sábado, 23 de junho de 2018

O novo feudalismo



Entrevista com o economista Michael Hudson

Sharmini Peries, CounterPunch

Na página 260 do seu livro, J is For Junk Economics: A Guide to Reality in an
Age of Deception, você trata da questão da Previdência Social e do mito que ela
deve ser pré-financiada por seus beneficiários, e que os impostos progressivos
deveriam ser trocados por um imposto de taxa fixa. Conversamos sobre isso antes,
mas vamos ver o que isso realmente significa quando se trata da Previdência
Social.

A mitologia pretende convencer as pessoas de que, se forem beneficiárias da
Previdência Social, devem ser os responsáveis por poupar para pré-financiá-la. É
como dizer que, como você é o beneficiário da educação pública, você precisa
pagar pela escola. Ou que, como você é o beneficiário da assistência médica,
precisa economizar para pagar por ela. Se você é o beneficiário dos gastos
militares dos Estados Unidos que nos impedem de ser invadidos na semana que vem
pela Rússia, você tem que gastar com tudo isso – antecipadamente e emprestar o
dinheiro para o governo quando for necessário.

Como estabelecer o limite? Ninguém previu no século 19 que as pessoas teriam que
pagar por sua própria aposentadoria. Isso era visto como uma obrigação da
sociedade. O primeiro programa público de previdência social surgiu na Alemanha,
sob Bismarck. A ideia é que se trata de obrigação do Estado. Há alguns direitos
dos cidadãos, e entre esses direitos está o de, após a vida profissional, todo
cidadão poder parar de trabalhar, ou se aposentar. Isso significa que é preciso
ter a garantia de que parar de trabalhar não vai obrigar ninguém a pedir
dinheiro na rua. As pessoas foram enganadas para acreditar que precisam pagar
para ser beneficiárias da Previdência Social.

Este foi o truque de Alan Greenspan na década de 1980 com a Comissão Greenspan.
Ele disse que os EUA precisavam traumatizar os trabalhadores – sufocá-los a tal
ponto que não teriam coragem de fazer greve nem de exigir melhores condições de
trabalho. Ele reconheceu que a melhor maneira de sufocar os assalariados era
aumentar drasticamente seus impostos. Ele não chamou a retenção do Federal
Insurance Contributions Act (FICA) de imposto, mas é claro que é um imposto. Seu
truque foi dizer que não se trata de um imposto, mas de contribuição para a
Previdência Social. E hoje ela retém 15,4% do contracheque de todos.

O efeito do truque de Greenspan foi além de fazer os assalariados pagarem o FICA
todo mês direto de seus salários. A cobrança era tão alta que o Fundo da
Previdência Social emprestou o excedente ao governo. Agora, com o enorme
excedente que tiramos dos assalariados, há um limite: cerca de 120 mil dólares.
As pessoas mais ricas não precisam pagar pelo financiamento da Previdência
Social, apenas a classe assalariada precisa. Suas economias forçadas são
emprestadas ao governo para que ele possa afirmar que tem tanto dinheiro extra
no orçamento oriundo da previdência que pode se dar ao luxo de cortar os
impostos sobre os ricos.

Assim, o aumento acentuado do imposto da Previdência Social para os assalariados
foi acompanhado de reduções acentuadas nos impostos sobre imóveis, movimentações
financeiras e para o 1% mais rico. Aqueles que vivem de renda, não do trabalho,
não produzindo bens e serviços, mas que ganham dinheiro a partir de seus
imóveis, ações e títulos "enquanto dormem". É assim que os 5% mais ricos
ganharam dinheiro na prática.

A ideia de que a Previdência Social tem que ser financiada por seus
beneficiários é uma armação dos ricos para afirmar que o orçamento do governo
não é suficiente para garantir o pagamento. A Previdência Social pode começar a
ter déficit orçamentário.

Depois de termos superávit desde 1933, por 70 anos, agora temos que começar a
desembolsar algumas dessas economias. Chama-se isso de déficit, como se fosse um
desastre e tivéssemos que começar a cortar a Previdência Social. E como se os
assalariados estivessem fadados a passar fome na rua depois de se aposentar.

O Federal Reserve acaba de publicar estatísticas dizendo que a família americana
média, de 55 e 60 anos, tem apenas cerca de 14 mil dólares em economias. Isso
não é suficiente para se aposentar. Também houve um grande saque de fundos de
pensão, em grande parte por Wall Street. Por isso, os bancos de investimento
tiveram que pagar dezenas de bilhões de dólares em multas por enganar os fundos
de pensão e outros investidores. A atual taxa de retorno livre de risco é de
0,1% sobre os títulos do governo, de modo que os fundos de pensão não têm
dinheiro suficiente para pagar as aposentadorias na proporção prevista por seus
conselheiros de lixo econômico (junk economics). Aquele dinheiro que as pessoas
achavam que estaria disponível para sua aposentadoria, de repente não está. A
desculpa é que ninguém poderia ter previsto isso!

Há tantos fundos de pensão corporativos falindo que a Pension Benefit Guarantee
Corporation - PBGC (Corporação de Garantia de Benefícios de Pensão) não tem
dinheiro suficiente para socorrê-los. O PBGC está em déficit. Seja você um
investidor agressivo, um Governador Romney ou o que quer que seja, se você
assumir uma empresa, você fará o que Sam Zell fez com o Chicago Tribune: saqueia
o fundo de pensão, deixa-o vazio e paga os portadores de títulos que lhe
emprestaram o dinheiro para comprar a empresa. E você dirá então aos
trabalhadores: “Desculpem, mas não há mais nada. Está zerado”. Metade dos
programas de propriedade de ações por funcionários vai à falência. Essa crítica
já era feita nos anos 1950 e 1960.

Os Chicago Boys desenvolveram essa estratégia no Chile. Os economistas da
Universidade de Chicago tornaram isso possível, privatizando o sistema de
previdência. A estratégia era reservar um fundo de pensão administrado pela
empresa principalmente para investir em ações próprias. A empresa então criaria
uma afiliada, que seria na realidade proprietária da primeira por meio de uma
organização guarda-chuva, e então deixaria a empresa e seu fundo de pensão irem
à falência – já tendo esvaziado o fundo de pensão, que havia sido emprestado
para aquela empresa de fachada.

A estratégia se mostrou um jogo de cartas marcadas. Não há, na realidade, nenhum
problema com a previdência social. É claro que o governo tem receita suficiente
para pagar a Previdência. Para isso serve o sistema tributário. Basta olhar para
os nossos gastos militares. Mas se você fizer o que Donald Trump faz, e disser
que não vai taxar os ricos; e se você fizer o que Alan Greenspan fez, isentando
os indivíduos de renda mais alta da contribuição para o sistema de previdência
social, é claro que surgirá um déficit. E o déficit vai crescer à medida que
mais pessoas se aposentam. A intenção sempre foi criar um déficit. Mas agora que
o governo não está usando os excedentes da Previdência Social para fingir que,
assim, pode isentar os ricos do pagamento de impostos, fazem propaganda
enganosa. Basicamente, faz parte do jogo de cartas marcadas. Explicar este mito
é, em parte, o que tento fazer no meu livro.

Se os ricos não precisam contribuir para a Previdência Social, podem usá-la?

Eles vão sacar a Seguridade Social até o teto a partir do qual não se paga, que
é de até 120 mil dólares hoje. Então sim, eles usam um pouco. Mas o que as
pessoas ganham acima de 120 mil é completamente isento do sistema de previdência
social. Estes são os ricos que administram empresas e dão a si mesmos retornos
milionários.

Mesmo empresas que se envolveram em fraudes financeiras maciças, grandes bancos
como o Citibank e o Wells Fargo – todos pagam rescisões polpudas a seus
executivos, que recebem enormes aposentadorias pelo resto de suas vidas. E falam
como se as previdências privadas estivessem em déficit, mas para os diretores,
os arranjos são bem diferentes das aposentadorias dos operários e dos
assalariados em geral. Portanto, há uma série de estatísticas econômicas
fictícias.

Descrevo isso no meu dicionário como "mathiness" (algo como matematismo). A
ideia de que, se você puser qualquer coisa em números, aquilo se torna uma
verdade científica. Mas o número é, na realidade, produto de contadores e
lobistas empresariais reclassificando rendimentos de forma a que não sejam
tributáveis.

Dar dinheiro para os 5% mais ricos, enquanto se finge que o déficit é problema
dos outros 95% é uma economia do tipo “a culpa é da vítima”. Pode-se dizer que é
assim que as contas econômicas são apresentadas pelo Congresso ao povo
americano. O objetivo é popularizar a economia "a culpa é da vítima". Como se a
culpa da falência da Previdência Social fosse sua. É o mito de que não devemos
tratar a aposentadoria como uma obrigação do Estado. Da mesma forma, está se
criando o mito de que os serviços de saúde não são uma obrigação do Estado.

Temos os custos de saúde mais altos do mundo, portanto, do seu salário – que não
está aumentando – você terá que pagar cada vez mais para a retenção do FICA para
a Previdência Social, cada vez mais para a saúde, para o monopólio farmacêutico
e o monopólio dos planos de saúde. Você também terá que pagar cada vez mais
pelos serviços públicos de transporte para ir ao trabalho, porque o estado não
os financia mais. Estamos cortando impostos dos ricos para que não tenhamos a
capacidade de pagar pelos serviços que as democracias sociais devem oferecer. As
estradas serão privatizadas para que você tenha que pagar para dirigir até o
trabalho, se não puder ir de transporte público.

A economia está sendo transformada em algo que antes se chamava feudalismo. Só
não temos a servidão absoluta, porque as pessoas podem viver onde quiserem. Mas
todos têm que pagar a essa nova classe “financeira /imobiliária /estatal”
hereditária que está transformando a economia.

Michael Hudson é ex-economista de Wall Street. Professor e pesquisador na
Universidade do Missouri, Kansas City (UMKC), é autor de muitos livros,
incluindo Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire. Seu
último livro é Killing the Host: How Financial Parasites and Debt Bondage
Destroy the Global Economy.

Tradução de Clarisse Meireles

In
CARTA MAIOR
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-novo-feudalismo/4/40687
21/6/2018

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