terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

“Todos os argumentos em favor da reforma da previdência visam sua privatização e fianceirização





Gabriel Brito e Valéria Nader



A pauta política do ano começa a esquentar e um dos principais
tópicos em discussão é a Reforma da Previdência, sempre
bombardeada pelos setores corporativos como deficitária – sob
benção do próprio governo. Para discutir mais esse tema
repleto de informações dadas pela metade, entrevistamos Denise
Gentil, economista e pesquisadora, que acabou de concluir sua
tese de doutorado sobre o que considera o falso déficit da
Previdência.



“A reforma é uma completa insensatez. O gasto com a política
social foi um dos esteios do crescimento econômico no período
2004-2010. Com a crise mundial e a queda dos preços das
commodities a partir de 2011, o gasto social se transformou
numa necessidade básica para dar sustentação à economia
interna, já que os investimentos privados, o consumo das
famílias e as exportações sofreram em quedas consecutivas”,
afirmou, em tom introdutório.



A seguir, Denise mostra em números como a seguridade social
brasileira tem contas sustentáveis, mas, como em qualquer
setor da economia, está colocada a serviço da manutenção das
margens de lucro do empresariado, o que obviamente se oculta
dos debates midiáticos.



“São todos argumentos de apoio à privatização, mais
precisamente, à financeirização de tudo que seja público.
Ocorre que essa é uma equação simplificadora da questão. Há
outras fontes de receita que não são computadas nesse cálculo,
como a COFINS, a CSLL e a receita de loterias. Quando todas as
receitas são computadas no cálculo do resultado financeiro da
Seguridade Social, obtém-se superávit de R$68 bilhões no ano
de 2013, R$ 36 bilhões em 2014 e R$16 bilhões em 2015”, expôs.



Além de desconstruir a argumentação “liberal-privatizante”,
como denomina a proposta, Denise Gentil propõe outros pontos
de vista em questões como idade mínima de aposentadora e a
própria noção de solidariedade da seguridade social, além de
defender fórmulas variadas para a aposentadoria dos
trabalhadores de diversas regiões e características do país.



A entrevista completa com Denise Gentil pode ser lida a
seguir.





Correio da Cidadania: Como enxerga a volta da proposta de
Reforma da Previdência neste início de ano, em meio a uma
grave crise econômica?



Denise Gentil: É uma completa insensatez. O gasto com a
política social foi um dos esteios do crescimento econômico no
período 2004-2010. Com a crise mundial e a queda dos preços
das commodities a partir de 2011, o gasto social se
transformou numa necessidade básica para dar sustentação à
economia interna, já que os investimentos privados, o consumo
das famílias e as exportações sofreram em quedas consecutivas.



O governo Dilma, no entanto, mudou completamente o rumo da
política macroeconômica e tem enfrentado muito mal a crise
externa. A economia brasileira tem sido desativada de seus
mecanismos de crescimento de forma programada. Houve redução
do crédito, queda brutal do investimento público, elevação da
taxa de juros, menor aporte de recurso para as estatais
(principalmente Petrobrás), redução inclusive do gasto social,
enfim, um pacote recessivo que reforça as consequências
nefastas da crise mundial.



Para culminar, o governo, na angústia de ser solícito e
atender às pressões do sistema financeiro, achando que, com
isso, vai se equilibrar minimamente no jogo de poder onde tem
perdido sistematicamente, lança como estratégia política a
Reforma da Previdência. Considero um suicídio político. O
governo atira contra sua base eleitoral correndo o risco de
perder apoio onde ainda lhe resta algum.



Correio da Cidadania: O que pensa dos argumentos dominantes em
favor dessa reforma previdenciária?



Denise Gentil: São todos argumentos de apoio à privatização,
mais precisamente, à financeirização de tudo que seja público.
O orçamento público se transformou num instrumento a serviço
dos interesses do sistema financeiro. Temos a mais elevada
taxa de juros do mundo e a dívida pública é o mecanismo mais
brutal de apropriação privada dos recursos públicos. Em lugar
nenhum há uma transferência tão violentamente explícita de
renda aos bancos, fundos de investimento e fundos de pensão
como no Brasil.



É um escândalo que nosso país tenha gasto R$501 bilhões com
juros no ano de 2015, justamente num ano em que o orçamento
público deveria estar a serviço da recuperação da economia.
São 8,5% do PIB destinados a uma classe de rentistas que
apenas acumula riqueza sem nada devolver à sociedade. Não
investe, consome pouco e remete renda ao exterior.



Mas os bancos não querem apenas os juros da dívida. Na área da
saúde, o sucateamento do SUS empurra as pessoas para os planos
de saúde privados ofertados também pelos bancos. Na área de
educação, o patrocínio do governo às empresas privadas é de
enorme generosidade. Agora, como se ainda não fosse o
suficiente, a base da proposta de Reforma da Previdência visa
dificultar o acesso a direitos sociais e comprimir o valor dos
benefícios. O governo alardeia que a previdência pública não
tem sustentação financeira. Usa a mídia para divulgar
amplamente essa idéia como se fosse uma verdade inabalável. O
resultado é que está empurrando as pessoas para os planos de
previdência privada complementar o que os bancos oferecem. É
mais do mesmo.



É um amplo processo orquestrado de privatização, que o governo
Dilma está levando adiante de forma muito mais radical. É
preciso entender a reforma da previdência não como uma
necessidade conjuntural de ajuste fiscal ou de enfrentamento
de uma trajetória demográfica, mas antes como um projeto do
mundo das finanças. O ajuste fiscal é apenas um pretexto para
justificar os interesses ocultos por trás desse grande acordo
entre Estado e o poder financeiro.



Correio da Cidadania: O que você comenta a respeito da ideia
do “déficit da previdência”, tão propalada pelos veículos de
comunicação?



Denise Gentil: Tenho defendido a ideia de que o cálculo do
déficit previdenciário não é correto, porque não está de
acordo com os preceitos da Constituição Federal de 1988, que
estabelece o arcabouço jurídico do sistema de seguridade
social. O cálculo do resultado previdenciário que tem sido
oficialmente divulgado pelo governo leva em consideração
apenas a receita de contribuição previdenciária ao INSS dos
empregados, empregadores e contribuintes individuais,
diminuindo dessa única fonte de receita o valor dos gastos com
benefícios previdenciários. O resultado dá em déficit.



Ocorre que essa é uma equação simplificadora da questão. Há
outras fontes de receita da Previdência que não são computadas
nesse cálculo, como a COFINS (Contribuição para o
Financiamento da Seguridade social), a CSLL (Contribuição
Social sobre o Lucro Líquido) e a receita de concursos de
prognósticos (loterias). O artigo 195 da Constituição Federal
assegura que essas receitas financiam a Previdência, a Saúde e
a Assistência Social, mas não são levadas em consideração.
Quando todas as receitas de contribuições sociais são
computadas no cálculo do resultado financeiro da Seguridade
Social, obtém-se superávit de R$68 bilhões no ano de 2013, R$
36 bilhões em 2014 e R$16 bilhões em 2015.



A pesquisa que realizei leva em conta todos os gastos com
benefícios, com pessoal e custeio dos ministérios (Saúde,
Assistência Social e Previdência). Essa informação favorável
não é repassada para a população, que fica com a noção de que
o sistema previdenciário brasileiro enfrenta uma crise de
grandes proporções e necessita de reforma urgentemente. O
cálculo é propositalmente feito para difundir um suposto
déficit e gerar o descrédito do sistema público de Previdência
para se conseguir a aprovação de reformas que reduzem
benefícios.



Essas ideias foram tão reiteradamente repetidas que o cidadão
comum, as pessoas do meio acadêmico, os homens de negócios e a
burocracia do governo passaram a incorporá-las como se fossem
verdades definitivas. A ANFIP faz estudos anuais, com elevado
grau de detalhamento, divulgando o resultado superavitário da
Seguridade Social há mais de vinte anos. Nunca vi uma matéria
na televisão que propagasse os estudos da ANFIP (Associação
Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal) que, aliás,
são de alto nível.



Há um outro ponto que gostaria de destacar. O governo Dilma
privilegiou desonerações tributárias em larga escala como um
dos eixos principais de estímulo ao crescimento e, em menor
escala, à recuperação da indústria, a despeito da conhecida
limitação desse instrumento para tal fim. A renúncia de
receitas em 2014 alcançou a cifra de R$253 bilhões ou 5% do
PIB, dos quais R$136 bilhões (2,6% do PIB) pertenciam à
Seguridade Social.



Em 2015, a desoneração total chegou a R$282 bilhões e
representou um valor maior do que a soma de tudo o que foi
gasto, em 2014, em Saúde (R$93 bilhões), Educação (R$93,9
bilhões), Assistência Social (R$71 bilhões), Transporte
(R$13,8 bilhões) e Ciência e Tecnologia (R$6,1 bilhões) pelo
governo federal. Em 2015, do total do valor das renúncias de
receitas tributárias, 55% pertenciam à Seguridade Social, isto
é, R$157,6 bilhões.



Não é aceitável que o governo conceda esse patamar
estratosférico de desonerações e agora proponha cortar gastos.
Não é minimamente razoável que o governo force o entendimento
de que faltam recursos para manter o sistema de proteção
social quando abre mão de montantes gigantescos de receita a
favor da margem de lucro das empresas.



Correio da Cidadania: O que pensa da proposta de idade mínima
pra aposentadoria? Qual fórmula te parece mais justa nesse
sentido?



Denise Gentil: Não sou favorável ao estabelecimento de uma
idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição.
Quem se aposenta nessas condições normalmente começou a
trabalhar muito cedo e, no caso dos que têm menor renda,
sacrifica seus estudos e sua escolaridade fica prejudicada.
Por isso tais pessoas ganham salários menores, têm saúde mais
precária e vivem menos. Estabelecer uma idade mais elevada
para a aposentadoria seria punitivo para os que começaram a
trabalhar muito cedo.



Normalmente, as pessoas que se aposentam por tempo de
contribuição formam dois tipos de grupo. Alguns acabam
voltando a trabalhar depois de aposentados e, portanto, voltam
a contribuir para o INSS; estes, não são um peso para o
orçamento da União, pelo contrário, gerarão mais arrecadação
do que será gasto com suas aposentadorias. Outros que se
aposentam mais cedo, por tempo de contribuição, o fazem
compulsoriamente, porque não conseguem manter seus empregos,
na maioria das vezes por defasagem entre os avanços
tecnológicos e sua formação ultrapassada, ou por problemas de
saúde devido ao aparecimento de doenças crônicas que certos
ofícios normalmente ocasionam, ou ainda por desemprego causado
por períodos recessivos. Estes aposentados já são punidos (com
redução do valor da aposentadoria) pelo fator previdenciário.



As perdas de renda são grandes principalmente para as
mulheres. Tratar a todos com se fossem iguais, como se o
mercado de trabalho fosse homogêneo e como se tudo ocorresse
da mesma forma na região Norte e Sudeste, é injusto. Mas o
fundamental em tudo isso é que forçar a aposentadoria para uma
idade mais alta não implica necessariamente em manter o
trabalhador contribuindo para a previdência, porque poucos vão
conseguir ter um posto de trabalho com o avanço da idade.
Pode, ao contrário, significar que eles perderão a condição de
segurados, principalmente em recessões prolongadas.



Correio da Cidadania: Você acredita na necessidade de alguma
reforma da Previdência? De que tipo?



Denise Gentil: A reforma realmente necessária teria que
permitir a aposentadoria de trabalhadores urbanos mais pobres
e informais com regras semelhantes às dos rurais. Aqueles que
não conseguiram um emprego formal no meio urbano durante sua
vida ativa deveriam se aposentar com um salário mínimo,
comprovando o tempo de trabalho. A reforma deveria ser
inclusiva, criando mecanismos de proteção mais amplos e não
afastando as pessoas da previdência pública com regras duras e
renda baixa para os aposentados.



Deveríamos caminhar no rumo de um sistema previdenciário para
todos, inclusive para os que não contribuíram, mas trabalharam
a vida toda. Estes necessitam da aposentadoria na velhice e
poderiam receber o piso básico simplesmente porque são
cidadãos brasileiros e não podem ser desamparados. Se não
contribuíram diretamente para a previdência, pagaram impostos
indiretamente, principalmente aqueles embutidos nos preços.



Nós precisamos de uma reforma edificante, que traga mecanismos
compensatórios para a exclusão do mercado de trabalho, que
discuta uma agenda positiva com a sociedade, que proponha
laços de solidariedades entre as gerações e entre as classes e
que fortaleça a cidadania.



Correio da Cidadania: Quais seriam as principais consequências
na vida da população, caso se aprove a reforma agora em
discussão?



Denise Gentil: Ainda não se sabe exatamente a amplitude que
essa reforma terá. Quando o debate começa no fórum da
previdência e as propostas vão surgindo, as coisas vão ficando
perigosas porque as disputas se acirram e a atuação dos
lobbies fica muito mais forte. Haverá também a enorme pressão
política dos meios de comunicação. As forças conservadoras da
burocracia do governo emergem, trazendo propostas de reforma
draconianas. O desfecho é pouco previsível. Para a classe
trabalhadora isso é um pesadelo, um tormento que se repete
incessantemente.



O resultado que se quer alcançar com reformas de corte
liberal-privatizante é a redução da renda das aposentadorias,
do piso e do teto, e ao mesmo tempo elevar o grau de
dificuldade para as pessoas conseguirem se aposentar para que
elas passem o menor tempo possível recebendo uma renda do
governo. Quanto menor o período de aposentadoria, isto é,
quanto mais próximo do fim da vida, melhor. Essa é a
estratégia. Com benefícios menores, as pessoas que tiverem
condições de pagar serão empurradas para os planos de
previdência complementar num banco privado, porque a renda que
receberão do sistema público não garantirá a sobrevivência em
condições semelhantes às da fase ativa.



A previdência pública tende a se responsabilizar apenas por um
piso básico de valor mínimo para atender precariamente os mais
pobres. Assim, a tendência é de transferir a responsabilidade
da renda futura para os indivíduos e famílias, retirando cada
vez mais o amparo do Estado. O sistema previdenciário vai
ampliar as assimetrias e exclusões existentes no mercado de
trabalho e a pobreza entre os idosos voltará a crescer. O
governo Dilma não consegue sustentar os avanços sociais
conquistados na primeira década deste século. A impressão que
se tem é que tudo não para de desmoronar.



Correio da Cidadania: Em sua visão, quais seriam os resultados
macroeconômicos da reforma previdenciária, tal como proposta?



Denise Gentil: O resultado político é desastroso, mas já que a
pergunta é sobre o efeito macroeconômico, talvez seja melhor
começar por aí. O resultado econômico de se fazer redução de
gasto público, aliás, de qualquer tipo de gasto, sempre será
um menor crescimento. E crescimento mais baixo significa queda
da taxa de emprego, dos lucros e salários e, por tudo isso,
menor será a arrecadação de tributos. Fazer ajuste fiscal
agrava o resultado fiscal. Reduzir gasto social é condenar a
economia à recessão, particularmente em momentos de crise
externa.



O governo diz que a redução do gasto previdenciário vai abrir
espaço para o investimento público. Isso é uma grande bobagem.
Redução de gasto em governos muito conservadores, como é o
caso do governo Dilma, sempre significará elevação de
superávit primário e não maior investimento. Além disso, um
governo que realmente deseje realizar investimentos de grande
porte não usa a arrecadação dos tributos para esse fim, porque
nunca seriam suficientes. Para se fazer investimentos
expressivos o governo tem de tomar empréstimos, lançar títulos
públicos no mercado, emitir moeda e, sobretudo, fazer grandes
acordos para coordenar um bloco de interesses, nacionais e
internacionais, numa determinada direção.



Essa fórmula é mais velha que a roda no mundo das finanças
públicas. Só tem dinheiro para fazer investimentos de grande
impacto quem tem um projeto de inserção internacional. País
nenhum na história do capitalismo mundial cresceu economizando
migalhas de seus recursos internos, mas realizando grandes
projetos estratégicos que implicam em elevar a dívida pública.
Portanto, não será “economizando” com gastos sociais que o
governo arranjará uma fonte de recursos para ampliar os
investimentos.


In
Correio da Cidadania
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=11437:2016-02-19-15-26-19&catid=34:manchete
19/2/2016

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