quarta-feira, 6 de junho de 2018

A psicologia de massas do fascismo ontem e hoje




Por que as massas caminham sob a direção de seus algozes?
Mauro Iasi revisita as teses de Wilhelm Reich sobre a psicologia de massas do
fascismo para compreender os impasses políticos do presente.
BLOG DA BOITEMPO
Por Mauro Luis Iasi.

“o fascismo, na sua forma mais pura, é o somatório
 de todas as reações irracionais do caráter do homem médio”
W. Reich

“queriam que eu falasse do agora
 mas, o presente que procuro
 está preso em um passado
 que insiste em ser futuro”
M. Iasi

O psicólogo marxista Wilhelm Reich (1897-1957) escreveu o livro Psicologia de
massas do fascismo em 1933 (o estudo se estendeu de 1930 até 1933), no contexto
da ascensão do nazismo na Alemanha. O autor se refugiou em Viena, depois
Copenhagen e Oslo, onde iniciou seus estudos sobre as couraças e depois do que
denominou de “energia vital”, levando-o a teoria do “orgon”. Desde 1926
acumulava divergências com Freud, com o qual trabalhou como assistente clínico
e, em 1934, seria expulso da Sociedade Freudiana e da Associação Psicanalítica
Internacional, sairia da Noruega em direção aos EUA, onde seria também
perseguido com a acusação de “subversão”. Acabou preso em 1957 e morreu no mesmo
ano na prisão. Toda sua obra, incluindo livros e material de pesquisa, foram
queimados por ordem judicial nos EUA em 1960.
Ainda que possamos questionar as teorias reichianas fundadas na teoria do
“orgon” e a relação que esperava estabelecer entre “soma e psiquismo”, temos que
ter muito cuidado ao tratar as considerações que esse importante autor tece
sobre o fascismo e o caráter das massas analisados na obra citada. Em vários
aspectos, considero que as reflexões de Reich sobre o tema podem ser
extremamente úteis em nossos tumultuados dias, principalmente pelas questões que
levanta, mais do que pelas respostas que encontra.
O autor coloca da seguinte maneira o problema. Se assumirmos que a compreensão
da sociedade realizada por Marx esteja correta – isto é, que o desenvolvimento
da sociedade capitalista e suas contradições leva à possibilidade de sua
superação revolucionária (o que implica a conformação do proletariado como um
sujeito consciente de sua tarefa histórica) –, a questão que se coloca é como
compreender o comportamento político de amplos setores da classe trabalhadora
que efetivamente estão servindo de base para a reação política que emergia com o
fascismo.
Chamar atenção aos efeitos da exploração capitalista, como a miséria, a fome e o
conjunto das injustiças próprias do sistema capitalista para ativar o “ímpeto
revolucionário”, dizia Reich, já não era suficiente. Tampouco acusar o
comportamento conservador das massas de “irracional”, de constituir uma “psicose
de massas” ou uma “histeria coletiva” – algo que em nada contribui para jogar
luz sobre a raiz do problema, a saber, compreender a razão pela qual a classe
trabalhadora respaldava o discurso fascista que, em última instância, atacava
exatamente seus próprios interesses.
Na base dessa incompreensão se encontrava um sentimento de espanto. Os marxistas
acreditavam que a crise econômica de 1923-1933 era de tal forma brutal que
produziria “necessariamente uma orientação ideológica de esquerda nas massas por
ela atingidas”. Entretanto, o que se presenciou foi, nas palavras do autor, uma
“clivagem entre a base econômica, que pendeu para a esquerda, e a ideologia de
largas camadas da sociedade, que pendeu para a direita”. O autor conclui com a
constatação de que a “situação econômica e a situação ideológica das massas não
coincidem necessariamente”. (Wilhelm Reich, Psicologia de massas do fascismo,
São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 7).
Nesse ponto, Reich afirmará que – e a observação dele aqui me parece
profundamente pertinente hoje – essa não correspondência não deveria surpreender
aos marxistas, uma vez que o materialismo dialético de Marx não compreende a
relação entre a situação econômica e a consciência de classe como sendo algo
mecânico, ou seja, como se a situação material determinasse esquematicamente sua
expressão ideal na consciência dos membros de uma classe social. Somente um
“marxismo vulgar” concebe uma antítese na relação entre economia e ideologia,
assim como entre a “estrutura” e a “superestrutura”, uma perspectiva precária
que não leva em conta o chamado “efeito de volta” da ideologia, isto é, as
formas pelas quais a ideologia incide sobre a própria base material que a
determina. Presa a essa visão esquemática e pouco dialética, resta a essa
modalidade de marxismo vulgar apenas recorrer ao chamamento moral para que os
trabalhadores correspondam em sua ação às condições objetivas em que se inserem,
clamando pela “consciência revolucionária”, às “necessidades das massas” ou ao
“impulso natural” para as greves e a luta (p. 14). Melancolicamente, Reich
conclui então que essa versão esquemática do marxismo:

“Tentará, por exemplo, explicar uma situação histórica com base na ‘psicose
hitleriana’ ou tentará consolar as massas, persuadindo-as a não perder a fé no
marxismo, assegurando-lhes que, apesar de tudo, o processo avança, que a
revolução não pode ser esmagada, etc. O marxista comum acaba por descer ao ponto
de incutir no povo uma coragem ilusória, sem, no entanto, analisar objetivamente
a situação em sem compreender sequer o que se passou. Jamais compreenderá que
uma situação difícil nunca é desesperadora para a reação política ou que uma
grave crise econômica tanto pode conduzir à barbárie como a liberdade social. Em
vez de deixar seus pensamentos e atos partirem da realidade, ele transporta essa
realidade para a sua fantasia de modo que ela corresponda aos seus desejos.”
(pp. 14-5)
A miséria econômica causada pela crise atualiza a disjuntiva “socialismo ou
barbárie”, mas o que faria com que os trabalhadores optem pela alternativa
socialista? Reich está convencido de que em uma situação como essas os
trabalhadores escolhem em primeiro lugar a barbárie. O marxismo vulgar
compreende a ideologia como um conjunto de ideias que se impõe à sociedade e,
portanto, aos trabalhadores. Dessa maneira, os partidários desse tipo de
perspectiva acreditam que as ideais marxistas ganham força na crise porque
desmentem na prática as ideias conservadoras. O que foge à compreensão dessa
análise é exatamente o modo de operação da ideologia, muito mais do que a
definição escolástica do “que é” ideologia.
Assim, o psicólogo comunista fará a pergunta decisiva: se uma ideologia se
transforma em força material quando se apodera das massas, como afirmava Marx, a
pergunta é “como é possível que um fator ideológico produza resultado material”,
seja na direção de uma política revolucionária ou na direção de uma “psicologia
de massas reacionária”? (p. 17)
Se compreendermos a ideologia na chave de ideias dominantes em uma sociedade –
isto é, as ideias das classes dominantes que expressam as relações sociais que
fazem de uma classe a classe dominante (Marx e Engels, A ideologia alemã,
Boitempo, p. 47) –, a pergunta se formula da seguinte maneira: como é que
relações sociais se convertem em expressões ideais, valores, juízos e
representações interiorizadas pelas pessoas que constituem uma determinada
sociedade? A resposta é que isto se dá na vivência de instituições no interior
das quais as pessoas formam seu próprio psiquismo, neste caso, fundamentalmente,
na família.
É aqui que as relações sociais dadas são apresentadas pela pessoa em formação
como “realidade”, onde se desenvolve a transição do “princípio do prazer” para o
“princípio da realidade” e se produz um complexo processo de identificação com
aquele que representa o limite, a ordem e a norma social a ser imposta, mas, o
que é essencial ao nosso tema, que é incorporada pela pessoa como se fosse sua
(autocontrole) e não uma imposição oriunda de uma ordem social. O fundamento
desse processo de interiorização, na formação daquilo que Freud denominou de
“superego”, está a repressão à sexualidade infantil, o seu recalque e a volta
como sintoma nos termos de Reich (Materialismo Dialético e Psicanálise. Lisboa:
Presença/São Paulo: Martins Fontes, 1977).
É mister lembrar neste momento que o resultado desse processo de interiorização
das relações sociais na forma de valores e normas de comportamento implica na
identidade com o agende da imposição das normas externas, no caso do complexo de
Édipo descrito por Freud na formação de uma identidade com o pai.
Dessa maneira, Reich localizará a base de uma determinada expressão de uma
psicologia de massas (a do fascismo) em dois pilares: uma certa forma de família
tendo no centro a repressão à sexualidade infantil; e o caráter da “classe média
baixa”. Para ele, a repressão à satisfação das necessidades materiais difere da
repressão aos impulsos sexuais pelo fato que a primeira leva à revolta enquanto
a segunda impede a rebelião, uma vez que o retira do domínio consciente
“fixando-o como defesa moral”, fazendo com que o próprio recalque do impulso
seja inconsciente, seja visto pela pessoa como uma característica de seu
caráter. O resultado disso, segundo Reich, “é o conservadorismo, o medo a
liberdade, em resumo, a mentalidade reacionária” (Psicologia de Massas do
Fascismo, p. 29).
Os setores médios não são os únicos a viverem esse processo (que é de fato
universal para nossa sociedade) mas o vivem de maneira singular. Trata-se de uma
classe ou segmento de classe espremido entre o antagonismo das classes
fundamentais da sociabilidade burguesa (a burguesia e o proletariado),
desenvolvendo o curioso senso de que estão acima das classes e representam a
nação. Seus impulsos jogam os setores médios ora para a radicalidade proletária
(a luta contra as barreiras da realidade que se levantam contra os impulsos),
ora para o apelo à ordem da reação burguesa (a defesa das barreiras sociais
impostas como garantia da sobrevivência). Como o indivíduo teme seus impulsos e
clama por controle, os segmentos médios temem a quebra da ordem na qual se
equilibram precariamente e pedem controle e repressão.
Não é acidente ou casualidade que, no campo dos valores reacionários, vejamos
alinhados à defesa abstrata da “nação” características como o “moralismo” quanto
aos costumes (que vem inseparavelmente ligado a preconceitos, a homofobia, etc.)
e a defesa da “família”, assim como o chamado “irracionalismo”, a “violência”, o
mito da xenofobia e do racismo como constituintes da nação, e o clamor pela
“ordem”. A recente cena dantesca de “manifestantes” enrolados na bandeira do
Brasil, de joelhos e mãos na cabeça, pedindo uma intervenção militar é a imagem
que condensa todos esses elementos. Por incrível que pareça, essa não é uma
sociedade “doente”, mas a sociedade “normal” exposta sem os filtros que
rotineiramente a oculta.
Os argumentos de Reich estão longe de dar conta da totalidade do fenômeno do
fascismo. Ainda que justificada, sua crítica aos marxistas oficiais (em 1931
Reich criou a Sexpol Verlag que aglutina mais de 40 mil membros discutindo uma
política sexual e suas relações com a luta revolucionária, o que causou
preocupações no Partido Comunista austríaco e redundou na sua expulsão do
partido em 1933) não pode dar conta de todos os elementos históricos, políticos,
sociais e culturais do tema que foram abordados em inúmeras obras de competentes
marxistas (de Gramsci a Adorno e Benjamin, passando por Togliatti, Polantzas e
tantos outros). Ele apenas aponta para um aspecto que normalmente é
desconsiderado. O que nos parece pertinente é que o comportamento fascista não
pode ser reduzido a manipulação e engodo, mas encontra profunda raízes na
consciência imediata das massas e seus fundamentos afetivos, seja nos segmentos
médios, seja na classe trabalhadora.
O fascismo é, na sua essência, uma expressão política da crise do capitalismo em
sua fase imperialista e na etapa do domínio dos monopólios, como define Leandro
Konder (Introdução ao fascismo, São Paulo, Expressão Popular, 2009). Ele
disfarça sob uma máscara modernizadora seu conteúdo conservador, sendo
antiliberal, antissocialista, antioperário e, principalmente, antidemocrático. A
dificuldade do fascismo reside exatamente em juntar esses dois aspectos
contrários em sua síntese – isto é, uma intencionalidade a serviço do grande
capital (imperialista, monopolista e financeiro) e uma base de massas que
permita apresentar seu programa reacionário como alternativa para a “nação”.
Creio que o estudo de Reich nos dá aqui uma pista valiosa. A ideologia fascista
conclama à revolta dos impulsos reprimidos (seja das necessidades materiais,
seja aqueles relativos à repressão da sexualidade) e depois oferece a ordem como
alternativa, dialogando assim diretamente com o fundamental da estrutura do
caráter universalizado pela sociabilidade burguesa, principalmente das chamadas
classes médias. É, portanto, uma política da pequena burguesia que mobiliza
massas trabalhadoras para defender os interesses do grande capital monopolista.
Acreditem, realizou-se esta façanha com eficiência e sucesso naquilo que
conhecemos por nazifascismo.
Na luta contra o fascismo, a burguesia democrática é sempre a primeira derrotada
e junto a ela a pequena burguesia que acredita no seu próprio mito de um Estado
acima dos interesses de classe. A única força social capaz de enfrentar o
fascismo é a revolução proletária; por isso são os trabalhadores o alvo duplo do
fascismo, seja no sentido da cooptação, seja na repressão brutal e direta.
Quando a luta de classes se acirra e qualquer conciliação é impossível, a
burguesia se inquieta, os segmentos médios entram em pânico e os fascistas
vendem seu remédio amargo para a doença que ajudaram a criar. Se nesse momento
os trabalhadores se movimentarem com autonomia em direção ao seu projeto
societário – o socialismo –, impelidos inicialmente pelos impulsos mais
elementares e ainda não conscientes, eles podem colocar toda a sociedade em
torno de sua luta e se constituir como alternativa à barbárie do capitalismo em
crise. Se, por razões várias, esse segmento não se movimentar com a força
necessária, uma longa noite de terror se impõe com seus cadáveres e cortejos
fúnebres.
Ainda que tenham particularidades em seu processo de consciência, os
trabalhadores não podem escapar ao fato de que são socializados nas instituições
de uma ordem burguesa, portanto, que os valores, princípios, representações
ideais desta ordem constituam o fundamento de sua consciência imediata. Diante
do caos que emerge da crise do capital vive uma contradição entre os impulsos
materiais que os impulsionam à luta e à identidade com os opressores que os
mantêm presos às correntes da ideologia. Na ausência de uma política
revolucionária se somam às “classes médias” conclamando pela ordem e se prestam
a ser a base de massas para as aventuras fascistas.
Toda a esperança da psicanálise é tornar possível que o inconsciente emerja, em
parte, para que seja compreendido o sintoma. Guardadas as mediações necessárias,
a luta de classes torna possível que as determinações ocultas pelos mecanismos
da ordem se façam visíveis e que o sintoma se torne exposto. No primeiro assim
como no segundo caso isto não significa a resolução do sintoma, mas o início de
uma longa luta para enfrentá-lo. O novo que pulsa vigoroso nas entranhas do
cadáver moribundo do velho mundo, não pode ser detido a não ser pela violência.
Não pode se libertar sem quebrar violentamente a ordem que o aprisiona.

“Veintiuno veintiuno
 firmamento del dos mil
 en el cielo la paloma
 va en la mira del fusil”
Silvio Rodriguez

Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador
do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro
do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser
da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe
Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a
emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora
para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

In
PCB
https://pcb.org.br/portal2/19883/a-psicologia-de-massas-do-fascismo-ontem-e-hoje
5/6/2018

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