sexta-feira, 16 de março de 2018

Marielle, uma voz



"Hoje dizemos Marielle. Uma voz coletiva que tem nome, que se ocupou em lutar
contra a noite, que carrega no seu corpo negro todas as mulheres assassinadas,
todos os corpos e todo o sangue, todos os nomes expropriados de seus donos,
todos os sonhos, toda a vida que a morte carregou para o oco da noite. Que diz
alto os nomes dos assassinos e os acusa. A voz tem um nome, Marielle. E Marielle
foi morta outra vez. Mas esta morte tem um nome, porque carregava muitas vozes,
porque nunca estava sozinha nunca será esquecida, porque através dela é que
lembramos dos esquecidos."


Por Mauro Luis Iasi.

“ “Quando é abatido o que não lutou só,
o inimigo
ainda não venceu.”
– BERTOLD BRECHT.
A chuva caia torrencialmente sobre a cidade. Iansã mandava seus raios e os
clarões tentavam negar a noite que insiste em suas sombras. Os corpos não se
viam, a pele negra se confunde com a noite, os rios de sangue fluem para a vala,
de todas as feridas abertas, dos navios descarregando sua carga humana
acorrentada, no verde dos canaviais, nas favelas, nas ruelas da velha cidade,
das flechas de São Sebastião.

O sangue, ferro vermelho, rio que tanto carrega a vida como se esvai para fora
dela, também dá cor as bandeiras que a defende. Na noite as cores se amam no
negro, o vermelho, o lilás o preto. Iansã manda seus raios.
Outro corpo cairá. Na noite não saberemos seu nome, dos sonhos que carregava,
dos braços que o esperavam no vazio da volta. No porão do navio negreiro se
contará a carga faltante. No mar escuro o esquecimento fará parte da memória dos
peixes. São muitos e diários, aqueles que partem sem deixar seu nome para que
gritemos, para que nossas lágrimas de dor e raiva alcancem seu corpo, para que o
abutre do esquecimento não dilacere sua memória.
Os índios e as montanhas guardarão suas almas, das senzalas se ouvirão cantos
incompreensíveis, o bater dos pés no chão para que a terra acorde de seu
pesadelo de morte. O ar da noite gelará por um instante e cada gota de chuva
brilhará como uma estrela.
Nunca saberemos todos os nomes. Algumas vozes, no entanto, carregam a magia de
falar por todas as vozes esquecidas, sei lá por que razão, rolam de sua face
lágrimas de outras gentes, sentindo em seu corpo o açoite e o tiro, a dor e a
falta. A voz da memória é que fala nelas e com sua força rompe o tecido do tempo
e a pretensão da noite, revolve a terra numa agricultura reversa, desplantando o
oculto. Nessas vozes cantam cânticos ancestrais, contam-se histórias de nossos
avós, que lançam faíscas de luz na noite do esquecimento. Iansã manda seus
raios.
Tal magia se adquire ao se comer o mesmo pão do sofrimento, quando se vive na
noite ao lado dos explorados, quando se nasce onde não se pode viver, quando se
vive ali onde a regra é morrer. É a voz de quem sobreviveu aos seus e levou suas
almas costurados no vestido, no lenço preso na cabeça, na bandeira que leva com
seus mortos para marchar nas avenidas que levam nomes de seus assassinos.
São vozes que brotam do fundo da terra, das covas rasas, das valas e que se
servem da boca de pessoas vivas, no sentido mais vivo da palavra viva. Dos
lábios e línguas no prazer dos beijos, dos açoites de verdades que rasgam os
véus escuros da noite que insiste. Iansã manda seus raios e o clarão mostra o
que a noite oculta.
Por conta dessas vozes vivas sabemos dos outros que a noite esconde. Sua voz tem
nome e corpo, mas sua estatura projeta algo muito além do portador da voz,
porque foi buscar seu tamanho na memória dos índios e das montanhas, das
senzalas e favelas, da força dos pés que acordam a terra. Por isso podemos dizer
seu nome e ao dizê-lo acordar os mortos que carrega, devolvê-los aos braços que
esperavam, ao caminho interrompido que trilhavam. Iansã nos ilumina com seus
raios.
Hoje dizemos Marielle. Uma voz coletiva que tem nome, que se ocupou em lutar
contra a noite, que carrega no seu corpo negro todas as mulheres assassinadas,
todos os corpos e todo o sangue, todos os nomes expropriados de seus donos,
todos os sonhos, toda a vida que a morte carregou para o oco da noite. Que diz
alto os nomes dos assassinos e os acusa. Esta voz tem um nome e dizemos:
Marielle. Iansã ilumina seu corpo com seus raios. A voz tem um nome, Marielle. E
Marielle foi morta outra vez. No navio negreiro, no canavial, nas ruas estreitas
do Rio de Janeiro, na favela, na fábrica, em casa, agora no carro. Mas esta
morte tem um nome, porque carregava muitas vozes, porque nunca estava sozinha
nunca será esquecida, porque através dela é que lembramos dos esquecidos. Seu
nome é Marielle, seu nome é mulher, seu nome é negra, seu nome é justiça, seu
nome é luta, seu nome é socialista, seu nome é Marielle.
Iansã chora tempestades.
Cada gota de chuva lava nossa cidade, cada raio a ilumina. Cada gota de sangue
que cai na terra renasce em nossa luta… que nunca termina… nunca… nunca termina.

***
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador
do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro
do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser
da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe
Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a
emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora
para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

In
BLOGUE DA BOITEMPO
https://blogdaboitempo.com.br/2018/03/15/marielle-uma-voz/
15/3/2018

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