quarta-feira, 28 de março de 2018

A política estrangeira de Theresa May


Thierry Meyssan

Thierry Meyssan prossegue o seu estudo das políticas estrangeiras nacionais.
Após ter analisado a da França, agora ele debruça-se sobre a do Reino Unido. Se
a primeira é considerada como o «domínio reservado» do Presidente da República
e, a este título, escapa ao debate democrático, a segunda mais ainda uma vez que
é elaborada por uma elite rodeando a monarca, à revelia de qualquer forma de
contrôlo popular. O Primeiro-ministro eleito deve apenas aplicar as escolhas da
Coroa hereditária. Face ao falhanço do projecto norte-americano de mundo
unipolar, Londres tenta restaurar o seu antigo poder imperial.
Este artigo dá sequência a : “A política estrangeira do Presidente Macron”,
Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 13 de Março de 2018.
Global Britain – o Reino Unido Mundial
A 13 de Novembro último, Theresa May aproveitava o discurso anual do
Primeiro-ministro na Câmara Municipal (Prefeitura-br) de Londres para dar um
vislumbre sobre a nova estratégia britânica, após o Brexit [1]. O Reino Unido
pretende restabelecer o seu Império (Global Britain) promovendo, para isso, o
livre comércio mundial com a ajuda da China [2] e para tal afastando a Rússia
das instâncias internacionais com a ajuda dos seus aliados militares : os
Estados Unidos, a França, a Alemanha, a Jordânia e Arábia Saudita.
Retrospectivamente, todos os elementos do que hoje vemos foram abordados nesse
discurso, mesmo que não o tivéssemos compreendido de imediato.
Voltemos atrás por um instante. Em 2007, o Presidente russo, Vladimir Putin,
intervinha na Conferência de Segurança de Munique. Ele observava que o projecto
de mundo unipolar subscrito pela OTAN era por essência anti-democrático e
apelava aos Estados europeus para se dessolidarizarem dessa fantasia
norte-americana [3]. Sem responder a esta observação de fundo sobre a ausência
de democracia nas relações internacionais, a OTAN denunciou então a vontade da
Rússia de enfraquecer a coesão da Aliança afim de melhor a ameaçar. _ No
entanto, um perito britânico, Chris Donnelly, afinou depois essa retórica. Para
enfraquecer o Ocidente, a Rússia estaria a tentar deslegitimar o seu sistema
económico e social sobre o qual se funda o seu poderio militar. Este seria o
móbil oculto das críticas russas, nomeadamente através dos seus média
(mídia-br). Salientemos que Donnelly não responde mais do que a OTAN à
observação de fundo de Vladimir Putin, mas, afinal porque é que se iria debater
a democracia com um indivíduo que se suspeita a priori de autoritarismo?
Eu penso que, ao mesmo tempo, tanto Donnelly está certo na sua análise como a
Rússia no seu objectivo. Com efeito, o Reino Unido e a Rússia são duas culturas
diametralmente opostas.
A primeira é uma sociedade de classes com três níveis de nacionalidade fixados
pela lei e figurando nos documentos de identidade de cada um, enquanto a segunda
—tal como a França— é uma Nação criada pela lei, onde todos os cidadãos são
«iguais em direitos» e onde a distinção britânica entre direitos civis e
direitos políticos é impensável [4]. _ O propósito da organização social no
Reino Unido é o da acumulação de bens, enquanto na Rússia é a de construir a
personalidade individual. Assim, no Reino Unido, a propriedade da terra está
massivamente concentrada em poucas mãos, ao contrário da Rússia e sobretudo da
França. É quase impossível comprar um apartamento em Londres. No máximo, pode-se
—como no Dubai— fazer um aluguer de 99 anos. Desde há séculos, a cidade, na sua
quase totalidade, pertence apenas a quatro pessoas. Quando um Britânico morre,
ele decide livremente para quem irá a sua herança, e não necessariamente para os
seus filhos. Pelo contrário, quando um Russo morre, a História recomeça do zero:
os seus bens são repartidos igualmente entre todos os seus filhos, qualquer que
seja a vontade do falecido.
Sim, a Rússia tenta deslegitimar o modelo anglo-saxão, o que é tanto mais fácil
quanto é uma excepção que horroriza o resto do mundo quando este o compreende.
Voltemos à política de Theresa May. Dois meses após a sua intervenção no
banquete do Lord Mayor, o Chefe de Estado-Maior de Sua Majestade, o General Sir
Nick Carter, pronunciava, a 22 de janeiro de 2018, um discurso muito importante,
inteiramente consagrado à guerra vindoura contra a Rússia, onde ele se baseava
na teoria de Donnelly [5]. Tirando lições da experiência síria, ele descrevia um
inimigo dotado de um novo arsenal, extremamente poderoso (isto dois meses antes
do Presidente Putin revelar o seu novo arsenal nuclear [6]).
Ele afirmava a necessidade de dispôr de tropas terrestres mais numerosas, de
desenvolver o arsenal britânico e de se preparar para uma guerra onde a imagem
passada pelos média seria mais importante do que as vitórias no terreno.
No dia seguinte a essa conferência-choque no Royal United Services Institute (o
“think-tank” da Defesa), o Conselho de Segurança Nacional anunciou a criação de
uma unidade militar para a luta contra a «propaganda russa» [7].
Onde se está no projecto britânico ?
Muito embora a Comissão de Negócios Estrangeiros (Relações Exteriores-br) da
Câmara dos Comuns tenha posto em dúvida a praticabilidade do projecto Global
Britain [8], vários pontos avançaram, apesar de um grande escolho.
Importa compreender que a Sra. May não tenta mudar de política, mas, antes
reordenar a política do seu país. No decurso do último meio século, o Reino
Unido tentou integrar-se na construção europeia, perdendo progressivamente as
vantagens herdadas do seu antigo Império. Trata-se agora, não de abandonar o que
foi feito durante este período, mas de restaurar a antiga hierarquia do mundo,
quando os funcionários de Sua Majestade e a gentry (aristocracia -ndT) viviam
nos clubes, nos quatro cantos do mundo. servidos pelos locais.
 Numa viagem à China, na semana seguinte ao discurso de Sir Nick Carter, Theresa
May negociou lá numerosos contratos comerciais, mas entrou em conflito político
com os seus anfitriões. Pequim recusou distanciar-se de Moscovo (Moscou-br), e
Londres recusou apoiar o projecto da Rota da Seda. Livre comércio, sim, mas não
através das vias de comunicação controladas pela China. Desde 1941 e da Carta do
Atlântico, o Reino Unido partilha a responsabilidade dos «espaços comuns»
(marítimos e aéreos) com os Estados Unidos. As suas duas frotas são concebidas
para ser complementares, mesmo se a Marinha dos EUA é muito mais poderosa que a
do Almirantado.
Seguidamente, a Coroa activou o governo do seu dominion australiano para
reconstruir os Quads, o grupo anti-chinês que se reunia sob o mandato Bush Jr.
[9]. Ele é constituído, para além da Austrália, pelo Japão, Índia e pelos
Estados Unidos.
Desde logo, o Pentágono estuda as possibilidades de criar problemas tanto na
Rota da Seda marítima, no Pacífico, quanto na Rota terrestre.
 A aliança militar anunciada foi constituída sob a forma do muito secreto
«Pequeno Grupo» [10]. A Alemanha que atravessava uma crise governamental não
participou nela de início, mas parece que esse atraso terá sido reparado no
início de Março. Todos os membros desta conjura coordenaram a sua acção na
Síria. Apesar dos seus esforços, falharam por três vezes em organizar um ataque
químico de falsa bandeira na Ghuta Oriental, ao terem os exércitos sírio e russo
capturado os seus laboratórios de Aftris e de Shifunya [11]. Todavia, eles
acabaram por publicar um comunicado conjunto anti-Russo sobre o caso Skripal
[12] e mobilizaram, ao mesmo tempo, a OTAN [13] e a União Europeia contra a
Rússia [14].
Como isto pode evoluir ?
É evidentemente estranho ver a França e a Alemanha apoiarem um projecto que foi
explicitamente enunciado contra eles: o Global Britain, na medida em que o
Brexit não é tanto uma fuga à burocracia federal da União Europeia mas uma
assunção de rivalidade.
Seja como for, a Global Britain resume-se hoje à :
 promoção do livre comércio mundial, mas exclusivamente no quadro
talassocrático, quer dizer com os Estados Unidos contra as vias de comunicação
chinesas ;
 e à tentativa de excluir a Rússia do Conselho de Segurança e de cortar o mundo
em dois, o que implica as manipulações em curso com armas químicas na Síria e o
escândalo Skripal.
Várias consequências incidentais deste programa podem ser antecipadas:
 A crise actual retoma elementos comuns a do fim do mandato Obama, salvo que
Londres —e não mais Washington— está agora no centro do jogo. O Reino Unido que
já não pode apoiar-se no Secretário de Estado Rex Tillerson, vai voltar-se para
o novo Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, John Bolton [15].
Contrariamente às alegações da imprensa norte-americana, este não é de todo um
neo-conservador, mas, antes um próximo de Steve Bannon. Ele recusa que o seu
país esteja sujeito ao Direito Internacional e grita contra os comunistas e os
muçulmanos, mas, na realidade não tem intenção de lançar novas guerras entre
Estados e deseja unicamente ficar tranquilo no país. Ele não deixará de assinar
todas as declarações que lhe colocarão à frente contra a Rússia, o Irão, a
Venezuela, a Coreia do Norte, etc. Londres não conseguirá manipulá-lo para
excluir Moscovo do Conselho de Segurança porque o seu objectivo pessoal não é de
o reformar, mas, sim de se livrar de toda a ONU. Por outro lado, ele será um
fiel aliado quanto a conservar o controle dos «espaços comuns» e lutar contra a
«Rota da Seda» chinesa, tanto como ele foi, em 2003, o mentor da Iniciativa de
Segurança contra a Proliferação (Proliferation Security Initiative - PSI).
Deveremos, pois, ver surgir aqui e ali, no traçado das rotas chinesas, novas
pseudo-guerras civis alimentadas pelos Anglo-Saxões.
 A Arábia Saudita prepara a criação de um novo paraíso fiscal no Sinai e no mar
Vermelho, o “Neom”. Ele deverá substituir Beirute e o Dubai, mas não Telavive.
Londres irá conectá-lo com os diferentes paraísos fiscais da Coroa —entre os
quais a City de Londres que não é inglesa, antes depende directamente da Rainha
Isabel— para garantir a opacidade do comércio internacional.
 A multidão de organizações jiadistas, que reflui do Levante, continua
controlada pelo MI6, através dos Irmãos Muçulmanos e da Ordem dos Naqchbandis.
Este dispositivo deverá ser recolocado principalmente contra a Rússia — e não
contra a China ou nas Caraíbas, como é actualmente encarado.
Após a Segunda Guerra Mundial, assistimos à descolonização dos Impérios
europeus, depois após a guerra contra o Vietname à financiarização pelos
Anglo-Saxões da economia mundial e, por fim, após a dissolução da União
Soviética à tentativa de domínio total pelos Estados Unidos. Hoje em dia, com a
ascensão em poderio da Rússia moderna e da China, a fantasia de um mundo
culturalmente globalizado e governado de maneira unipolar dissipa-se enquanto as
potências ocidentais —e particularmente o Reino Unido— retornam ao seu próprio
sonho imperial. Claro, o alto nível de educação actual nas suas antigas colónias
obriga-os a repensar o seu modo de dominação.

In
VOLTAIRENET
http://www.voltairenet.org/article200379.html
28/3/2018

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