldo de cultura da
necessidade de uma mudança e é atraída pelo canto da sereia da direita que
numa eventual vitória governará com a mesma base de sustentação do governo
atual.

Alguns afirmam que o que há de diverso agora é que o PT terá que vencer o
PSDB enfrentando-o pela esquerda. Não é o que parece, nem o que o cenário
político anuncia com a composição do novo Congresso Nacional. Ao que
parece, Dilma investe em se apresentar como ainda mais confiável ao grande
capital e seus atuais aliados prioritários, ignorando solenemente as
demandas populares para recompor seu governo à esquerda. Respondam
rapidamente: quantas vezes, nos últimos debates, a presidente tocou no
tema da Reforma Agrária?

Mais uma vez, compreendo e respeito aqueles que votarão em Dilma para
evitar o governo do PSDB. Apenas preocupa-me que pouco se analisa do que
consiste o conteúdo desta suposta alternativa. Talvez algumas perguntas,
na linha da nota do PCB, ajudem na reflexão:

O eventual segundo mandato de Dilma reverterá a prioridade do
agronegócio e avançará na linha de uma reforma agrária popular tal como
proposta pelo MST e uma política agrícola que considere os interesses
dos pequenos camponeses como preconiza o documento do MPA?

Romperá com a política de superávits primários, de responsabilidade
fiscal e de reforma do Estado que tem imposto a prioridade ao pagamento
da dívida que consome cerca de 42% do orçamento?

Demarcará as terras indígenas se chocando com os interesses do
agronegócio e dos madeireiros?

Romperá com a dependência em relação à bancada evangélica avançando nas
questões relativas ao aborto, ao combate à homofobia e a política
retrograda de combate às drogas?

Alterará o rumo da política de segurança fincada no tripé: endurecimento
penal, repressão e encarceramento?

Vai administrar a crise do capital revertendo a tendência à precarização
das condições de trabalho e ataque aos direitos dos trabalhadores?

Vai mudar a lógica de criminalização dos movimentos sociais na linha da
Portaria Normativa do Ministério da Defesa que iguala manifestante a
membro de quadrilha e traficante, ou estenderá o fundamento desta
política de garantia da Lei e da Ordem na forma de uma Lei de Segurança
Nacional que torna permanente a presença das Forças Armadas como
instrumento de garantia da ordem?

Vai alterar a linha geral do Plano Nacional de Educação que
institucionaliza a transferência do recurso público para educação
privada, se entrega à concepção empresarial de ONGs e outras
instituições empresariais e adia por vinte anos a meta dos 10% para
educação?

Vai fazer uma reforma política nos termos indicados pelo plebiscito que
reuniu 7 milhões de assinaturas, ou aplicará o acordo com o PMDB que
produziu um texto conservador e ainda mais concentrador de poder nas
atuais siglas do Congresso Nacional tornando mais eficiente o
presidencialismo de coalizão?
Nós que podemos interferir pouco no resultado eleitoral só podemos alertar
que quem votar em Dilma não estará apenas evitando a vitória de uma opção
mais conservadora – objetivo louvável – mas, também, referendando os atos
que vierem a ser aplicados. O próximo governo Dilma, se ganhar, não
responderá positivamente, na perspectiva da classe trabalhadora, a nenhuma
destas nove questões. Por isso o PCB não pode empenhar seu apoio, mais uma
vez, nem que seja crítico, pois os governos petistas já responderam a
estas questões com doze anos de governo.

E se perder? Neste cenário, que não depende de nós e nem pode ser
atribuído à esquerda, que não é desejável, mas possível, o PT teria que
voltar à oposição. Neste caso temos a dizer que aqui a situação está muito
difícil. A criminalização se intensifica, a polícia militar e as UPPs
matam pobre todo dia. O Estado Burguês se armou, graças aos últimos
governos, de todo um arcabouço jurídico e repressivo para nos combater, os
assentamentos da reforma agrária estão abandonados, os serviços públicos
foram direta ou indiretamente precarizados através de parcerias públicos
privadas, as Universidades estão sendo mercantilizadas e sucateadas, o
governo prefere negociar com sindicatos domesticados do que com as
organizações de classe, os meios de comunicação reinam incontestes e
impõem um real que nos torna invisíveis, reina o preconceito, a violência,
a homofobia e a transfobia, parte da classe trabalhadora vivencia uma
inflexão conservadora na sua consciência de classe e ataca o marxismo e o
pensamento de esquerda como seu inimigo, imperando a ofensiva irracional
da pós-modernidade que se revela cada vez mais fascista nos levando para a
barbárie.

Bom, mas isso vocês sabem, não é? Talvez só não saibam de onde veio este
retrocesso. Bom, procurem nos seis turnos, naquilo que foi anunciado e no
que foi posto em prática… é uma boa pista.

15/Outubro/2014
Ver também:

Nem Aécio nem Dilma

[*] Professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do
NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e
membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o
ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros
Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do
Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013),
organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo
mensalmente, às quartas.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
http://www.resistir.info/brasil/o_sexto_turno.html
17/Out/14

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